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Justiniano e Virgílio

1. Justiniano e Virgílio

As relações entre Justiniano e Virgílio no tocante ao direito, dada a evidente inspiração do Poeta no Imperador, envolve inúmeros aspectos presentes na obra jurídica monumental do direito justinianeu.213

Tais aspectos estão relacionados entre si, embora possam ser uma decorrência da idéia de imperium, v.g. ius naturale, escravidão, classificação das coisas.

Justiniano recorre a Virgílio para explicar o significado da expressão ius civile, nas Institutas 1,2,2:

“Mas o ius civile toma seu nome da cidade a que pertence, como, por exemplo, o dos atenienses; por isso não se erra ao afirmar que as leis de Sólon ou de Drácon podem ser chamadas de ius civile dos atenienses; assim chamamos o direito que o povo romano usa de ius civile dos Romanos, ou direito quiritário, o direito usado pelos Quirites. Os Romanos são chamados de Quirites por causa de Quirino. Mas quando dizemos direito, sem acrescentar de que cidade, queremos designar o nosso direito, de igual maneira quando se diz o poeta, sem dizer algum nome, entre os gregos está referido Homero e entre nós Virgílio.”214

Para compreender a implicação do recurso justinianeu a Vírgilio, deve-se levar em conta não ser ele uma imitação Jurisprudencial ou retórica. Está presente em outros passos

213

O tema está tratado em dois verbetes subscritos por Pierangelo Catalano na cit. Enciclopedia Virgiliana, com apoio nas fontes e com extensa bibliografia (cf. verbetes Giustiniano e ius/iustitia/Iustitia).

214

Sed ius quidem civile ex unaquaque civitate appellatur, veluti Atheniensium: nam si quis velit Solonis vel Draconis leges appellare ius civile Atheniensium, non erraverit. sic enim et ius quo populus Romanus utitur ius civile Romanorum appellamus, vel ius Quiritium, quo Quirites utuntur; Romani enim a Quirino Quirites appellantur. sed quotiens non addimus, cuius sit civitatis, nostrum ius significamus: sicuti cum poetam dicimus nec addimus nomen, subauditur apud Graecos egregius Homerus, apud nos Vergilius.

das Institutas e do Digesto (especialmente quanto ao ius naturale), de duas constituições, respectivamente dos anos 535 e 537: Novellae 25 e 48.

A teoria virgiliana da continuidade do poder de Enéiasa Rômulo e a Augusto vem expressa em termos justinianeus no prefácio da Novella 48, de 1º de setembro de 537.215 Essa constituição tem um valor ideológico singular. No Praefatio, em coerência com outras constituições, há uma conexão da novidade legislativa com um antigo fundamento histórico. A nova regulamentação vem colocada no quadro geral da relação entre tempo e poder imperial (basileia) e, deve-se levar em conta a teoria da eternidade imperial e talvez, também, a concepção do poder imperial, segundo a qual esse pode determinar juridicamente o tempo.216

Está no Praefatio:

“Há de se considerar, sobretudo, mais responsável o documento, a ata, e em geral, o instrumento inventado pelos homens, para a memória de um tempo, que está também decorado pela existência do Império. Porque os cônsules, as indicações, e em geral qualquer indício dos tempos, que utilizamos, são certamente também significativos, acaso alguém o queira, e não abolimos coisa alguma, senão acrescentamos algo, para que com outras mais perfeitas seja designado o curso do tempo.”

A Novella 48 indica três origens ou princípios da basiléia: “o basileus troiano Enéiasdeu início à nossa politéia e por isso somos chamados Eneádes”; pela “segunda origem” aparece entre os homens o nome “romanos”: do basileu Rômulo e Numa (um fundou a polis e o outro a ordenou e a adornou com os nomoi; no terceiro princípio encontram-se César, “o Grande” e Augusto, “o santo”, dos quais deriva “a nossa politéia”, que agora tem poderes imortais. Supera-se o duplo significado da palavra grega “basileu” (= rex, = imperator).

“Por que se alguém lançar um olhar aos tempos mais remotos de todos os antigos da República, Enéas, rei troiano, foi para nós o fundador da república, e por ele somos chamados Eneádes, e se alguém também se fixar em

215

Utilizo-me da numeração e data da trad. de García del Corral

216

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um segundo, desde que brilhou com esplendor entre os homens o nome dos romanos, o constituiram Rômulo e Numa, aquele certamente edificando a cidade, e este ordenando-a e enaltecendo-a com leis; e se também qualquer um tomasse, ainda, um terceiro começo do império, encontrará o grande César e o Augusto Pio, e deste modo subsistindo esta república, que agora existe, e que seja imortal, procedendo daqueles. Será pois absurdo que nos documentos e nas atuações que se fazem em Juízo, e absolutamente em todos aqueles instrumentos nos quais se faz alguma memória do tempo, não se anteponha o império.”217

Na Eneida encontram-se referidos Rômulo, César, Augusto e Numa e, como vimos, várias vezes a referência a imperium, em seus vários significados. Tudo no livro 6, onde imperium aparece em atinência aos deuses, ao primeiro cônsul Bruto e ao “Romano”, isto é, ao povo.218

No aspecto espacial, ver Novella 30, 11, 2, confrontando-a com Eneida 1, 286-87 Nascerá Troiano pela bela origem de César, que dará o Oceano como limite ao Império e fama até o fim dos astros.. 219

Na Novella está escrito que nós, os romanos, por graça de Deus, levamos a paz a vários povos e temos a esperança de que Deus nos concederá a retenção das demais regiões que os antigos romanos possuiam até os confins de ambos os oceanos (prisci Romani usque ad utriusque Oceani fines tenentes). De igual maneira e sentido, na Novella 9:

217

Idem, ibidem. Na citada Novella: Si quis enim respexerit ad vetustissima omnium et antiqua reipublicae, Aeneas nobis Troianus rex reipublicae princeps est nosque Aeneadae ab illo vocamur; sive quis etiam ad secunda principia respexerit, ex quo pure Romanorum nomen apud homines cosruscavit, reges eam constituerunt Romulus et Numa, ille quidem civitatem aedificans, ille autem eam legibus ordinans et exornans; sive etiam tertia principia sumat quilibet imperii, Cesarem maximum et Augustum pium et ita rempublicam nobis inveniet hanc quae nunc est valentem, sitque immortalis ab illis procedens. Erit ergo absurdum in documentis et iis, quae in iudiciis agunturm et absolute in omnibus, in quibus memoria quaedam fit temporum, non imperium his praeponi.

218

Cf. retro a transcrição em notas dos versos do livro 6, 777-812. Di, quibus imperium est animarum umbraeque silentes, (6,264) – Deuses que tendes o império sobre as almas e as sombras silenciosas; imperiis egere suis (6, 463) – estar privado do seu império; Consulis imperium hic primus saeuasque secures (6, 819) – este primeiro receberá o império de cônsul e a machadinha; tu regere imperio populos, Romane, memento (6, 851).

219

Omnes terrae, omnes insulae totius occidentis, quae usque ad ipsos oceanis recessus.

Quanto ao aspecto pessoal (liberdade, cidadania), v. Novella 78, 4, 1, e a conexão com a constitutio Antoniniana e com a physis pela natalium restitutio, cf. Eneida 8, 648

Os Eneades - Romanos avançavam contra o ferro em defesa da liberdade 220;

6, 821, a propósito de Brutus:

ad poenam pulchra pro libertate vocabit.

Há certa oposição formal e literal entre a concepção poética do Império (E 1, 279) imperium sine fine 221 e a jurídica mais antiga resultante da leitura das Institutas 1, 12, 5., a propósito do ius postimini:

“...de igual maneira os antigos têm visto no finem limes uma espécie de solo, de onde se tem dito limes para dizer ‘fronteira’, limite.” 222

Daí o postliminium. Em igual sentido o D. 49.15.30. No conceito de cidade fortificada ou pequena cidade está, também, a idéia de território referida a ele e não ao império. De fato, no D. 50.16.239.7, lê-se

Oppidum [cidade fortificada – pequena cidade] vem de ops [segurança], porque para isso se constróem as muralhas. 223

Verifica-se, outrossim, a idéia de território vinculada à Urbs, no D. 50.16.239.6: chama-se urbs de urbum [esteva de arado]; urbanizar é preparar com o arado; e diz Varo que se chama urbum a curvatura do arado que se costuma empregar para fundar uma cidade (urbs) 224. O sulco traçado na terra delimita a cidade e marca o seu espaço e marca o seu espaço sagrado, que não se pode ultrapassar, sob pena de desobediência aos deuses

220

Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant

221

E 1,277-8 His ego nec metas rerum nec tempora pono, imperium sine fine dedi.

222

imperii finem limen esse veteres voluerunt. hinc et limes dictus est quasi finis quidam et terminus. Sobre território, ver capítulos IV e IX.

223

Oppidum ab ops dicitur, quod eius rei causa moenia sint constituta.

224

Urbs ab verbo, appellata est; urbare est aratro definire. Et Varus ait urbum appelari curvaturam aratri, quod in urbe condenda adhiberi solet.

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(causa da morte de Remo). A concepção de Império universal, própria do direito justinianeu (seja no que toca às pessoa, seja quanto ao espaço) atenua aquela oposição. Na verdade, sempre que fala em território, ele está referido à civitas ou à urbs, não ao império. Mais complexa e menos Virgiliana são as implicações ideológicas das referências aos “tempos de Enéiase de Rômulo”, contida no proêmio da Novella 25, do ano 535, 225 quando se iniciou uma série de constituições, por intermédio das quais Justiniano tende a restaurar a universalidade do Império Romano, renovando a administração (ver as Novellae 24-26, de 17 de maio de 535, dispondo sobre a instituição de pretores em Pisídia, Licaônica e Trácia).

A Novella 25 interessa porque, no tocante aos liames entre os Romanos e os Licaones, refere-se a um tempo anterior ao de Enéiase Rômulo, quando Licaone, rei da Arcádia, habitou também a terra dos Romanos (Romanorum terra).

O prefácio da Novella 25 desenvolve então uma função de enquadramento histórico-sistemático não contrastante, senão de todo coincidente, com aquela mais precisamente Virgiliana, constante da Novella 48.

A lenda de Enéiashavia permitido a Virgílio desenvolver um sicretismo relativo a Rômulo, inserindo até elementos gregos, e, segundo essa linha, dava relevo aos Árcades na pré-história romana. Tudo isso convém a um imperador que reside na Nova Roma.

O reino dos Árcades desenvolve por isso, na concepção de Justiniano a função de um liame com a idade originária, comum a toda a humanidade, que vem codificada na legislação. Na concepção justinianéia de direito, lembra Catalano 226, expressa especialmente nas Institutas e no Digesto, está compreendida a existência de uma idade originária sem guerra, sem escravidão, sem propriedade privada.

A inspiração poética, que transparece na concepção sistemática histórica das Novellae 25 e 48, ilumina retrospectivamente o paralelo justinianeu entre o nome do poeta e aquele do ius civile, formulado nas Institutas (promulgada em 21 de novembro de 533), 1, 2. 2, já transcrito.

225

Dicimus autem haec, quippe vetera multo Aeneae et temporibus antiquiora.

226

Outro ponto de viva aproximação entre Virgílio e Justiniano, com repercussão na construção do conceito de império, está nas res communes omnium segundo o ius naturale.

Assim nas Institutas 2, 1 pr. , distinguem-se as res communes omnium da res publicae:

“Mas algumas (coisas) por direito natural são comuns a todos, outras são públicas, outras universalidades, outras de ninguém e a maior parte de particulares, sendo que essas podem ser adquiridas por diversas maneiras. E, segundo o direito natural são coisas comuns a todos: o ar, a água corrente, o mar e seu litoral. Ninguém é proibido de acercar-se do litoral do mar, mas deve abster-se de causar dano às aldeias, aos monumentos e edifício, porque não são, como o mar, do direito das gentes.”227

No texto de Marciano (D. 1. 8. 2. 1), idêntica concepção:

E certamente são comuns a todos, por direito natural: o ar, a água corrente, o mar e, por isso, o seu litoral. 228

Na Eneida (1,539-40; 7, 229-30), presente a idéia de que o mar e o seu litoral pertencem a todos.

“Que gênero [cartagineses] de homens é este? Que pátria bárbara permite este uso? Proíbe-se o refúgio nas praias”. “Rogamos aos deuses pátrios uma pequena sede e um inócuo rio, e água e especa livres para todos”. 229

Justiniano segue essa linha, de uma interpretação universal (ecumênica), também pelas palavras de Celso em D. 43.8.3 pr.

227

quaedam enim naturali iure communia sunt omnium, quaedam publica, quaedam universitatis, quaedam nullius, pleraque singulorum, quae variis ex causis cuique adquiruntur, sicut ex subiectis apparebit. Et quidem naturali iure communia sunt omnium haec: aer et aqua profluens et mare et per hoc litora maris. nemo igitur ad litus maris accedere prohibetur, dum tamen villis et monumentis et aedificiis abstineat, quia non sunt iuris gentium, sicut et mare.

228

Et quidem naturali iure omnium communia sunt illa: aer, aqua profluens, et mare, et per hoc litora maris

229

E. 1, 539-40: Quod genus hoc hominum? Quaeue hunc tam barbara morem / permittit patria? Hospitio prohibemur harenae; E. 7, 229-30: dis sedem exiguam patriis litusque rogamus / innocuum et cunctis undamque auramque patentem.

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“Os litorais nos quais o povo romano exerce o império são desse povo.”230

A conformidade dessa concepção com ius naturale é evidente, levando-se, ainda, em conta o fragmento de Ulpiano no D. 50.17.32

quod ad ius naturale attinet, omnes homines aequales sunt.

Catalano lembra que o esquema argumentativo da teoria do ius naturale que reconduz esse ius a um início feliz da história dos homens, anterior à luta e divisões produzidas pela sociedade, encontra-se de maneira repetitiva no Digesto 1.1.4.

“As manumissões são também do direito das gentes. Manumissão deriva de manumissio, isto é, da doação de liberdade; porque enquanto alguém está em escravidão, está debaixo da mão e do poder, e manumitido se livra desse poder. A manumissão tem origem no direito das gentes, pois como, por direito natural todos os homens nasceram livres, não se conhecia a manumissão, desconhecendo-se as escravidões; mas depois que apareceu pelo direito das gentes a escravidão, seguiu-se o benefício da manumissão; e como chamávamos aos homens com um só nome natural, começou a existir, pelo direito das gentes, três classes: livres, escravos em oposição a estes, e uma terceira classe, a dos libertos, isto é, aqueles que haviam deixado de ser escravos.” 231

E no Digesto 1.1.5.

“Por esse direito das gentes introduziram-se as guerras, dividiram-se os povos (gentes), fundaram-se os reinos, distinguiram-se os domínios, estabeleceram-se limites aos campos, construíram-se edifícios e instituíram-se

230

Litora, in quae populus romanus imperium habet, populi romani esse arbitror.

231

D. 1.1.4 Ulpianus 1 inst. Manumissiones quoque iuris gentium sunt. est autem manumissio de manu missio, id est datio libertatis: nam quamdiu quis in servitute est, manui et potestati suppositus est, manumissus liberatur potestate. quae res a iure gentium originem sumpsit, utpote cum iure naturali omnes liberi nascerentur nec esset nota manumissio, cum servitus esset incognita: sed posteaquam iure gentium servitus invasit, secutum est beneficium manumissionis. et cum uno naturali nomine homines appellaremur, iure gentium tria genera esse coeperunt: liberi et his contrarium servi et tertium genus liberti, id est hi qui desierant esse servi.

o comércio, as compras, as vendas, os arrendamentos, as locações e as obrigações, à exceção de algumas que foram introduzidas pelo ius civile” 232, como, também, no passo já transcrito das Institutas 1.2.2.

Os reinos, a propriedade, o comércio, assim como a guerra, são institutos do ius gentium e não se reportam ao início da história dos homens.

Tudo isso se harmoniza com a doutrina de Ulpiano sobre o direito natural, no sentido de que esse não é próprio e exclusivo do gênero humano, mas comum a todos os animais (D. 1.1.3; Institutas 1.2 pr)233 E, também, com a origem divina do ius naturale, Institutas 1.2.11: mas os direitos (iura) naturais, observados por todas as gentes e constituídas pela Providência divina, permanecem sempre firmes e imutáveis: no entanto, aquelas leis constituídas pela cidade, costumam sempre serem alteradas ou pelo consenso do povo ou por leis posteriores.234

O jusnaturalismo de Justiniano tem raízes, até mesmo do prisma religioso, na tradição jurisprudencial filosófica précristã. Na Constituição Tanta, ele escreve que as coisas divinas são muito perfeitas, mas que o direito humano tende sempre ao progresso pela sua própria condição e nada contém que possa ser imutável, pois a natureza não cessa de oferecer novas formas. Podem surgir novos negócios jurídicos que não estejam regulados pela lei. Se tal ocorrer, deve-se solicitar o remédio ao Imperador, pois Deus colocou a graça imperial à frentes das coisas humanas para poder emendar e ajustar todas as novidades, ordenando-as com as medidas e regras correspondentes. E isso não é dito

232

D.1.1.5 Hermogenianus 1 iuris epit. Ex hoc iure gentium introducta bella, discretae gentes, regna condita, dominia distincta, agris termini positi, aedificia collocata, commercium, emptiones venditiones, locationes conductiones, obligationes institutae: exceptis quibusdam quae iure civili introductae sunt.

233

D.1.1.1.3. Ulpianus, libro I, Institutionum. Ius naturale est, quod natura omnia animalia docuit: nam ius istud non humani generis proprium, sed omnium animalium, quae in terra, quae in mari nascuntur, avium quoque commune est. hinc descendit maris atque feminae coniunctio, quam nos matrimonium appellamus, hinc liberorum procreatio, hinc educatio: videmus etenim cetera quoque animalia, feras etiam istius iuris peritia censeri. (O direito natural é aquele que a natureza ensinou a todos os animais, pois este direito não é peculiar do gênero humano, senão comum a todos os animais, que nascem na terra e no mar, e, também, às aves. Daqui procede a conjunção a que chamamos matrimônio, daqui a procriação dos filhos, daqui a educação; pois vemos que os demais animais, mesmo as feras, se governam pelo conhecimento desse direito.)

234

Sed naturalia quidem iura, quae apud omnes gentes peraeque servantur, divina quadam providentia constituta, semper firma atque immutabilia permanent: ea vero quae ipsa sibi quaeque civitas constituit, saepe mutari solent vel tacito consensu populi vel alia postea lege lata.

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pela primeira vez por ele, Justiniano. Há um antigo precedente, uma vez que Juliano, agudíssimo jurisconsulto e autor do Edito Perpétuo, o disse em suas próprias obras que se algo resulta incompleto, se preencha com a sanção imperial. E, não só ele, como também, Adriano, de consagrada memória, disse que se faltasse algo ao Edito, a nova autoridade poderia dispor conforme as regras, princípios e analogias do próprio Edito. 235

A correspondência entre Virgílio e Justiniano, no tocante ao direito natural, pode ser de inspiração neo-pitagórica de Virgílio ou néo-platônica de alguns juristas do século III, seja ainda pela arcaica concepção jurídica-religiosa refletida nas Saturnália, seja no paganismo de Triboniano. De uma primeira evidência, lembra Catalano, as Geórgicas 4, 149 ss.

Nunc age, naturas apibus quas Iuppiter ipse /addidit, expediam.../ Solae communis natos, consortia tecta/ urbis habent magnisque agitant sub legibus aevum.

As leis da natureza são imutáveis 236 D. 1.1.11 e Institutas 1.2. e dizem respeito aos homens e animais D.1.1.1.3-4 e Institutas 1,2, pr., além de serem de origem divina D.1.3.2; Institutas. 1.2.11

Aliás, a concepção virgiliana na Eneida, vinculando o direito à religião, conecta-se com uma visão ecumênica e – por que não dizer? – imperial. Iura dare é atividade de Júpiter:

“Ó Júpiter – dizei de fato que dás direitos aos hóspedes – faz que este dia seja alegre aos Tiris e aos fugitivos de Tróia, de tal maneira que os nossos descendentes o recordem”.237

A expressão iura dare envolve, freqüentemente nas fontes literárias, o direito divino e humano de um povo, tanto no tocante à natureza como às fontes, as rebus iudicialibus e as extra res iudiciales. Faz-se, assim, a relação entre Deus e os homens.

235

Constitutio Tanta, 18. Ver, também, a Novella 98 praef.

236

D. 1.1.11. Ius pluribus modis dicitur: uno modo, cum id quod semper aequum ac bonum est ius dicitur, ut est ius naturale.

237

E. 1, 731: “Iuppiter (hospitibus nam te date iura locuntur), hunc laetum Tyriisque diem Troiaque profectis esse velis nostro que huius meninisse minores”.

A vigência dos iura dados por Júpiter supera o âmbito dos povos particulares. Os iura regulam o comportamento dos hospites (E. 1, 731, cit.) e definem, como vimos, a situação do litoral do mar (E. 1, 539-40, cit.).

Atente-se que as palavras hospes, itis; hostis, is; peregrinus, a, um; inimicus, i, se entrelaçam em seus significados: estrangeiro-hóspede-inimigo. Mais tarde todos civis (cidadãos). Os iura são para todos.

Essas considerações sobre os iura dados a todos por Deus servem para a compreensão verdadeira do ius, afastando, ainda, a visualização de um imperialismo jurídico. Além da universalidade da dação divina, há um forte elemento de justiça distributiva:

“Então aos pés da deusa, no meio das testeiras do templo, com armas na cintura, assenta-se no trono. Dava leis e direito aos homens, dividia a fadiga dos trabalhos em partes justas, ou trazia a sorte”. 238

Assim, os iura dados a todos, mesmo aos inimigos; o conceito de res communes omnium, reafirmados pelo rei Príamo à morte contra Pirro 239, ajudam a afastar as deturpações modernas relativas às palavras ius e imperium. Quanto ao uso equivocado do

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