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Império e Religião.

O modelo romano de Império implica uma concepção de perpetuidade. Deus concedeu aos romanos o Império sobre o mundo.

É preciso considerar o iter (caminho) do direito romano em sua trajetória histórica para muito além da existência política de Roma e do povo romano, concebidos historicamente na Antigüidade.

240

João Magabeira, notável político brasileiro, socialista democrata, em célebre discurso, ironizou o “dar a cada um o que é seu” que seria das ao miserável a miséria, ao pobre a pobreza e ao rico a riqueza.

241

V. observação de Pierangelo Catalano no verbete de sua lavra ius, iustitia, iustite, na Enciclopedia Virgiliana, cit.

Aquele direito, que viria a influenciar todos as legislações do mundo, teve como fundamento a monumental obra de Justiniano, cuja autoridade passou a valer para toda a continuidade da história.

Roma voltando a ser o centro do mundo, reassumia a sua missão universal, por intermédio da unidade do direito, codificado pelo Imperador: unum esse ius, cum unum sit imperium. 243

Se de um lado a concepção jurídica de Império é romana, tanto na sua origem como nos seus desdobramentos históricos e suas perspectivas, digamos pós-modernas, incluindo a América Latina, como dissertou Pierangelo Catalano, com a proficiência de sempre,244 e, portanto, incompatível com a idéia de Estado soberano, de outro lado é possível discutir-se se a soberania deve mesmo ser admitida como um atributo do Estado.

Antes disso, porque pertinente, é preciso considerar que o Império romano constituiu condição excepcional para a evangelização do mundo. O Cristianismo liberta-se de sua origem judaica e, por intermédio dos chamados judeus-helenizados, dentre eles o mais notável que é o apóstolo Paulo, vai propagar a fé cristã para todo o mundo, não apenas para os judeus, mas para todos os gentios. Já não existe a separação entre os gregos e os bárbaros. 245 Importante considerar que o apogeu da filosofia grega (Sócrates, Platão, Aristóteles) vai terminar justamente com Aristóteles, preceptor de Alexandre, o grande, fundador do Império da Macedônia. Surge um novo modelo político mundial, condição para a expansão do Cristianismo, de sua catolicização. Deixa de existir o ambiente para a grande filosofia moral confundida com a filosofia política (a virtude platônica-aristotélica se realizava na Pólis). A relação do homem não se dará mais com a Cidade, mas com o Império universal. Não é mais a Pólis a unidade política, mas o Império. O homem não mais se situa meramente na sua cidade, mas assume a condição indicada por uma palavra

242

“In regere imperio populus, Romane, memento/ (hae tibi arunt artes) pacique imponere morem,/ parcere subjectis et debellare superbos”. Ver nota 150.

243

cf. Salvatore Riccobono, Roma, Madre de Las Leyes, trad. J.J. Santa-Pinter, Buenos Aires, Ediciones Depalma, 1975, p. 32

244

Pierangelo Catalano, Alcuni sviluppi del concetto giuridico di “imperium populi Romani”, Estrato da Studi Sassaresi VIII, série III – ano Acc. 1980-81.

245

“Porque todos vós sois filhos de Deus pela fé, que é em Jesus Cristo. Porque todos os que fostes batizados em Cristo, revestiste-vos de Cristo. Não há judeu, nem grego: não há escravo nem livre; não há macho nem fêmea. Porque todos vós sois um em Jesus Cristo. E se vós sois de Cristo: logo sois vós a semente de Abraahão, os herdeiros segundo a promessa” (Epístola de São Paulo aos Gálatas, 3, 26-29).

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estóica: ele passa a ser um cosmopolita, um homem do mundo. 246 Por aí se explica, também, a cidadania crescente em Roma. O estrangeiro que era o inimigo (hos, hostis), passa a ser o peregrinus e em seguida transforma-se em civis, o cidadão. 247

A idéia de visualizar o Império como condição para o Cristianismo e sua universalização não é sempre aceita. Alguns, como Leonardo Boff, sustentam, no tocante à religião, que o processo de catolicidade gerou um inconveniente afastamento das origens judaicas do Cristianismo. 248 Outros, que o Cristianismo triunfou contra o Império, tratando-os, portanto, como inimigos recíprocos:

“O Cristianismo foi um produto do Império. Numa das grandes ironias da história, o que veio a ser a religião estabelecida do Império começou como um movimento religioso, vai se tornando cada vez mais evidente para muitos que ele catalizou um movimento de renovação de Israel – movimento tanto contra o regime romano como contra a aristocracia sacerdotal de Jerusalém.”

249

É lógico que, independentemente da questão política e do fato de muitos que desejarem transformar Jesus em um zelote revolucionário, em um político engajado nas lutas sociais de seu tempo, o que explicaria a sua instrumentalização pelos movimentos contemporâneos chamados de emancipação e pela Teologia da Libertação, o Poder de Deus presente na encarnação de seu filho unigênito triunfou em face de Roma Imperial, como triunfaria diante de qualquer outro poder. Jesus diz a Pilatos:

246

O Epicurismo e o estoicismo são as escolas filosóficas gregas que vão dominar a filosofia após Aristóteles. O estoicismo vai ser uma espécie de filosofia dominante em Roma, propiciando as bases para o Cristianismo.

247

Cícero, de officiis 1, 12, 37 Hostis enim apud maiores nostros is dicebatur, quem nunc peregrinum dicimus. Na constitutio Antoniana está escrito: omnibus peregrinis qui in orbe sunt civitatem Romanam concedo, omni genere civitatum manente, praeter dediticios. Giambatista Vico lembra que a divisão entre civis e hostis, que significou “hóspede” ou “estrangeiro” e “inimigo”, porquanto as primeiras cidades foram compostas de heróis e dos acolhidos em seus asilos (em cujo sentido devem ser tomados todos os asilos heróicos); como, pelos tempos bárbaros regressados (Idade Média), aos italianos ficou “hospedeiro” por “albergueiro” e para os “alojamentos de guerra”, e “hospedaria” chama-se “albergue” (Giambattista Vico, A Ciência Nova. Trad. Marco Lucchesi. Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 1999)

248

Leonardo Boff, Igreja, Carisma e Poder. Ensaios de Eclesiologia Militante. Petrópolis, Vozes, 1981

249

Cf. Richard A. Horsley, Paulo e o Império. Religião e Poder na Sociedade Imperial Romana, trad. Adail Ubirajara Sobral, São Paulo, Paulus, 2004. Col. Bíblia e Sociologia.

“Meu reino não é deste mundo ... meu reino não é daqui. ” 250 E em outro passo:

“Não terias poder algum sobre mim, se não te houvesse sido dado do alto: por isso, quem a ti me entregou tem maior pecado.” 251

O poder que Jesus impõe a Roma é de natureza espiritual e não temporal ou político:

“Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. 252

A propósito, Pietro de Francisci não tem dúvida que Cristo, sem negar a função do poder temporal e presumindo sua existência como um dado de fato, evitou imiscuir-se ou até de ocupar-se do problema político do império, por que estranho às razões ideais em que era inspirada a Sua pregação e indiferente ao plano da providência divina na redenção da humanidade, ao qual Ele consagrou a Sua vida e a Sua morte. Jesus tornou claro o desejo de separar o plano religioso do político. 253

Apesar dos conflitos entre os cristãos e o governo, no entanto, o poder espiritual do Cristianismo esteve em estreita colaboração com o poder dos imperadores. Alguns poucos estudos modernos recentes sobre Paulo, porém, chamaram atenção para a sua oposição ao Império Romano. 254 O culto ao imperador como deus parece não haver obstado à expansão da nova religião Cristã dos dois primeiros séculos. A religião e a política imperiais eram inseparáveis, mas o culto imperial, realizado nas cidades onde Paulo exercia a sua missão, não chegou a prejudicar o seu apostolado.

É preciso anotar o caráter abrangente do Cristianismo. Se o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, as obras do paganismo não podem ser desprezadas e não o foram. Basta ver a filosofia grega e o direito romano, como, mais do que absorvidos pela

250 João, 18, 36 251 João, 19, 11 252

Sobre essa passagem, ver as considerações a respeito de Dante em apêndice, bem como o texto antológico de Plínio Salgado na Vida de Jesus.

253

Cf. Pietro de Francisci, Arcana Imperii, III, tomo II, Milão, Giuffrè, 1948, p. 47

254

Cf. Richard A. Horsley, op. cit., p. 11. A repeito da relação entre Roma e o Cristianismo, ver Gilvan Ventura da Silva, A Relação estado/Igreja no Império romano (séculos III e IV), in Repensando o Império Romano, cit.

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nova religião, passaram a sustentá-la. Lembremo-nos de Paulo em Atenas, discursando no Areópago:

“Atenienses, sob todos os aspectos sois, eu o vejo, os mais religiosos dos homens. Pois, percorrendo a vossa cidade e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei até um altar, com a inscrição: ‘Ao Deus desconhecido’. Aquele que adorais sem conhecer, eu venho vos anunciar.” 255 Considere-se que os romanos foram o povo mais religioso da história. Viam deuses em todos os lugares e em todos os momentos. Acoimá-los, meramente, de pagãos, não parece ser muito adequado.

Convém compreender bem a relação de Roma com a religião, do prisma jurídico. A liberdade romana não tem o significado político (basta ver a célebre definição de Florentino – D.1.5.4 –

“Liberdade é a faculdade natural de fazer o que se lhe agrada, a não ser que a força ou o direito o proíba.” 256

Impõe-se, todavia, a referência, sempre reiterada à liberdade dos antigos e a dos modernos, conforme Benjamin Constant os conceituou, no célebre discurso, em Paris, no começo do século 19: a liberdade dos antigos, no sentido político, consiste na participação no poder e nas decisões; a dos modernos, no círculo de vida individual, onde o governo do Estado não pode penetrar e onde os direitos individuais estão a salvo. O quadro jurídico- político romano não permite um individualismo. O homem como homem não tem personalidade reconhecida como no liberalismo moderno. No entanto, mesmo quando o Cristianismo tornou-se a religião oficial, Roma não abandonou o seu modelo originário de liberdade religiosa. O Cristianismo reivindicou sua independência, mas Roma continuou sendo uma associação religiosa. A exclusividade do Cristianismo se opôs à variedade dos cultos pagão tolerados até então, ao lado da religião oficial. A partir daí é que se formam as distinções novas entre fiéis, heréticos e incrédulos. 257

255

Atos do Apóstolos, 17, 22-23

256

Libertas est naturalis facultas eius, quod cuique facere libet, nisi si quid vi, aut iure prohibetur.

257

Roma sempre viveu um pluralismo religioso. As perseguições dirigidas contra os judeus e os cristãos tinham uma origem política e não religiosa. 258

A questão que se pode colocar consiste em saber se no Império, de forte inspiração religiosa, cabe um pluralismo de crenças religiosas, distribuídas conforme as culturas nacionais. Essa parece ser uma característica dos “impérios”, conforme observa Maurice Duverger, partindo da distinção [hoje amplamente aceita] assinalada, em 1718, pelo lingüista francês Gabriel Gerard, entre Império e Reino. O Império seria “o Estado vasto e composto de vários povos”. Salvo a utilização do termo “Estado”, a definição tem o mérito de opor-se a reino, menos extenso e fundado sobre “a unidade da nação pelo qual é formado”. Sem entrar na discussão sobre os elementos desses conceitos, saliente-se que Duverger faz uma observação relevante, aproximando o regime imperial da monarquia, distinguindo o titular do poder pela sua sacralidade. Deuses encarnados ou simples mandatários e servidores da divindade, o Imperador e o Rei assumem uma certa função sacerdotal. Os grandes impérios da história se desenvolvem em zonas onde nascem as grandes religiões universalistas. Entre o Mediterrâneo e o sul da Ásia, Buda, Zaratustra, Jesus, Maomé pregaram para todos os homens e não apenas para um povo em particular. O Império modelo foi estabelecido dentro do politeísmo greco-romano, cuja flexibilidade lhe permitiu integrar os deuses dos povos conquistados em um Panteão aberto a todos, antes que Constantino impusesse o reino da cruz. 259 Até mesmo neste ponto, poder-se-ia discutir sobre a universalidade do Cristianismo, capaz de absorver tantas culturas diferentes, oferecendo-lhes uma religião, que não se distingue tanto das religiões presentes naquelas culturas, e por isso sempre muito aceita.

O sistema romano imperial de patronato constituiu uma das condições mais relevantes para a missão de Paulo. No entanto, a leitura das cartas do apóstolo dos gentios indica de maneira clara a sua postura contra o judaísmo, não obstante a sua origem, como também contra os regentes de sua época, o mundo passageiro, o século mau e etc.

Assim, a idéia de conciliar o Império com o Cristianismo não implica afastar uma espécie de Evangelho anti-imperial, presente nas Cartas de Paulo. No fundo, o

258

Idem, ibidem.

259

Maurice Duverger (org.), Le Concept d’Empire, Paris, Presses Universitaires de France, 1980, p. 8

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desdobramento do que disse o Senhor (“meu reino não é deste mundo”); como, também, não desconsidera as passagens da Epístola aos Romanos:

“Submetam-se todos às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram instituídas por Deus...” 260 O que, aliás, longe está de justificar as tiranias.

O Império mais do que condição para a expansão do Cristianismo vai transformar- se em defensor e depositário da nova religião.

A relação entre império e religião será uma constante. 261 Na passagem, já mencionada, da cidade (polis) como unidade política para a existência do Império, o elemento religioso é indispensável. As famílias e gens romanas, que redundaram na cidade, tiveram como elemento comum a religião. Aliás, o conhecido livro de Fustel des Coulanges (A cidade antiga) demonstra que todos os institutos jurídicos derivam da religião, consagrando-se, assim, a idéia de que a cultura tem sempre origem religiosa,262 sendo que o direito, como fenômeno cultural e integrante do mundo da cultura, tem suas raízes na religião. As famílias tinham, como elo entre os seus membros, a religião (os deuses lares, o culto dos antepassados). Tudo parece opor-se ao “materialismo histórico”, bem substituído pelo “espiritualismo histórico”. Para Fustel des Coulanges, a história não estuda somente os fatos materiais e as instituições, mas o seu verdadeiro objeto de estudo é a alma humana. A história deve aspirar a conhecer aquilo que aquela alma tem acreditado, pensado, sentido nas diferentes idades da vida do gênero humano.263 O que domina a família e a cidade antiga é a religião: o culto doméstico, o fogo do lararium é real, não uma metáfora, cada família é separada das outras pelo seu culto próprio. A religião vê o outro como estrangeiro, não como um irmão. O outro tem outra religião. Na Antigüidade, cada povo tem o seu deus. Quando as famílias se agrupam em gentes, as gentes em tribos e estas em cidades, nestas haverá uma unidade de culto às divindades, culto que, superposto ao culto familiar, não o suprimirá. A cidade antiga, ao dilatar-se em Império, nada altera do prisma religioso. O Império pressupõe o mesmo caráter religioso: o universo é um e

260

Romanos 13, 1-7

261

Ver Étienne Gilson, Les métamorphoses de la cité de Dieu. Paris, Vrin, 2005

262

Ver a respeito, os trabalhos de Adolpho Crippa, A Sacralidade da Cultura, São Paulo, Convívio, 1973 e de Vicente Ferreira da Silva, A origem religiosa da Cultura, Obras Completas, São Paulo, Instituto Brasileiro de Filosofia, 1964.

constitui, em um certo sentido, uma Cidade única. Os estóicos pensavam assim. Aceitar a unidade da ordem cósmica é a primeira regra da sabedoria. Por essa aceitação, o sábio deseja ser solidário a uma ordem muito mais vasta do que a sociedade política particular, onde ele nasceu. Daí a cosmovisão do estoicismo. O homem é um ser cosmopolita: um cidadão do universo, de uma cidade mais alta de todas. Marco Aurélio dirá:

“Como Antonino, tenho Roma por pátria; como o homem, o mundo.” Naquela frase, a palavra “pátria” é usada duas vezes com o mesmo sentido. Roma é uma sociedade de homens, o mundo é uma ordem de coisas. O sábio estóico é um cosmopolita, mas apenas de uma parte, pois o universo é muito mais vasto do que uma sociedade, mesmo que este se estenda ao máximo, pois jamais logrará estender-se a todos os limites da terra. Mas, como a ordem cósmica universal não é uma sociedade, o sábio estóico não será um cidadão. Os estóicos parecem ter concebido o ideal de uma sociedade universal coextensiva ao planeta e capaz de unir a totalidade dos humanos. 264

Na filosofia estóica, o universo é concebido como uma unidade inteligível e racional. A crença estóica em um mundo-estado nada mais é do que o aspecto político daquela concepção filosófica. 265

O Universo era uma Substância, a Razão Divina. Razão, Deus, Natureza (phisis) eram palavras sinônimas dessa essência ineligível e homogênea do Universo. Uma sociedade política universal fazia parte do ideário estóico. Ao lado dessa sociedade uma lei da natureza a que todos devem submeter-se. Não devemos viver em cidade (polis) e em povo (demos), caracterizados por normas jurídicas separadas, mas todos os homens devem ser considerados como companheiros do povo e de cidade. Há de haver uma única vida e ordem (cosmos), assim como um único rebanho alimentando-se em um pasto (nomos) comum. 266

Não é impossível que o cosmopolitismo estóico tenha indiretamente contribuído para o surgimento de uma “sociedade” universal, porque, afinal, os estóicos concebiam o

263

Fustel des Coulanges, A Cidade Antiga.

264

cf. Étienne Gilson, op. cit. p.18

265

Cf. Ernest Barker, “O Conceito de Império” in O legado de Roma, Cyrel Bailey (org.). Rio de Janeiro, Imago, 1992.

266

Cf. Ernest Barker, op. cit., ibidem. A palavra cosmo significa ordem e, também, mundo; a palavra nómos significa “lei” e “pasto”.

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universo unificado e ligado por uma força harmônica ou por uma “simpatia” que poderia inspirar o desejo de unir todas os homens por um liame de uma só e única lei.267

Ainda na relação entre Império e Religião, a figura de Posidônio de Apaméia, que ensinou em Rodes no último século antes de Cristo (Cícero teria sido seu aluno). Ele uniu o estoicismo ao platonismo e às religiões orientais. Ele teria revelado a mentalidade do mundo grego na era cristã. Sua intenção: fazer com que os homens se sentissem em casa no Universo. O Universo para ele dividia-se entre o éter que estava acima e o mundo dos homens abaixo: uma grande cidade, da qual homens e deuses eram cidadãos. Os mortos ascendiam ao éter e a Deus. Tornava-se, assim, razoável a sua deificação, quanto mais a dos monarcas orientais. Os grandes mortos voltavam para Deus e mesmo os grandes vivos poderiam ser considerados como enviados da Providência para salvarem a humanidade. A filosofia de Posidônio é uma religião, que funde o estoicismo com os mistérios gregos de Platão e dos Pitagóricos. Não é impossível que o sistema de Posidônio tenha sido absorvido por Roma, a qual, como as outras cidades, tinha o seu culto próprio. Essa fusão de cultos e a crença de um único Deus do Universo é bem uma preparação para o Cristianismo; uma única religião para um único Universo político. 268

Vê-se como isso faz sentido para o Império e a unidade do direito, se atentarmos para as discutidas etimologias de ius e lex, iungere (jungir) e ligare (ligar). Os homens todos ligados pelo direito.

Alexandre, o Grande, já lembrado, não dividia os homens entre gregos e bárbaros, como o seu preceptor Aristóteles aconselhara. Ele levou adiante a empresa não somente de conquistar, mas de civilizar o globo, introduzindo em todos os lugares, com a religião e a filosofia dos gregos, a ordem comum que impunha o respeito as suas próprias leis. Conquistar para civilizar, civilizar para unir, tal era o seu ideal, na expressão de Gilson.269

Uma evolução análoga se deu em Roma, onde o estoicismo latino de Sêneca fundava-se em uma única pátria, o mundo. Uma única cidade, comum aos homens e aos deuses, abrangendo a realidade total ligada pela necessidade de suas leis, é

267

Cf. Étienne Gilson, op. cit. p.18.

268

Idem, ibidem.

269

verdadeiramente a pátria do sábio estóico.270 A teoria estóica da simpatia universal encontra no “cosmopolitismo” uma aplicação social e política. O sábio não é somente o cidadão do país onde ele vive, é um cidadão do mundo. Uma personagem pode dizer: - “Bem amada cidade de Atenas!”, mas tu não podes dizer:-“Ó bem amada cidade de Zeus!”. Não foi por acaso que o estoicismo floresceu primeiro em Atenas e depois em Roma. Essas cidades foram largamente expostas às influências estrangeiras. Pertencia ao passado a época, na qual o que não era grego era bárbaro e na qual o cidadão romano opunha a todos os não romanos, com orgulho, a força de suas legiões, o direito de seus juristas, e a sua civilização. Por isso, Diógenes se escondia em um barril, abstraindo-se do mundo. Com o estoicismo, sabe-se que o que não for útil à colméia não serve à abelha (Marco Aurélio, Pensamentos). A lei universal deve reinar na natureza e nas cidades. Não tem cabimento um mundo dividido em cidades e cada povo tendo o seu direito particular, vendo os outros como estrangeiros e como inimigos. Todos os homens são cidadãos da República de Zeus; eles devem viver unidos sob uma lei comum, como um rebanho guiado por um único

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