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O Desenho e a divinização da pintura: a censura de Frei Bartolomeu

DA IDEIA COMO DESENHO: CARTOGRAFIA DO PROCESSO CRIATIVO

15. O Desenho e a divinização da pintura: a censura de Frei Bartolomeu

Com a censura de Frei Bartolomeu Ferreira, assistimos a um cuidado na terminologia utilizada, mas o teor global da teoria de arte holandiana mantém-se, no essencial, inalterado. No processo de criação artística, o artista persiste em imitar o processo divino da criação, deixando, no entanto, de observar-se uma relação explícita de causalidade entre o artista e Deus. Não nos parece, em todo o caso, que se tenha registado uma qualquer inflexão de fundo no pensamento de Holanda147; há, isso sim, um cuidado acrescido na escolha da nomenclatura utilizada e um critério eventualmente mais apertado na selecção dos conceitos que caracterizam

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Castiglione propõe o “artista Cortigiano”, como aquele que deve assemelhar-se ao príncipe e não o artista melancólico que procura ser genial e assemelhar-se a Deus.

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A engrossar a corrente de interpretação que pugna pela tese da inflexão está, por exemplo, o trabalho de António Moreira Teixeira, em A Ideia não tem fim: para uma Filosofia da História da Arte em Francisco de Holanda, Tese de Doutoramento apresentada à FLUL, em 2002.

Deus e a sua relação com a ideia do artista. A sustentar esta leitura está a circunstância de na versão corrigida do Da Ciência do Desenho, Deus preservar aqueles predicados outrora instituídos no Da Pintura Antiga. Em todo o caso, a moldura conceptual que emerge para os qualificar é agora diferente: Deus continua, no entanto, a ser o “inventor e a fonte da pintura”, Ele continua a ser o “inventor de todo o entendimento humano”, o “mestre”, o “dador”, sem que para tal seja necessário mencioná-lo abertamente como causa primeira da Pintura. Em Da Ciência do Desenho, Holanda mantém as ideias fundamentais da sua teoria: se por um lado “disfarça” a divinização da pintura, por outro, mantém-na essencialmente inalterada, justamente porque a descaracterização dessa tese implicaria pôr em causa o teor de sentido da sua teoria da arte, da ideia do desenho e da pintura como fonte de todas as restantes artes. A ideia criada no entendimento do artista continuará, pois, na origem de todas as artes, ofícios e saberes. O desenho passará a ser entendido, desta feita, como entendimento, como o juízo que permite construir imagens, ao passo que o debuxo será compreendido como o esquisso “material” da execução das obras de arte: “E digo que a Pintura ou debuxo de que trato não é o que comummente se chama debuxar um pintar, dos que pouco sabem; qual é o ofício dos que debuxam lavores e folhagens, ou dos que pintam com tintas vermelhas e azuis e verdes (em quanto terra) porque deste debuxar e pintar eu aqui não falo. Mas escrevo daquela ciência, não só aprendida por ensino doutros pintores: mas naturalmente dada por o sumo mestre Deus gratuita

no entendimento, procedida de su eterna Ciência, a qual se chama DESENHO, e não debuxo nem pintura. O qual desenho assim natural do entendimento por Deus, de que tem a glória, de quem nasce, é uma coisa tão grande e um dote tão divino, que mesmo que Deus obra nele naturalmente, obra ele em todas as obras manuais e intelectuais, que podem ser feitas ou imaginadas.

E assim como este desenho, criado no entendimento ou imaginativa, é nascido da eterna ciência incriada na nossa: assim a nossa ideia criada dá origem e invenção a todas as outras obras, artes e ofícios que usam os mortais.

“[...] Quer dizer este DESENHO de que escrevo. Antes determinar, inventar, ou figurar ou imaginar aquilo que não é, para que seja e venha a ter ser, assim das coisas que são já feitas do primeiro entendimento incriado de Deus, que as inventou primeiro, como das que ainda não são de nós inventadas. De que vem dizerem os pintores que já têm acabado e feito a sua obra como em sua ideia têm feito desenho dela, não tendo inda feito nada mais que o desenho na ideia. De que vem dizerem também que os Imperadores na guerra que têm desenho de ir assentar seu campo em tal província, ou de combater com o seu exército tal cidade, ou de fazer tal fortaleza, muito antes que o façam, tendo feito já o desenho na deliberação secreta do entendimento.

Principalmente chamo DESENHO aquela ideia criada no entendimento criado, que imita ou quer imitar as eternas e divinas ciências

incriadas, com que o muito poderoso Senhor Deus criou todas as obras que vemos; e compreende todas as que têm invenção, ou forma, ou fremesura, ou proporção, ou que esperam ter, assim interiores nas ideias, como exteriores na obra; e isto baste quanto ao desenho.”148

A Pintura será então para o nosso autor a declaração do desenho em obra visível: “A Pintura diria eu que era uma declaração do pensamento em obra visível e contemplativa, e segunda natureza. É emitação de Deos e da natureza prontíssima. É mostra do que passou e do que inda será. É imaginação grande que nos põe ante os olhos aquilo que se cuidou tão secretamente na ideia, mostrando o que se inda não viu, nem foi por ventura, o qual é mais. É também ornamento e ajuda das obras divinas e naturaes, dando a arauor do homem que as raízes traz do ceo o maravilhoso fructo da pintura.”149

Diríamos, pois, para finalizar a discussão deste tópico que, do que foi referido supra, pode inferir-se que o Desenho se deixa corresponder com a Ideia. “Ter uma Ideia” e “fazer um Desenho” equivalem-se de alguma forma, dado que num e noutro casos tais “produtos” emergem como resultado da imaginação; são, por outras palavras, engendradas num espaço de pura interioridade. A ideia/desenho, que aqui se põe como termos permutáveis, era presença assídua no meio artístico renascentista, não evidentemente no sentido neoplatónico que lhe emprestará Holanda, mas

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Da Ciência do Desenho, Capº. II.

149Da Pintura Antiga, Capº. II.

convocando um teor de sentido mais técnico, donde, uma dimensão mais “exterior”, em detrimento da interioridade holandiana. Segundo Deswarte- Rosa, as posições consolidadas de Holanda permitem pensá-lo como o autor que, por vez primeira, institui uma Metafísica da Arte, que será amplamente difundida a jusante por autores como Zuccaro ou Lomazzo. A pintura em Holanda, geneticamente pensada quanto à sua origem, deixa-se definir regressivamente pela inventio, dado que é ela quem autoriza o acesso directo à ideia que está contida numa mente divina. Esta perspectiva de Holanda, explicitamente evocada e liminarmente defendida em Da Pintura Antiga, conhece derradeiramente uma evolução, mais de forma do que substância –como referimos atrás–, que se consubstanciará na obra Da Ciência do Desenho, onde é elidida a referência à divinização da pintura, como expressão peremptória de um acesso directo do pintor à mente divina. Entretanto, o termo invenção que Holanda explicitamente chama à colação, assoma como termo que granjeará uma irrecusável importância no contexto do Renascimento, por efeito, e como consequência, da própria importância crescente da Retórica ou, para o dizer por outras palavras, do recrudescimento do paradigma retórico. Pese embora esse vínculo entre “invenção” e “Retórica”, a sua utilização no corpus holandiano convoca um teor de sentido outro, mormente como “acesso directo à ideia”. Isso não significa, no entanto, menor apreço ou uma diminuída ascendência da Retórica na obra de Holanda. Bem pelo contrário. Sobre estes

considerandos últimos versará o nosso Capítulo III, intitulado “Francisco de Holanda e a Retorização da Pintura”.