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IMPEACHMENTS NO BRASIL REPUBLICANO

Tratar dos impeachments no Brasil não é tarefa fácil. Cada um dos casos abordados nesse capítulo facilmente comandaria um capítulo—ou monografia—próprio. Consequentemente, a análise de cada um desses casos, em poucas páginas, necessariamente implica em um determinado grau de simplificação, de omissões, e de escolhas na hora de narrar os eventos. Um outro pesquisador por certo teria escolhido os narrar de outra forma. Eu os narraria diferentemente dado mais espaço. Todavia, busquei aqui incluir os elementos mais importantes de cada uma das ocasiões discutidas, com a tentativa de incluir uma quantidade pertinente de fontes primárias, de modo a permitir a discussão dos problemas relacionados ao impeachment abordados anteriormente.

3.1. A tentativa contra Vargas

O primeiro impeachment republicano foi produto da movimentação udenista contra o novo governo de Getúlio Vargas. Nesse caso, importa pouco o procedimento pelo qual o processo se deu—ou se iniciou, porém não foi até o fim—, que ocorreu, mutatis mutandis, conforme o procedimento na Lei n. 1079.50. O mais interessante, nessa ocasião, foi como a oposição, as classes média e alta, os militares e a maior parte da imprensa da época se esforçaram para deslegitimar o governo e solapar a governabilidade de Vargas. Alguns desses mesmos elementos—devidamente afetados pelas condições do novo século, mas ainda similares o suficiente em seu cerne para permitir o paralelo—se repetiram no impeachment que se deu em 2016.

O ano era 1954. Getúlio Vargas, eleito para a presidência poucos anos após o término do Estado Novo, agora sob a vigência da Constituição de 1946, perseguia políticas que desagradavam grandes setores da sociedade brasileira. No setor civil, a oposição a Getúlio era liderada pela UDN e pelos partidos minoritários de direita e centro-direita. A maioria dos oponentes de Getúlio nesses partidos, segundo o brasilianista Thomas Skidmore,

[H]avia combatido ferozmente a volta de Vargas em 1950 [...] [e] presenciaram com humilhação e rancor a volta do ex-ditador ao poder, por meio das urnas – o instrumento que haviam lutado para reestabelecer.204

A decisão do presidente, de apoiar o aumento de 100% do salário mínimo, era vista como insuficiente pelas lideranças comunistas e sindicalistas—que exigiam, além do aumento,

204 SKIDMORE, T. E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco, 1930-1964. Tradução Ismênia Dantas. 7a

o congelamento de preços de artigos de primeira necessidade, além da regulamentação de direitos trabalhistas que não haviam sido contemplados pela Consolidação das Leis do Trabalho205—e desagradou aos grandes capitalistas e aos militares. Estes, no chamado “Memorial dos Coronéis”, assinado por 82 coronéis e tenentes coronéis (alguns dos quais viriam a participar do golpe militar dez anos mais tarde), advertiram ao governo que “a elevação do salário mínimo [...] resultará, por certo [..] em aberrante subversão de todos os valores profissionais”.206 O Memorial, segundo Skidmore, manifestava a genuína expressão de descontentamento de oficiais jovens, “que nunca haviam estado diretamente ligados ao movimento antigetulista anteriormente”. Além disso, evidenciava o “descontentamento da classe média traduzido em vocabulário militar”.207

Para apaziguar os quartéis, Vargas, a contragosto, exonerou o ministro do Trabalho, João Goulart, que foi quem propôs o aumento da ordem de 100% do salário mínimo, justificando que “não são os salários que elevam o custo de vida; pelo contrário, a alta do custo de vida é que exige salários mais altos”208. Jango, por sinal, já era figura que inspirava desconfiança na burguesia brasileira muito antes do Golpe que o depôs em 1964, no qual vários militares que assinaram o Memorial dos Coronéis tomaram parte, como já mencionado. Quando foi nomeado, em 1953, Jango já “[despertou] profundas suspeitas no seio da classe média [...] temerosa de perder seu status e vantagens econômicas numa sociedade em vias de industrialização mas desgovernada pela inflação”. Jango se tornou rapidamente um alvo preferido da UDN, que o acusava de ser um oportunista demagógico que desejava subir ao poder na crista da onda de agitação sindicalista.209

Particularmente interessante é matéria da Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, de 5 de fevereiro de 1954 (aproximadamente duas semanas antes da demissão de Jango do cargo de ministro), intitulada “Pacto Jânio-Jango com ‘slogan’ peronista”, na qual se acusava esses dois futuros presidentes da república de visar a “instalação, no Brasil, de uma República Sindicalista, nos moldes da ditadura de Peron [sic]”.210 É fácil ver paralelos com a paranoia da “ditadura lulopetista/bolivariana” que ocupou a cabeça de setores da sociedade brasileira durante governos petistas no início do século atual.

205 CALVALCANTE NETO, J. L. Getúlio: da volta pela consagração popular ao suicídio (1945-1954). 1a Edição,

São Paulo, Companhia das Letras, 2014, p. 271.

206 Ibid., p. 274.

207 SKIDMORE, op. cit., p. 165. 208 Ibid., p. 166.

209 Ibid., p. 159.

A demissão de Jango não trouxe sossego ao governo de Vargas. Com a saída de Jango, a oposição antigetulista passou a concentrar seu fogo sobre a figura do presidente em si, dizendo que Getúlio pretendia dar outro golpe para se manter no poder para além do término de seu mandato, em 1956. Ou seja, a oposição, “tendo obtido sucesso ao forçar a destituição de Jango [...] esperava agora derrubar o próprio presidente”.211

Pouco depois, de novo na Tribuna da Imprensa, surgiu à tona discurso de Perón em novembro de 1953 no qual teria exposto aos militares argentinos os detalhes do entendimento do Pacto ABC (Argentina, Brasil e Chile), que teria como objetivo tornar o bloco independente do imperialismo estadunidense. Vargas teria conversado com Perón e concordado com o pacto e assumido o compromisso de pô-lo em ação logo que assumisse o governo212 o que, na visão da oposição, seria uma “prova cabal que Getúlio realmente cogitara submeter o Brasil ao domínio político e militar do peronismo”,213 apesar de Vargas, de acordo com Perón, não ter cumprido o acordo por ter uma situação política complicada com o Congresso.214

O suposto entendimento entre Perón e Vargas foi desmentido tanto pela representação diplomática argentina e quanto pelo Itamaraty, mas mesmo assim a polêmica perdurou. Getúlio se enclausurou nos palácios da presidência, recusando-se a receber membros da imprensa.215

No Congresso, caminhavam articulações para o pedido de impeachment do presidente, apesar do fato de que parlamentares da própria UDN—o partido de oposição obstinada a Vargas—consideravam à época que não havia sustentação legal para o pedido. Dentro da UDN, também havia o temor de que um pedido de impeachment derrotado despertaria efeito contrário ao desejado e fortaleceria a posição do presidente.

Todavia, o objetivo ulterior poderia ser justamente esse. Em uma passagem reveladora, Lira Neto216 traz um pedaço de um diálogo entre Afonso Arinos, um congressista udenista, e o brigadeiro Eduardo Gomes, na descrição do autor, eterno pretendente ao Catete.

Se Getúlio se safasse de um processo de impeachment no Congresso, tanto melhor. Talvez o presidente até ganhasse alguns dividendos políticos momentâneos. Mas, no final das contas, a derrota da oposição deixaria os quartéis livres para agir.

“Isso é necessário para que se forme, no meio militar, a consciência de que não há solução legal”, sugeriu o brigadeiro.

Pelo raciocínio assumido por Eduardo Gomes, uma vez esgotados os recursos pelas vias institucionais, só haveria uma forma de afastar Getúlio Vargas de uma vez por todas do Catete, como eles tanto desejavam—o golpe armado.217

211 SKIDMORE, op. cit., p. 169.

212 “Perón revela acordo com Vargas”, Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, p. 1, 8 de março de 1954. 213 CAVALCANTE NETO, op. cit., p. 278.

214 Perón revela acordo com Vargas, op. cit. nota 9, p. 1. 215 CAVALCANTE NETO, op. cit., pp. 279-81.

216 Citar biografias sem acesso à fonte original do diálogo sempre demanda cautela, mas a informação feita por

Lira Neto aqui é gravíssima.

Skidmore, por sua vez, aponta que uma vez derrotada a tentativa do impeachment, “sob a reinante conjuntura política, Getúlio só poderia ser deposto, então, pela intervenção direta do exército”.218

Do burburinho no Congresso também saíram manifestações contra as movimentações pelo impeachment do presidente. Lúcio Bittencourt, representante do PTB de Minas Gerais e presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, declarou que um pedido de impeachment do presidente seria juridicamente improcedente, e na verdade se pretendia dar um golpe branco para afastar Vargas do Catete.219

Apesar de ter destituído Jango em fevereiro, Vargas não confirmou ou rejeitou o reajuste de 100% do salário mínimo até 1o de maio, o dia do trabalho. Em um agressivo discurso em Petrópolis, anunciou o aumento integral proposto por Jango, a quem teceu elogios. Apesar de, à época, o último reajuste ser de 1951, o aumento anunciado por Vargas figurou um aumento de, pelo menos, 54% nos salários reais. A medida alarmou a classe empresarial, e fez a classe média se sentir negligenciada e ameaçada, além da previsível reação militar anunciada no Manifesto dos Coronéis.220

Getúlio ignorara as recomendações de seus auxiliares diretos ao decidir conceder o reajuste.221e 222 Na avaliação de Skidmore,

[A] verdade era que Getúlio tinha decidido conquistar o apoio político da classe trabalhadora por meio de um atraente aumento nos salários reais. [...]. Sua nova estratégia era imprudente, uma vez que os grupos marginalizados – industriais, classe média, militares – estavam em melhor posição para mobilizar a oposição do que os trabalhadores para mobilizar o apoio ao governo.223

A reação ao aumento foi imediata e agressiva. Na Tribuna da Imprensa, de Lacerda, abaixo da manchete anunciando o aumento se lia “Medo do desemprego e da carestia”, título da matéria de capa do segundo caderno.224 No Correio da Manhã, lia-se que

Para o sr. Getúlio Vargas, que já ia caindo em irremediável decadência política, o pior será o melhor. Se a estrutura econômica e social do país entrar a desmoronar-se [...] ele tentará aparecer como o seu ‘salvador’ com um novo regime.225

218 SKIDMORE, op. cit., p. 170.

219 MIRANDA, Ademar. “’Golpe Branco” Contra Vargas!”, Ultima Hora, Rio de Janeiro, 3 de abril de 1954, p.

2.

220 SKIDMORE, op. cit., p. 171. 221Ibid.

222 CAVALCANTE NETO, op. cit., p. 285. 223 SKIDMORE, op. cit., p. 171.

224 “Medo do desemprego e da carestia”, Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 3 de maio de 1954, pp. 1 (capa), e

1 (caderno dois).t

O jornal Última Hora, por sua vez, jornal notoriamente fundado com o intuito de apoiar o governo varguista face à oposição generalizada na imprensa, trouxe na sua capa o bordão que Vargas cunhou no discurso de 1o de maio: “[Trabalhador,] Hoje estais com o governo, amanhã sereis o governo”. Também em sua capa lia-se a manchete “Chegou a vez dos barnabés”, que foram beneficiados pelo aumento concedido pelo presidente, e comemorava-se “A Fidelidade de Vargas à Causa da Reforma Social”.226

Os antigetulistas mais extremados, inclusive da UDN, fizeram comícios e conferências, efervescendo o clima nacional contra o presidente.227 A favor de Getúlio, contudo, a mobilização foi escassa. Aponta Skidmore que

[A] estratégia de Getúlio, de contar com o apoio da classe trabalhadora, repousava em bases muito precárias. Tendo cultivado a imagem de “pai dos pobres”, Getúlio não poderia esperar o apoio de seus “filhos” politicamente desorganizados. A passiva mentalidade política da classe trabalhadora, para a qual Getúlio havia contribuído, representava agora uma séria desvantagem.228

É possível aqui traçar um paralelo imediato com a crise política que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016. Da mesma forma que Vargas se apoiou sobre a classe trabalhadora politicamente desorganizada, com quem mantinha um relacionamento essencialmente populista, os governos petistas, de Lula e Dilma, basearam-se em uma frente política que envolvia classes trabalhadoras “excluídas do bloco no poder – baixa classe média, operariado, campesinato e trabalhadores da massa marginal”, com a qual entretinha “uma relação de tipo populista”. Essa massa marginal, que reside principalmente na periferia dos grandes centros urbanos e no interior da região nordeste, tem um setor mobilizado, principalmente em torno de reivindicações de moradia, mas em sua maior parte é social e politicamente desorganizada, contemplada pelas políticas de transferência de renda nos governos Lula e Dilma. Nas palavras de Armando Boito,

Os governos Lula e Dilma optaram por lhes destinar renda sem se preocupar – nem esses governos, nem o seu partido, o PT – em organizá-los. Eles formam uma base eleitoral desorganizada e passiva que é convocada a intervir no processo político apenas por intermédio do voto.229 [grifo meu]

Foi nesse cenário, então, de hostilidade por parte das classes altas e média, e apatia da classe trabalhadora, que em 6 de maio de 1954, ofereceu-se a denúncia contra Vargas por

226 Última Hora, Rio de Janeiro, 3 de maio de 1954, p. 1. 227 SKIDMORE, op. cit., p. 172.

228 Ibid., p. 174.

229 BOITO, A. As bases políticas do neodesenvolvimentismo, trabalho apresentado na edição de 2012 do Fórum

Econômico da FGV-São Paulo, disponível em <

http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/16866/Painel%203%20- %20Novo%20Desenv%20BR%20-%20Boito%20-%20Bases%20Pol%20Neodesenv%20- %20PAPER.pdf?sequence=1>, acesso 12 de julho de 2017, pp. 4, 9-11.

infringir a Lei de Responsabilidade, aprovada quatro anos antes. A denúncia foi assinada por Wilson Leite Passos, um cidadão que se “autoqualificava líder estudantil e fora um dos fundadores da UDN”.230 Acusou o presidente pelos “crimes contra a existência da União, a probidade administrativa, a lei orçamentária e a guarda e o emprego legal dos dinheiros públicos e, quiçá, contra o cumprimento das decisões judiciárias”.231 No Jornal do Brasil, destacou-se que

Embora seja destituída de qualquer importância do ponto de vista político – uma vez que não foi endossada por qualquer das agremiações políticas, mesmo as de oposição – a denúncia terá a tramitação prevista na lei no. 1079, de 10 de abril de 1950 [...].

Assim, numa das próximas sessões, deverá ser eleita uma comissão especial [...] para apreciar a denúncia232

Quase um mês depois, o jornal Última Hora reportou que

Somente na próxima semana o plenário da Câmara dos Deputados se pronunciará sobre a denúncia formulada contra o Presidente da República, por um Sr. Wilson Passos, [...] endossada pela representação udenista no Palácio Tiradentes numa manobra política de indisfarçável objetivo eleitoral.233

Na mesma folha, o jornal reportou que “A UDN teria forjado um relatório secreto sobre Vargas e Perón”, descrito como razão da tentativa de impeachment.234No dia seguinte, a manchete do Última Hora lia “Demagogia eleitoral na batalha do ‘impeachment’”.235

No dia 5 de junho, no Jornal do Brasil, indicou-se que era esperada a votação maciça da UDN a favor do impeachment de Getúlio.236 Na véspera, em debate na Câmara, o deputado Castilho Cabral—que contribuíra para a fundação da UDN mas posteriormente ingressou no PSP paulista—, presidente da Comissão Especial que analisou o pedido de impeachment de Wilson Passos, apresentou relatório no qual a Comissão concluía que havia a “existência de fatos e de circunstâncias que se enquadram, da maneira mais completa e perfeita, naquela configuração do no. 2 do art. 11 da Lei 1079”.237, 238 Cabral também defendeu que “o

230 CAVALCANTE NETO, op. cit., p. 286.

231 “Câmara dos Deputados: o grupo Moises Lupion “queima o último cartucho”, levantando suspeita contra seus

adversários”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 de maio de 1954, 1o Caderno, p. 9.

232 Ibid.

233 “Não nos deixaremos mover pela paixão oposicionista”, Última Hora, Rio de Janeiro, 4 de junho de 1954, p.

2.

234 Ibid.

235 “Demagogia eleitoral na batalha do ‘impeachment’”, Última Hora, Rio de Janeiro, 5 de junho de 1954, p. 1. 236 “A marcha do processo de “impeachment” e a posição do líder Gustavo Capanema”, Jornal do Brasil, 5 de

junho de 1954, p. 6.

237 O item em questão: Art. 11. São crimes contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos:

2 - Abrir crédito sem fundamento em lei ou sem as formalidades legais;

238 BRASIL, Diário do Congresso Nacional (seção I), 4 de junho de 1954, p. 3511, fala do Deputado Castilho

afastamento do Sr. Getúlio Vargas da Presidência da República será a única maneira [...], o único caminho legal para evitar a subversões da ordem entre nós”.239

Os créditos em questão, que se enquadrariam no n. 2 do art. 11 da Lei 1079/50, haviam sido oferecidos pelo Tesouro nacional sem autorização legislativa, no valor aproximado de Cr$ 50 milhões, à disposição pessoal do sr. Benjamin Cabello, um empresário brasileiro. Como o ministro da fazenda que autorizara os empréstimos não se encontrava mais no cargo, e estes teriam sido autorizados pelo presidente, Cabral entendeu que Vargas poderia ser responsabilizado.240

Também na edição de 5 de junho, o Jornal do Brasil reporta que, nas discussões sobre a denúncia na Câmara, a parte relativa aos entendimentos entre Vargas e Perón não era suficientemente clara para caracterizar crime de responsabilidade. Entretanto, os créditos suplementares a Benjamin Cabello sem autorização legal ou verba orçamentária, sim. O deputado Lauro Lopes advertiu que havia duas hipóteses a se considerar: a primeira de que as despesas não eram autorizadas por lei. A segunda é de que faltavam formalidades legais, que poderiam ser cumpridas a posteriori—como ocorreu no caso do empréstimo a Cabello.

É difícil não perceber a curiosa semelhança entre os crimes de responsabilidade atribuídos a Getúlio Vargas e a Dilma Rousseff. Ambas as acusações são de infrações técnicas à lei orçamentária, consideradas pelos acusados e suas equipes perfeitamente rotineiras e legais. Além disso, muito do cenário que circunda os dois momentos de pressão pelo impeachment se assemelha—o que será visto adiante. Como diz o aforismo frequentemente atribuído a Mark Twain, “a história não se repete, mas ela rima”.

No Última Hora, no dia 7 de junho, lia-se em coluna de Eurilo Duarte, citando um líder inominado da UDN, que “a batalha do impeachment ajudará o governo e desmoralizará os oposicionistas”, e que inexistia ambiência para o impeachment, bem como as razões apresentadas para a denúncia eram fracas. Na avaliação do udenista citado por Duarte, seria melhor que a oposição tivesse se preocupado com as weleições em outubro do que “desperdiçar as sessões da Câmara dos deputados com um assunto que nem chegou a comover a opinião pública”.241 Na página seguinte, da mesma edição, o jornal chama o impeachment de “tragicomédia parlamentar”, que não é mais do que “o estertor de um grupo que vive sob o complexo da sua próxima e inevitável derrota nas urnas”.242

239 Ibid.

240 Ibid., p. 3512.

241 DUARTE, E. Por trás da cortina. Última Hora, Rio de Janeiro, 7 de junho de 1954, p. 2.

242 “’Impeachment’ contra Vargas, mas, com que roupa, senhores?”, Última Hora, Rio de Janeiro, 7 de junho de

No outro extremo do espectro político, a Tribuna da Imprensa, de Lacerda, anunciava que “Vargas afronta a consciência política e jurídica do país”.243 No dia 9 de junho, o mesmo jornal noticiou que os governistas não tinham interesse em abreviar as discussões, pois ganhavam terreno com votos para derrotar a denúncia e tinham tranquilidade que derrotariam o impeachment.244 No dia seguinte, o Jornal do Brasil noticiou que, apesar da denúncia contra o presidente estar em discussão, a sessão da Câmara no dia 9 “transcorreu num ambiente de apatia”, acentuando-se o “desinteresse já manifestado anteriormente”.245 A posição pública de Eurico Gaspar Dutra, o presidente que sucedeu (e antecedeu) Vargas, contra o impeachment também foi influente para o resultado final, por conta de seu bloco de influência no Congresso—os chamados Dutristas.246

Em 11 de julho, o Jornal do Brasil dizia que a discussão do impeachment descambava para nível de galhofa, e que o impeachment representava nada mais que um carro alegórico posto na rua fora de época, uma campanha inglória lançada por uma agremiação política de elite.247 No dia 16 de julho, votou-se parecer da Comissão Especial que recomendou não aceitar a denúncia, que foi aprovado.248 Poucos dias antes da votação, o líder do governo na Câmara estimava os votos em 140 favoráveis a Vargas contra 50 contrários.249

A proposta de instauração do processo do impeachment foi derrotada na Câmara por 136 votos a 35. O Jornal do Brasil noticiou “Terminada a batalha do “impeachment” com a derrota esmagadora da oposição”,250 um resultado que já fora amplamente previsto pela imprensa. A Tribuna da Imprensa, de Lacerda, trouxe em sua capa: “’impeachment’: traição de dezenas de Udenistas”, com quarenta udenistas ausentes da votação “escondidos nos corredores”.251

Apesar do fracasso do impeachment, a previsão de que o governo ganharia força política e legitimidade não se confirmou. Vargas continuou sob fogo contínuo da imprensa, das classes

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