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IMPACTO AMBIENTAL DA PRIMEIRA MINERAÇÃO E DA META‑ LURGIA ESPECIALIZADA NO SUDOESTE DA PENÍNSULA IBÉ‑

No documento Radiocarbon dating of aeolianite formation (páginas 190-195)

DA PENÍNSULA IBÉRICA

2. IMPACTO AMBIENTAL DA PRIMEIRA MINERAÇÃO E DA META‑ LURGIA ESPECIALIZADA NO SUDOESTE DA PENÍNSULA IBÉ‑

RICA: O PROJECTO ODIEL

2.1. Cabezo Juré e a actividade mineira e metalúrgica no Sudoeste peninsular

O surgimento dos primeiros centros de poder no seio dos grandes vales localizados no Sul da Península Ibérica (Guadalquivir e Guadiana), consequência da intensificação agrícola que observamos a partir do IV Milénio A.N.E., converteu a Faixa Piritosa Ibé- rica numa região mineira pautada por um complexo mosaico social onde despontou uma economia tecnológica e socialmente especializada na produção de objectos de cobre. A referência empírica mais notável para explicar as relações sociais que a susten- taram é, sem sombra de dúvida, o povoado de Cabezo Juré (Alosno, Huelva) (Nocete 2004, 2006) (Fig. 2).

A análise do registo arqueológico de Cabezo Juré permitiu identificar uma comuni- dade especializada na mineração e metalurgia do cobre desde os inícios do III Milénio A.N.E. (Nocete et al. 2011). Esta especialização manifesta -se pela presença de minério de cobre (malaquite, azurite, cuprite, tenorite, calcopirite, etc.), de instrumentos de pro- dução (estruturas de redução de minério, cadinhos, algaravizes, etc.) e de transformação (martelos, moldes), assim como restos da produção metalúrgica (escórias) e de produtos

Fig. 2 – Localização dos sítios arqueológicos referidos no texto. Legenda: 1 – Valencina de la Concep-

ción; 2 – Cabezo Juré; 3 – La Junta; 4 – Santa Justa; 5 – João Marques; 6 – Santa Rita.

Fig. 2 – Location of archaeological sites mentioned in the text: 1 – Valencina de la Concepción; 2 –

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metálicos em distintos processos de manufacturação (machados, lâminas, cinzéis, pun- ções, etc.). Esta vocação económica parece corroborada pela ausência de instrumentos directamente associados à actividade agrícola e pela inexistência de cereais no registo polínico.

Quando se comparam as evidências da actividade metalúrgica com os diferentes con- textos espaciais é possível observar algumas particularidades na organização interna do povoado durante toda a sua sequência cronológica de ocupação.

Na parte mais elevada foram detectadas várias unidades habitacionais delimita- das por muros e protegidas por grandes afloramentos rochosos. A presença de restos de fauna (malacológica e mamalógica) e recipientes de cerâmica, dispostas em redor de estruturas de combustão, revela uma área generalizada de consumo alimentício. No entanto, se durante as Fases 1 e 2 não são detectadas grandes modificações na organização interna desta área, na Fase 3 são perceptíveis alterações através da cons- trução de novas estruturas que ampliam a área ocupada. Ao contrário dos outros âmbitos espaciais que, a partir de 2200 A.N.E. são abandonados, esta área apresenta evidências de uma ocupação curta e de cariz agrícola, entre 2200 e 2000/1800 A.N.E. (Fase 4).

Na vertente norte do cerro, a informação arqueológica encontra -se amputada tanto pelos efeitos da mineração contemporânea de manganésio como pela forte erosão que inci- diu nesta área. No entanto, numa pequena zona protegida pelos afloramentos existentes, foi possível documentar um contexto arqueológico que define a existência de um espaço multifuncional, organizado em redor de estruturas de combustão inseridas em pequenas cavidades naturais. Porém, coincidindo com as alterações verificadas na plataforma mais elevada, durante a Fase 3, este sector parece ter sido transformado numa área de armaze- namento de cereais (presença exclusiva de grandes contentores de cerâmica), sugerindo o incremento da divisão social do trabalho.

Na vertente oposta, numa área orientada aos ventos dominantes e afastada dos âmbitos domésticos, foram escavados vários níveis de ocupação associados a estru- turas metalúrgicas. A análise isotópica (Pb) do minério documentado nestes contex- tos indica que a captação de matéria -prima ocorreu nas zonas de enriquecimento supergénico das jazidas de sulfuretos polimetálicos da zona de Tharsis, revelando tanto trabalhos mineiros em profundidade como uma estratégia económica que pri- vilegiou o controlo defensivo dos recursos, aumentando assim os custos inerentes ao seu transporte, uma vez que a actividade metalúrgica não se desenvolveu nas áreas de aprovisionamento. Por sua vez, o estudo químico e mineralógico de escórias revela que o processo metalúrgico foi realizado em duas etapas: a primeira etapa de redução do minério foi efectuada em fornalhas metalúrgicas, recorrendo à ajuda de fundentes e ventilação assistida por algaravizes e foles, utilizando espécies arbóreas e arbustivas de alto poder calorífico que permitiram alcançar temperaturas de aproximadamente 1200ºC; a segunda etapa, de fundição, foi realizada em cadinhos de cerâmica a tempe- raturas ligeiramente inferiores (Sáez et al. 2003) (Fig. 3).

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2.2. Impacto local

O impacto sobre a vegetação envolvente foi uma das consequências mais visíveis da actividade mineira e metalúrgica em Cabezo Juré. Os estudos polínicos e antracoló- gicos (Rodríguez -Ariza 2004; Ruiz Sánchez 2004) sugerem a existência de um processo de desflorestação intensivo e sistemático aparentemente associado ao incremento da actividade mineira e metalúrgica no povoado (Nocete 2004) (Fig. 4).

Os registos polínicos da primeira fase de ocupação do local evidenciam um coberto vegetal típico de um bosque mediterrânico já degradado, dominado por azinheiras, com uma proporção de 13% de espécies arbóreas, 21% de espécies arbustivas e 66% de herbáceas. Porém, nas fases seguintes (Fase 2 e 3), registou -se um processo de des-

Fig. 3 – Cabezo Juré: sequência estratigráfica da sobreposição de fornos metalúrgicos e respectiva

datação directa por radiocarbono. Detalhe de um dos fornos metalúrgicos em processo de escavação (adaptado de Nocete et al. 2011).

Fig. 3 – Cabezo Juré: Direct chronology in the long sequence of metallurgical furnaces, annexes smelting

installations from the southern hillside and a photograph of a furnace (from Nocete et al. 2011)

Fig. 4 – Sequência cronológica por fases da evolução do coberto vegetal em Cabezo Juré: pólen arbó-

reo, arbustivo e herbáceo (adaptado de Nocete et al. 2005a).

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florestação gradual que terá originado o acentuado decréscimo da cobertura arbórea da área, coincidindo com o aumento de arbustos e herbáceas (Cistus ou Erica, nas espécies arbustivas; e Compositae, Liguliflora, Caryophyllaceae, Cruciferae, Urticae,

Chenopodiaceae, Centaureae, Rumex, Scrophulariaceae, Umbellifera, Artemisia, Plan‑ tago, Crassulaceae, etc., nas herbáceas), dando origem a uma paisagem dominada por

espécies ruderais. A ausência de cereais nas análises polínicas, associado à inexistência de instrumentos relacionados com a actividade agrícola, sugere que este processo de alteração antrópica da paisagem não terá estado associado à prática agrícola (Nocete 2004; Nocete et al. 2005a).

Paralelamente, a análise dos carvões recuperados no interior das estruturas meta- lúrgicas (fornalhas) indicam que cerca de 30% a 60% dos táxones identificados têm correspondência com as espécies arbóreas que sofreram a maior redução, sugerindo um abate intensivo de árvores que serviram de combustível para as fornalhas metalúr- gicas (Rodríguez -Ariza 2004).

Apenas na última fase de ocupação (Fase 4: 2200 a 2000/1800 A.N.E.), circunscrita à plataforma mais elevada do povoado e coincidindo com o abandono da actividade mineira e metalúrgica, surgem os primeiros indícios de cereais no registo polínico, assim como instrumentos agrícolas (lâminas com lustre de cereal, elementos de foice, etc.) que sugerem uma mudança na estratégia económica da comunidade.

Um processo similar de desflorestação foi registado no vizinho povoado de La Junta (Carrión & Montoya 2008; Fuentes et al. 2006), situado a cerca de 15 km de Cabezo Juré, onde se constatou igualmente a existência de uma paisagem bastante degradada pelo incremento da actividade mineira e metalúrgica (Fig. 2).

2.3.Impacto regional

Para avaliar o impacto regional da actividade mineira e metalúrgica do III Milé- nio A.N.E, as valvas de Tapes decussata, recuperadas nos contextos de consumo de Cabezo Juré, foram analisadas por ICP -MS (Inductively Coupled Plasma Mass

Spectrometry) para determinar as concentrações de elementos traço. Estes bioindi-

cadores são bastante úteis na avaliação da contaminação marinha pois são espécies que filtram as águas para se alimentarem, absorvendo todos os elementos nesta dis- solvidos. Simultaneamente, para avaliar o processo diacrónico de contaminação das águas marinhas do golfo de Cádiz, procedeu -se à selecção de outros casos arqueo- lógicos com cronologias compreendidas entre 6000 e 3000 A.N.E.: Padrão (Vila do Bispo, Portugal) (Gomes 1997), El Estanquillo (Puerto Real, Cádiz) (Ramos 1992), El Retamar (Puerto Real, Cádiz) (Ramos & Lazarich 2002), Papa Uvas (Aljaraque, Huelva) (Martín de la Cruz 1987), El Grillito (Gibraleón, Huelva) e Cañada Honda (Aljaraque, Huelva) (Borja et al. 1994) (Fig. 5).

Os dados indicam que a partir do III Milénio A.N.E. se assiste a um incremento da contaminação por metais pesados (Cu, Zn e AS) das águas do estuário do Tinto/ Odiel. Este processo parece ter atingido o seu auge aproximadamente em 2500 A.N.E.,

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coincidindo com a máxima expansão do povoado de Cabezo Juré e com o incremento da actividade mineira e metalúrgica na região. Além do mais, a presença de elementos tipicamente associados à crosta terrestre como o Li, Rb ou Al, sugerem a existência de episódios erosivos aparentemente associados à destruição antrópica do coberto vegetal.

Esta informação é corroborada pela coluna sedimentar obtida por Leblanc et al. (2000) no rio Tinto onde, além da presença de escórias metalúrgicas com inclusões de carvões similares às identificadas em Cabezo Juré (Sáez et al. 2003), se registou um episódio de contaminação por metais pesados (Cu, As e Pb), com uma cronologia aproximada de meados do III Milénio A.N.E.

De igual modo, no povoado de Valencina de la Concepción (Sevilha), situado nas proximidades do paleoestuário do Gualdalquivir (Arteaga & Roos, 1995) e com evidên- cias arqueológicas que comprovam a existência de um sector artesanal especializado na metalurgia do cobre (Nocete et al. 2008), a análise de Tapes Decussata confirmou

Fig. 5 – Conteúdo em elementos traço (Cu, Zn e As) presentes em Tapes Decussata. Legenda: CH

– Concheiro de Cañada Honda; EG – Concheiro de El Grillito; PU – Povoado de Papa Uvas; CJ – Povoado de Cabezo Juré (adaptado de Nocete et al. 2005a).

Fig. 5 – Plot of trace metal content in Tapes Decussata shells. Legend: CH – Cañada Honda shellmidden;

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a existência de um processo de contaminação regional e generalizado, aparentemente associado à intensificação das actividades mineiras e metalúrgicas, em toda a Faixa Piritosa Ibérica durante o III Milénio A.N.E. (Fig. 2).

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