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O impeachment brasileiro: um estudo histórico e comparado

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Academic year: 2021

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LUCAS KOUTSOUKOS CHALHOUB

O IMPEACHMENT BRASILEIRO:

UM ESTUDO HISTÓRICO E COMPARADO

NITERÓI

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O IMPEACHMENT BRASILEIRO:

UM ESTUDO HISTÓRICO E COMPARADO

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Manuel Val

Niterói 2017

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.

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Universidade Federal Fluminense Superintendência de Documentação

Biblioteca da Faculdade de Direto

C436 Chalhoub, Lucas Koutsoukos.

O impeachment brasileiro: um estudo histórico e comparado / Lucas Koutsoukos Chalhoub. – Niterói, 2017.

119 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade Federal Fluminense, 2017.

1. Impeachment. 2. Crime de responsabilidade. 3. Política e governo. 4. Crise política. 5. Democracia. I. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Direito, Instituição responsável. II. Título.

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O IMPEACHMENT BRASILEIRO:

UM ESTUDO HISTÓRICO E COMPARADO

Aprovado em __ de ______________ de 2017.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Manuel Val – orientador

Universidade Federal Fluminense

_________________________________________ Convidado(a): _________________________________________ Convidado(a): NITERÓI 2017

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.

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Aos meus pais, Sandra e Sidney, por tudo o que fizeram e continuam a fazer por mim. À minha irmã, Lara, minha companheira mesmo depois de cinco anos morando à distância;

Aos meus avós paternos, Nabih e Ermelinda, que me abrigaram e acolheram, especialmente no último semestre;

Aos meus avós maternos, Jean e Valeria, pelo carinho;

Aos meus amigos da UFF, que me fizeram companhia durante esses anos de graduação; Aos meus professores da UFF, em especial à Paula Pimenta, pelas aulas inspiradoras no começo da graduação e pela amizade que já dura cinco anos; e ao Gabriel Rached, meu orientador de Iniciação Científica;

À Faperj, pela bolsa de Iniciação Científica que me apresentou formalmente ao mundo da pesquisa acadêmica;

Ao professor e orientador Eduardo Val, pela orientação, pela ajuda, pelas conversas sempre muito francas e pelo voto de confiança;

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De início, analisa o impeachment nos Estados Unidos, particularmente sobre o que consiste uma ofensa que o pode gerar, com base em pesquisa bibliográfica e doutrinária. Ademais, analisa o impeachment no Brasil, primeiramente em perspectiva jurídico-histórica, desde tempos do Império, reconstruindo sua aplicação, o histórico processual do instituto, com foco particular sobre os chamados crimes de responsabilidade. Posteriormente, analisa os casos de impeachment no Brasil republicano, consumados ou não, de Getúlio Vargas, Café Filho, Carlos Luz, Fernando Collor e Dilma Rousseff, buscando averiguar elementos em comum e dissemelhanças, verificando com que fim se mobilizou o instituto em cada ocasião e quais eram os fatores conjunturais em jogo. Para tanto, perpassa a pesquisa jurídico-legal e mobiliza outras áreas do conhecimento, especialmente a história, com especial atenção para fontes primárias de cada contexto examinado.

Palavras chave: impeachment; crime de responsabilidade; high crimes and misdemeanors;

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perspective. At first, it analyzes impeachment in the United States, particularly on what consists an impeachable offense, based on bibliographic and scholarly research. Furthermore, it analyzes the institute in Brazil, at first in a legal-historical perspective, since the days of the Empire, reconstructing its applicability, and its procedural history, with special attention to the so-called Crimes of Responsibility. Afterwards, it delves into the instances in which impeachment occurred in republican Brazil, successfully or not, against Getúlio Vargas, Café Filho, Carlos Luz, Fernando Collor, and Dilma Rousseff, scrutinizing for elements in common and differences, verifying to what end the institute was mobilized in each occasion, and the surrounding conjuncture. For such, it surpasses purely legal research and makes use of instruments from other areas of knowledge, particularly history, with special attention to primary sources from each of the examined eras.

Keywords: impeachment; crimes of responsibility; high crimes and misdemeanors; instability;

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CAPÍTULO 1: O IMPEACHMENT NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA ... 12

1.1 Origens históricas do impeachment estadunidense ... 15

1.2 O escopo de ofensas geradoras de impeachment ... 18

1.2.1 Treason e bribery ... 18

1.2.2 Other high crimes and misdemeanors ... 19

1.3 Questões doutrinárias ... 22

1.3.1 A natureza do ato ... 22

1.3.2 O momento em que o ato foi cometido ... 24

1.3.3 Outras controvérsias ... 26

1.4 O processo ... 27

1.4.1 O papel da Câmara de representantes ... 28

1.4.2 O papel do Senado ... 30

1.4.3 A natureza do processo e o ônus da prova ... 32

1.5 Revisão judicial do impeachment ... 32

1.6 Palavra final ... 36

CAPÍTULO 2: O IMPEACHMENT NO BRASIL ... 38

2.1 Origens históricas do impeachment no Brasil ... 39

2.2 Os crimes de responsabilidade ... 45

2.2.1 Questões doutrinárias sobre os crimes de responsabilidade ... 49

2.2.1.1 A natureza do crime de responsabilidade e o momento em que o ato foi cometido .. 49

2.2.2 A importância da discussão acerca dos crimes de responsabilidade ... 52

2.3 O procedimento ... 52

2.3.1 O rito na Câmara dos Deputados ... 53

2.3.2 O rito no Senado ... 54

2.3.3 A natureza jurídica do processo ... 55

2.4 Revisão judicial do impeachment ... 57

2.5 Impeachment, abusos, presidencialismo de coalizão e democracia ... 58

CAPÍTULO 3: IMPEACHMENTS NO BRASIL REPUBLICANO ... 62

3.1 A tentativa contra Vargas ... 62

3.2 Os impeachments em 1955 ... 70

3.3 O impeachment de Collor ... 80

3.4 O impeachment de Dilma Rousseff ... 89

EPÍLOGO ... 101

BIBLIOGRAFIA ... 106

Fontes primárias ... 106

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INTRODUÇÃO

Em 17 de abril de 2016, a Câmara dos Deputados autorizou a abertura do processo de impeachment contra a então Presidente da República, Dilma Rousseff. Os deputados, ao subir à tribuna, dedicaram seus votos a deus, à pátria, à luta contra a corrupção (mesmo os acusados de corrupção), e poucos fizeram referência às supostas ofensas cometidas pela presidente. A presidente foi acusada de desrespeitar a lei orçamentária, portanto cometendo “crimes de responsabilidade”, uma relíquia legal brasileira que, como será visto adiante, tem uma definição surpreendentemente porosa e imprecisa. Em 31 de agosto, Dilma foi oficialmente removida do cargo de Presidente da República.

O impeachment de Dilma Rousseff representou—e continua a representar—a reversão do caminho político escolhido nas urnas em 2014. A eleição presidencial, quiçá o momento de mais intensa participação popular nos rumos da nação, votou em um governo que se comprometeria pelos programas sociais, pela justiça social, pela mulher, pelo negro, pelo pobre, pelo bolsa família e minha casa minha vida, etc. O impeachment, meros dois anos depois, entregou à nação um governo que mais se assemelharia ao governo do grupo político que foi derrotado em 2014, a quarta vez consecutiva para o executivo federal.

Este trabalho se debruça, inicialmente, sobre o impeachment que é tido como a grande influência sobre o instituto brasileiro: o impeachment estadunidense, principalmente focado nas questões doutrinárias sobre o tema. Curiosamente, devido às circunstâncias eleitorais nos EUA, o impeachment também é um assunto em voga lá—e certamente também o seria se a outra candidata tivesse ganho as eleições. É gratificante escrever um trabalho que examina algo que

já aconteceu, no caso do impeachment brasileiro, mas que também poderá servir como um guia

para o entendimento de algo que poderá vir a acontecer.

O segundo capítulo é dedicado ao exame doutrinário e histórico do impeachment no Brasil, desde a sua primeira versão, nos tempos do império. Para tanto, o trabalho observou a obra de grandes doutrinadores contemporâneos de direito constitucional, e teve como guia principal o paradigmático livro sobre o tema escrito por Paulo Brossard que permanece, tantas décadas depois, o melhor trabalho brasileiro dedicado exclusivamente a este tema.

O terceiro capítulo examina as ocorrências do impeachment na história republicana brasileira: Getúlio Vargas, em 1954, os impeachments de Café Filho e Carlos Luz, em 1955, o impeachment de Fernando Collor, em 1992, e de Dilma Rousseff, em 2016. Este capítulo se afasta da análise puramente jurídica dos casos, fazendo uso de fontes primárias (principalmente

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jornais de cada época) quando possível. As circunstâncias de cada um dos impeachments em muito se assemelham.

Exceto os impeachments ocorridos em 1955, que seriam melhor descritos como golpes, ou contragolpes militares, os impeachments republicanos geralmente associam fatores de performance econômica, hostilidade da imprensa e de setores de classe média e alta da sociedade, além do carisma político dos líderes em questão e sua disposição ou não para ceder às demandas de um legislativo que atende aos próprios interesses. Ou seja, os impeachments ocorridos no Brasil foram mais produto de conjuntura—política, socioeconômica, etc.—do que de atos concretos cometidos pelos presidentes. A grande exceção neste sentido foi Fernando Collor, que foi acusado de todo tipo de torpeza pelo seu próprio irmão. Todavia, Collor não necessariamente teria caído não fossem outros fatores que afetavam a sua presidência (afinal, o presidente da república atual também foi gravemente acusado e permanece no cargo).

Mais do que um trabalho sobre os aspectos formais e processuais do impeachment, pareceu-me importante elaborar um trabalho no qual o instituto é abordado de forma crítica— um trabalho no qual algumas de suas deficiências são abordadas, e as instâncias de seu mau uso são claramente delineadas.

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CAPÍTULO 1: O IMPEACHMENT NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

A discussão acerca do impeachment nos Estados Unidos antecede a Constituição daquele país. Anteriormente à elaboração da constituição federal estadunidense, o tema era abordado de maneiras diferentes nas constituições estaduais, especialmente no tocante aos sujeitos que poderiam ser submetidos ao instituto, às acusações que poderiam ser feitas, e ao corpo qualificado para julgar tais acusações. Esses procedimentos estaduais haviam sido influenciados pela experiência britânica com o impeachment entre os séculos treze e dezoito,1 que surgira como um mecanismo para garantir a inviolabilidade do soberano, transferindo a responsabilidade por seus delitos aos ministros. Com o tempo, tornou-se um mecanismo para fazer com que os ministros do Rei respondessem ao parlamento, e não somente ao Rei2 (que respondia apenas a Deus).

Familiares com o absolutismo da dinastia Stuart, no Reino Unido, os constituintes americanos temiam um presidente tirânico, farto de poder, e o medo de abusos presidenciais prevaleceu sobre objeções de que o impeachment cercearia a independência do cargo, uma demonstração da preferência dos EUA colonial pelo poder legislativo.3 Inicialmente talhado para o cargo de presidente da república, o impeachment americano foi, no último minuto,4 expandido para incluir também oficiais civis dos Estados Unidos, inclusive os juízes federais. Apesar de o impeachment de juízes trazer consigo discussões interessantes, e ter sido utilizado mais vezes pelo congresso americano, aqui o foco será sobre o impeachment presidencial.

O impeachment e remoção do cargo é a maior sanção constitucional contra o abuso de poder presidencial. A Constituição dos EUA, no artigo II, seção 4, dispõe que “The President, Vice-President and all civil Officers of the United States shall be removed from Office on Impeachment for, and Conviction of, Treason, Bribery or other high Crimes and Misdemeanors”.5 O impeachment contra o chefe do executivo foi mobilizado apenas duas vezes na história estadunidense (até o momento da redação deste texto): o presidente Andrew Johnson foi impedido pela Câmara de Representantes em 1868, mas inocentado pelo Senado com a

1 GERHARDT, M. J. The Federal Impeachment Process: a constitutional and historical analysis. Chicago e

Londres, University of Chicago Press, 2000, p. 3.

2 BERGER, R. Impeachment: the constitutional problems. Cambridge, MA, Harvard University Press, 1973, p. 71 3Ibid., pp. 5, 99.

4Ibid., p. 91.

5 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Constituição dos Estados Unidos da América. Disponível em <

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margem de um voto, e o presidente Bill Clinton foi impedido pela Câmara em 1998 mas inocentado pelo Senado com uma margem confortável.6

É necessário fazer uma distinção: o termo impeachment, nos Estados Unidos, se refere à decisão da Câmara de Representantes para abrir o processo, e cabe ao Senado condenar ou não o oficial. Estritamente falando, “impeachment” significa “acusação”.7 Para ilustrar, Bill Clinton sofreu impeachment pela Câmara, mas não foi removido do cargo por ter sido inocentado pelo Senado.

O impeachment de Andrew Johnson foi fruto de motivos abertamente políticos, decorrentes de seus conflitos com o Congresso à época da reconstrução.8 Foi inocentado por não ter realmente cometido um high crime or misdemeanor, apesar de o Congresso à época ter interpretado o comando constitucional de maneira bastante flexível. O impeachment de Bill Clinton foi provocado por acusações sérias de desvio de conduta por parte do presidente, com base em acusações de falso testemunho perante um júri e obstrução de justiça, entre outras.

Apesar de não ter sido movido por ocasião da renúncia de Richard Nixon, os proponentes pelo seu impeachment acreditavam que ele poderia ser removido especialmente por comprometer a integridade do cargo, ignorar seus deveres constitucionais e o juramento do cargo, além de abusar do poder do governo.9

A questão levantada pelos últimos dois casos, de Nixon e Clinton, é que o que constitui

high crimes and misdemeanors é muito vago, em especial a discussão de que se trata apenas de

condutas penalmente tipificadas ou condutas não tipificadas, mas que podem comprometer a presidência.10 Além disso, o impeachment de Andrew Johnson já alertara, quase 150 anos antes, sobre a possibilidade de utilização indevida do instituto para servir a uma agenda política específica.11

O próprio Alexander Hamilton alertou, em O Federalista, que o impeachment agitaria os ânimos da comunidade, e haveria o perigo de a decisão ser mais regulada pelo poder relativo das partes do que por demonstrações reais de culpa ou inocência.12 A remoção do presidente deve “gerar ondas de choque que podem abalar os próprios alicerces do governo”.13 Na

6 STEPHENS JR, O. H.; SHLEB II, J. M. American Constitutional Law, volume I: sources of power and restraint.

4a edição. Belmont, CA, 2007, p. 173.

7 BLACK, C. L. Impeachment: a handbook. New Haven, Yale University Press, 1974, p. 5.

8 A reconstrução se refere ao período de reunificação e reconstrução nacional após 1865, quando terminou a Guerra

Civil Americana iniciada em 1861.

9 Ibid., p. 174. 10 Ibid.

11 BERGER, op. cit. cap. 9. 12 Ibid., p. 95.

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pertinente exposição de Cass Sunstein, em especial considerando o impeachment brasileiro de 2016 e o resultado da eleição americana no mesmo ano,

There are grave systemic dangers in resorting to impeachment except in the most extreme cases. The prospect of impeachment can be highly destabilizing to government, and in an era in which the opposing party and mass media are likely to be aligned in accusing political opponents of criminality or severe misconduct, there is a continuing risk that impeachment proceedings will become decreasingly exceptional14

A mobilização do impeachment nos Estados Unidos contra o cargo de presidente da república, exceto o impeachment de Andrew Johnson, foi marcada por moderação. Na história estadunidense, houve apenas três casos sérios de impeachment, apesar de uma pluralidade de presidentes ter cometido atos que poderiam justificar o impeachment, inclusive, notavelmente, os presidentes Reagan, Bush (o pai), Kennedy, Eisenhower, Roosevelt, e Lincoln.15

Os presidentes citados não sofreram processos de impeachment, protegidos pelo que a ciência política estadunidense chama de legislative shield (“escudo legislativo”) —ou seja, uma maioria parlamentar no Congresso que impede a instauração do processo mesmo que o presidente tenha cometido atos que justifiquem a abertura do impeachment. Em geral o núcleo do escudo legislativo é composto pelo partido do presidente,16 o que se verificou, por exemplo, no impeachment de Bill Clinton no qual os votos no Congresso essencialmente seguiram as divisões partidárias: a maior parte dos Republicanos votou para condenar, e a maior parte dos Democratas para inocentar.17

A seletividade dos impeachments americanos aponta para a mobilização política do instituto, na qual o apoio ao titular do cargo no Congresso acaba por ser mais importante do que sua culpa ou inocência, como, já mencionei, há muito alertaram Hamilton e Johnson. A utilização partidária do impeachment após a Reconstrução americana foi descarada,18 como deixa claro a famosa colocação do Representante de Michigan, Gerald Ford, em 1970, de que uma ofensa geradora de impeachment “é seja lá o que a maioria da Câmara de Representantes considera ser”.19

Partindo de uma análise constitucional, formal, Ford estava errado—a Constituição americana determina limites à atuação do legislativo para instaurar processos de impeachment,

14 SUNSTEIN, C. R. Impeaching the President, in University of Pennsylvania Law Review, Vol. 147, No. 2,

dezembro de 1998, pp. 279-315, p. 281.

15 Ibid.

16 PEREZ-LIÑÁN, A. Presidential impeachment and the new political instability in Latin America. Nova York,

Cambridge University Press, 2007, pp. 133-146.

17 GERHARDT, op. cit., pp. 175-6. 18 BERGER, op. cit. p. 94.

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que serão examinados adiante neste texto. Todavia, em uma análise pragmática, Ford estava certo.20, 21Afinal, a decisão do Congresso é irrecorrível e inalterável, e a revisão judicial do impeachment não se aplica em circunstâncias ordinárias, como estabelecido na jurisprudência americana pelo caso Nixon v. United States em 1993. Ou seja, o Congresso detém o poder de decisão final, e o que ele decide é o que vale.

1.1. Origens históricas do impeachment estadunidense

As deliberações da assembleia constituinte dos EUA se deram em segredo. Isso porque os delegados acreditavam que suas opiniões acerca das matérias constitucionais importavam menos do que a opinião dos ratificadores,22 pois seria no momento da ratificação que o público teria a chance de revisar e debater a constituição proposta.23 O relator oficial da Convenção, James Madison, publicou suas anotações anos após o término desta, com ressalvas de que relatou uma versão abreviada dos fatos, possivelmente editados e reescritos após o término da Convenção, e recomendou que gerações posteriores procurassem entender a Constituição com base nas convenções estaduais que a ratificaram.24

Todavia, os debates da Convenção de Filadélfia sobre impeachment podem esclarecer o que certos termos significavam para os constituintes e para os ratificadores, e de que forma podem ser interpretados. Três posições acerca do instituto do impeachment foram predominantes na Convenção. A primeira, com pouco apoio, era que o legislativo deveria ser capaz de remover o chefe do executivo a seu gosto, ou seja, por qualquer motivo que julgasse conveniente. A segunda posição era a de que o presidente não deveria poder ser impedido e removido do cargo, pois um presidente, diferentemente de um monarca, já estaria sujeito a eleições periódicas, o que faria o impeachment desnecessário. Foi uma posição que ganhou apoio considerável. A terceira posição, que prevaleceu, defendia que o presidente deveria ser sujeito ao impeachment, mas apenas por categorias específicas de abuso da confiança pública.25 Uma preocupação dos constituintes era que o presidente se tornasse um quase-monarca, ou que o presidente traísse a confiança da nação com poderes estrangeiros26 (um temor muito relevante

20 SUNSTEIN, op. cit. p. 282.

21 PALMER, N. Legitimizing Impeachment, in Journal of American Studies, vol. 33, n. 2, agosto de 1999, pp.

343-349, p. 344.

22 Após o término da Convenção Constituinte, os Estados ratificaram a Constituição por voto de suas convenções

ratificadoras individuais. A Constituição entrou em vigor quando foi ratificada por onze dos então treze estados.

23 GERHARDT, op. cit. p. 3. 24 Ibid., p. 4.

25 SUNSTEIN, op. cit. p. 287. 26 Ibid.

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para a época, considerando o conturbado processo de independência dos EUA poucos anos antes).

A Convenção optou por adotar como modelo as características mais comuns do impeachment nas constituições estaduais, em especial a restrição do impeachment a crimes cometidos por oficiais civis em seus cargos, com remoção do cargo e desqualificação de ser titular de novos cargos no futuro como as únicas punições aplicáveis.27

A natureza das sanções aplicáveis e o escopo dos indivíduos sujeitos ao impeachment já marca quiçá as duas mais notáveis diferenças entre os institutos americano e britânico. Como explica Paulo Brossard, “na Inglaterra o ‘impeachment’ atinge a um tempo a autoridade e castiga o homem, enquanto, nos Estados Unidos, fere apenas autoridade, despojando-a do cargo, e deixa imune o homem, sujeito, como qualquer, e quando for o caso, à ação da justiça”28 (grafia atualizada).

Ou seja, no impeachment norte-americano, a Câmara dos Representantes pode acusar apenas aquele investido em cargo público, cabendo contra o presidente e seu vice-presidente, juízes federais e funcionários da União, excluídos militares e congressistas, impondo sanções de natureza política—a destituição do cargo e a inabilitação política. Fica reservado ao poder judiciário estadunidense as sanções penais, quando couberem.29 James Wilson, um dos primeiros juízes da Suprema Corte dos EUA, descreveu impeachments como sendo procedimentos de natureza política, confinados a personagens políticos, a crimes e contravenções políticas, e punições políticas.30

No Reino Unido, à época, cabia o impeachment contra todos os súditos do reino, pares ou comuns, autoridades ou cidadãos, militares ou civis, investidos ou não em funções oficiais. A condenação podia trazer consigo sanções criminais, inclusive a morte, o exílio, o confisco de bens, entre outras.31

A Convenção de Filadélfia debateu extensamente o tribunal apropriado para julgar os casos de impeachment. A primeira proposta sugeria a criação de um poder judiciário nacional, que teria o poder de impedir qualquer oficial nacional.32 Alexander Hamilton propôs um plano baseado no modelo britânico e na Constituição de Nova York, segundo o qual o chefe do executivo, os senadores e juízes federais serviriam “during good behavior”, suscetíveis a

27 GERHARDT, op. cit. p. 5

28 BROSSARD, P. O Impeachment: aspectos da responsabilidade política do Presidente da República. Porto

Alegre, Livraria do Globo S. A., 1965, p. 21.

29 Ibid.

30 GERHARDT, op. cit. p. 21. 31 BROSSARD, op. cit. pp. 22-23. 32 GERHARDT, op. cit. p. 5

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impeachment por má administração e conduta corrupta, podendo ser removidos do cargo e desqualificados. Os impeachments nesse modelo seriam julgados por uma Corte composta pelo chefe ou juiz da corte superior de direito de cada estado.33

O Committee of Detail, formado pela constituinte para redigir um rascunho com o que fora acordado na convenção até então, propôs que a Câmara dos Representantes teria o poder exclusivo de impeachment, que seria julgado pela Suprema Corte. Pouco depois, o Committee of Eleven, formado para relatar os aspectos da constituição que haviam sido postergados ou inconclusos, recomendou que o Senado tivesse o poder exclusivo de julgar todos os impeachments. A Convenção aceitou a recomendação depois de decidir que o Presidente não seria selecionado pelo Senado, mas por um Colégio de Eleitores, removendo o possível conflito de interesses de ter o presidente nomeado e removido pelo mesmo órgão.34

A determinação de que o Senado julgaria os casos de impeachment foi criticada por Madison, que argumentou que o presidente ficaria “indevidamente dependente do Senado” por “qualquer ato que pode ser chamado de misdemeanor”. Todavia, a Convenção concluiu que o Senado é o órgão menos problemático para julgar o impeachment presidencial, especialmente considerando que é um órgão numeroso e, portanto, menos provável de ser corrompido do que a Suprema Corte, que conta com o agravante de possivelmente ter tido alguns de seus membros indicados pelo presidente sujeito ao processo de impeachment.35 Além disso, Alexander Hamilton, escrevendo em O Federalista, argumentou que juízes carecem do tipo de habilidade, julgamento e responsabilidade perante ao público que um julgamento de impeachment, mais semelhante à atividade legislativa do que judiciária, demandaria.36

Os debates da Convenção de Filadélfia indicam que os constituintes estavam preocupados principalmente com abusos de larga escala da autoridade e do cargo públicos.37 Essa visão também é sustentada pelas discussões no período da Ratificação. Alexander Hamilton, em O Federalista n. 65, explicou que estariam sujeitos a impeachment abusos ou violações da confiança pública, de propriedade política, cujo dano é causado principalmente à sociedade em si.38 Resta determinar quais são esses danos, conforme previstos na Constituição estadunidense. 33 Ibid., p. 6. 34 Ibid., pp. 6-7. 35 Ibid., p. 7. 36 Ibid., p. 13.

37 SUNSTEIN, op. cit. p. 289.

38 HAMILTON, A. The Federalist Papers, n. 65, in The Avalon Project: documents in Law, History and

Diplomacy, Yale Law School, disponívelem< http://avalon.law.yale.edu/18th_century/fed65.asp>, acessoem 2 de abril de 2017.

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1.2. O escopo de ofensas geradoras de impeachment

Como visto, a Constituição dos Estados Unidos prevê o impeachment presidencial em casos nos quais fica comprovada traição (treason), suborno (bribery) e outros altos crimes e contravenções (high crimes and misdemeanors). A definição de traição é dada na própria Constituição americana, e o que constitui suborno está bem estabelecido na jurisprudência estadunidense. Todavia, a Constituição não define o que são high crimes and misdemeanors, as discussões das convenções constituinte e ratificadoras não esclarecem muita coisa,39 e o termo causa “intermináveis problemas”40 e controvérsias partidárias.

O consenso prevalecente é que tentar listar as ofensas que podem gerar impeachment nos Estados Unidos é inviável, e de fato um empreendimento “quase absurdo”.41 O termo high

crimes and misdemeanors se revela tão aberto para intepretações diferentes que um Congresso

hostil ao executivo pode usá-lo para definir e punir ações executivas sem ter que demonstrar que foi cometido um delito, além de impedir presidentes por políticas públicas impopulares.42

É interessante notar que, na Convenção de Filadélfia, James Madison rejeitou o termo

mal administration (má-administração), proposto por George Mason como justificativa para o

impeachment porque deixava o presidente vulnerável ao Senado. Contudo, inexplicavelmente aceitou o termo misdemeanor, que apresenta essencialmente o mesmo problema.43

1.2.1. Treason e bribery

A Constituição dos EUA claramente define treason no seu artigo III, uma definição incontroversa e pouco utilizada, motivo pelo qual a doutrina pouco ou nada discute o termo.44 A definição é a seguinte:

Treason against the United States, shall consist only in levying War against them, or in adhering to their Enemies, giving them Aid and Comfort. No Person shall be convicted of Treason unless on the Testimony of two Witnesses to the same overt Act, or on Confession in open Court.45

O termo bribery pode se referir tanto ao recebimento quanto ao pagamento de subornos. O que importa, quando se julgando um caso de suborno, é o state of mind do sujeito envolvido com o ato, o motivo ou intenção do indivíduo. O professor Charles L. Black Jr sugere que não há nada de errado em receber contribuições para campanha eleitoral de um determinado setor

39 BROWN, H. L. High Crimes and Misdemeanors in Presidential Impeachment. Nova York, Palgrave Macmillan,

2010.

40 PALMER, op. cit. p. 344. 41 GERHARDT, op. cit. p. 106. 42 PALMER, op. cit. pp. 344-5. 43 Ibid.

44 BLACK, op. cit. p. 25.

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produtivo e depois o favorecer durante o mandato, considerando que o lobby é legal nos EUA. Geralmente se trata de uma tarefa muito difícil comprovar atos de suborno com base em provas circunstanciais, e cada caso deve ser analisado cuidadosamente.46

1.2.2. Other high crimes and misdemeanors

O termo high crimes and misdemeanors foi importado pelos constituintes americanos do direito britânico, e autores como Raoul Berger, professor da Universidade de Harvard, argumentam que deve ser interpretado de acordo com sua aplicação no Reino Unido.47,48

Cass Sunstein argumenta que a compreensão estadunidense de high crimes and

misdemeanors não pode automaticamente incorporar a inglesa, pois apesar de ser possível que

alguns dos constituintes americanos conhecessem o instituto inglês, a maioria não o conhecia, e seria ainda mais duvidoso que quisessem transplantar o instituto inglês sem antes o reformar. Ademais, à época o impeachment tinha caído em desuso na Inglaterra, e era improvável que os constituintes quisessem introduzir a prática inglesa. Todavia, o autor no mesmo texto reconhece que as conclusões tiradas analisando o histórico britânico se aplicam para a interpretação que ele dá ao instituto.49

Berger50 aponta que quando a frase high crimes and misdemeanors apareceu pela primeira vez durante o processo contra o Conde de Suffolk, em 1386, não existia o crime de

misdemeanor. Crimes comuns de menor potencial ofensivo eram trespasses (traduzível como

transgressões) até o século dezesseis, quando o termo foi substituído por misdemeanors. Estabeleceu-se então uma diferença funcional no direito britânico entre misdemeanor e

high misdemeanor: high crimes and misdemeanors era uma categoria de ofensas políticas

contra o Estado, enquanto misdemeanors se relacionavam a crimes comuns e privados. Isso se reflete no desenvolvimento do direito britânico, no qual embora misdemeanor tenha se incorporado ao direito comum, não se tornou o critério para high misdemeanor na lei parlamentar de impeachment. Da mesma forma, high crime ou high misdemeanor não se incorporou à lei comum.51

Um paralelo ocorre com a expressão high treason, que é deslealdade para com um superior, e “petit” treason, deslealdade para com um igual ou inferior. O elemento de injúria à

46 BLACK, op. cit. pp. 26-7. 47 BERGER, op. cit. p. 54. 48 SUNSTEIN, op. cit. p. 290. 49 Ibid., pp. 290-1.

50 BERGER, op. cit. p. 61. 51 Ibid.

(21)

Commonwealth britânica foi historicamente o critério para distinguir um high crime or

misdemeanor de um crime ou contravenção comum. Ou seja, a prática inglesa envolvia uma

diferença de grau, não de espécie.52

Já em 1757, tinha-se o entendimento de que o maior e principal high misdemeanor era o de má-administração (a maladministration de Madison), além de atos que atentassem contra a pessoa e governo do Rei, não tão graves quanto traição em si, mas crimes políticos. Traição é um crime político, pois atenta contra o Estado. Suborno também o é, pois corrompe a administração. Em suma, diz Berger, high crimes and misdemeanors parecem ser “words of art

confined to impeachments, without roots in the ordinary criminal law”53. Algumas atitudes que geraram impeachments na Inglaterra foram ações grosseiramente contrárias aos deveres do cargo, enganar o soberano com opiniões inconstitucionais, e tentativas de subverter leis fundamentais, introduzindo poder arbitrário.54

Apesar de high crimes and misdemeanors ser uma frase genérica, a rejeição de Madison a maladministration, conforme mencionada anteriormente neste texto, indica que a mera má-administração, ou administração com a qual o Congresso discorda, não é motivo suficiente para impeachment, o que contradiz o entendimento britânico exposto acima. A fórmula que foi adotada, embora um tanto vaga, parece, nas palavras de Charles Black Jr, “absolutely to forbid

the removal of the president on the grounds that Congress does not on the whole think his administration of public affairs is good”.55

Na argumentação de Black, high crimes and misdemeanors é uma expressão em si demasiadamente vaga para satisfazer a demanda de apropriadamente tipificar a conduta de uma maneira clara—seria totalmente inapropriada para um processo criminal na justiça comum. A frase deve ser interpretada como ofensas que um “homem razoável” poderia antecipar como sendo abusivas e erradas.56,57

Em uma tentativa de estreitar o significado da frase high crimes and misdemeanors, e conferir a ela uma abordagem propositiva, Charles Black faz uso de uma regra de interpretação legal denominada eiusdem generis (“do mesmo tipo”). A regra postula que quando uma palavra genérica vem depois de palavras específicas, o significado da palavra genérica deve ser limitado

52 GERHARDT, op. cit. p. 104. 53 BERGER, op. cit. p. 62. 54 Ibid., p. 69.

55 BLACK, op. cit. p. 30. 56Ibid., pp. 31-3.

57 O “homem razoável” parece se assemelhar ao “homem médio”, que outrora era bastante usado como parâmetro

(22)

ao mesmo tipo ou classe que as palavras específicas.58 A regra parece servir bem à frase em questão. O tipo ou classe a que pertencem traição e suborno é facilmente identificável: são ofensas extremamente sérias; são ofensas que corrompem ou subvertem o processo político; são ofensas erradas em si mesmas para uma pessoa de honra.59

Ou seja, o alto crime ou contravenção em questão deve ser uma ofensa séria, que subverte ou corrompe o processo político, e fundamentalmente errada para uma pessoa honrada. Charles Black sintetiza sua definição de high crime or misdemeanor da seguinte maneira:

[T]hose offenses which are rather obviously wrong, whether or not “criminal”, and which so seriously threaten the order of political society as to make pestilent and dangerous the continuance in power of their perpetrator. The fact that such an act is also criminal helps, even if it is not essential.60

A interpretação de Black pode não parecer particularmente útil à primeira vista, afinal

“rather obviously wrong” ainda é algo subjetivo e vago. O cerne do argumento está na “grave

ameaça” (serious threat) à ordem política, que deixa claro que a preocupação do autor é com a gravidade da ofensa e sua natureza política.61

Em O Federalista, Hamilton, de certa maneira, reafirma a proposição de Black segundo a qual os crimes que geram impeachment devem constituir uma grave ameaça:

The subjects of its jurisdiction are those offenses which proceed from the misconduct of public men, or, in other words, from the abuse or violation of some public trust. They are of a nature which may with peculiar propriety be denominated POLITICAL

[maiúsculas do original], as they relate chiefly to injuries done immediately to the

society itself [grifo meu]62

O texto de Black deixa clara as dificuldades inerentes em preservar a legitimidade constitucional e política do impeachment. Todavia, como aponta Niall Palmer, embora os dois doutrinadores de renome—Black e Gerhardt—concordem que não é possível “listar” as ofensas que podem causar um impeachment, ambos apresentam, à guisa de definição para high crimes

and misdemeanors, abordagens generalizadas que deixam o campo interpretativo suscetível ao

fator que desejam excluir: a animosidade partidária.63

Muitos opositores da Constituição estadunidense criticaram severamente o impeachment durante os debates ratificadores. No entanto, suas objeções não eram sobre o escopo de ofensas, mas sobre a estrutura do impeachment em si—ou seja, tanto os constituintes

58Ibid., p. 37. Black dá um exemplo bem-humorado para ilustrar a regra:

“[...] If I said, “Bring me some ice cream, or some candy, or something good”, I would think you had understood me if you brought me a piece of good angel cake, […], and I would think you stupid or willful if you brought me a good book of sermons or a good bicycle tire pump”.

59Ibid.

60 Ibid., pp. 39-40.

61 PALMER, op. cit., p. 345. 62 HAMILTON, op. cit. 63 PALMER, op. cit. p. 346.

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quanto os ratificadores estiveram em sua maioria contentes em não definir o que são high crimes

and misdemeanors.64 Em última instância, caberá ao Senado (e aos partidos) decidir se a acusação da Câmara de Representantes é uma ofensa que se enquadra como um high crime and

misdemeanor ou não, como tem ocorrido até agora.

1.3. Questões doutrinárias

O mandato constitucional do impeachment estadunidense, como visto, não é particularmente claro. Abaixo, exponho algumas questões e controvérsias discutidas por especialistas no assunto, e suas conclusões.

1.3.1. A natureza do ato

Uma controvérsia de destaque acerca do impeachment nos Estados Unidos é se as ofensas geradoras de impeachment devem ser limitadas a ofensas criminais. Especificamente, o debate é sobre em quais ofensas não-criminais se pode basear um impeachment. Sabe-se já de início que traição e suborno são ofensas criminais: traição está tipificada na Constituição, e o Congresso americano tornou suborno um delito em 1790.65A controvérsia, portanto, é se o

high crime ou misdemeanor deve ser necessariamente criminal.

Na Convenção Constituinte, como visto acima, George Mason propôs que fosse incluído o termo maladministration em adição a treason e bribery, pois acreditava que o impeachment deveria alcançar atos que subvertem a constituição. Madison contestou o termo, e Mason propôs other high crimes and misdemeanors, expressão que, para ele, também incluiria atos que subvertem a constituição. Em suma, o debate na Convenção de Filadélfia revela que ofensas que podem gerar impeachment não são apenas ofensas criminais, mas incluem abusos contra o Estado.66

Já nos os debates durante a ratificação, delegados às convenções estaduais se referiram frequentemente às ofensas geradoras de impeachment como “great offenses”, que deveriam incluir ocasiões em que a autoridade se desvia do seu dever, ou ousa abusar dos poderes conferidos pelo povo.67 Desviar do dever ou abusar dos poderes não implica, necessariamente,

64 KINKOPF, N. The Scope of “High Crimes and Misdemeanors” after the Impeachment of President Clinton, in Law and Contemporary Problems, vol. 63, n. 1/2, The Constitution under Clinton: a Critical Assessment. 2000,

pp. 201-21, p. 212.

65 GERHARDT, op. cit. p. 103. 66 Ibid., p. 104.

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em uma conduta ilegal, outro fato que aponta para a conclusão de que as ofensas em questão não têm que estar obrigatoriamente tipificadas.

Não só as ofensas não têm que estar obrigatoriamente tipificadas, mas criar um marco normativo que tipificasse condutas geradoras de impeachment foi considerado inviável por influentes juristas americanos. Joseph Story, um influente juiz da Suprema Corte, considerou que um estatuto jamais poderia ser elaborado pois “ofensas políticas são de natureza e caráter tão complexos, tão totalmente incapazes de serem definidas, ou classificadas, que a tarefa da legislação positiva seria impraticável”.68 A compreensão acerca do tema, compartilhada inclusive por Hamilton, era de que gerações subsequentes teriam que definir caso-a-caso os crimes políticos que viriam a constituir ofensas geradoras de impeachment.69

Charles Black põe a questão da seguinte maneira: um presidente pode legalmente ser impedido e removido apenas por condutas que também são crimes puníveis para qualquer cidadão ordinário? Seria uma interpretação conveniente de se adotar, pois à frase vaga de high

crimes and misdemeanors seria dada a precisão da lei, e a tarefa agonizante de limitá-la,

preservando-se porém um escopo propriamente amplo, seria evitada. Todavia, o jurista “não pode pensar que seja remotamente possível que essa interpretação seja correta”.70

O autor ilustra seu argumento com alguns exemplos mirabolantes. Por exemplo, imagine-se que um presidente se mude para a Arábia Saudita, para que possa ter quatro esposas, e decida conduzir o cargo de chefe do executivo remotamente. Estritamente falando, não se trataria de um crime, desde que seu passaporte e visto estejam em ordem.71 Apesar de não ser um crime, não há dúvida de que se trataria de uma conduta que justificaria o processo de impeachment. Os exemplos extremos elencados pelo autor testam a validade da proposição de que apenas delitos penais podem gerar impeachment, e demonstram que a proposição não pode prevalecer.

Vale notar que a maior parte dos atos presidenciais que geraram ameaças sérias de impeachment na vida real eram também delitos penais, o que demonstra que o Congresso provavelmente se sente mais confortável quando lidando com condutas claramente criminais no sentido comum. Quanto mais se afasta dos delitos já tipificados, torna-se progressivamente

68 STORY, J. Commentaries on the Constitution. Durham, NC, Carolina Academic Press, 1987, Editado por R.

Rotunda e J. Nowak, p. 287. apud GERHARDT, ibid., p. 106, tradução própria.

69GERHARDT, op. cit. p. 106. 70 BLACK, op. cit. p. 33. 71 Ibid.

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mais difícil ter certeza de que a ofensa em questão é válida para instaurar um processo de impeachment.72

Por outro lado, indica Black, seria conveniente determinar que todo delito penal é uma ofensa que justifica impeachment. Todavia, essa regra também produziria absurdos.73 Por exemplo, é um crime federal tentar modificar o clima nos Estados Unidos sem a autorização do Secretário do Comércio, ato punível com multa de até dez mil dólares.74 Também é considerado crime federal vender vinho cuja marca inclua a palavra “Zumbi”.75 Ou, por exemplo, imagine-se que o presidente ajudou um estagiário da Casa Branca a ocultar a posimagine-se de maconha (que permanece ilegal no nível Federal, apesar de ter sido legalizada em vários estados), sendo portanto culpado de obstrução de justiça. Seria irracional—“preposterous” é o termo usado por Black—crer que qualquer um destes cenários é o que os constituintes tinham em mente quando utilizaram a frase high crimes and Misdemeanors.76

Ou seja, nem todos os delitos penais demonstram incapacidade para exercer o cargo, e atos não-criminais podem constituir ofensas não-tipificadas, mas suficientes para gerar impeachment. O escopo das ofensas dependerá das circunstâncias nas quais os atos ocorreram, e no clima político à época, o que significa que o mesmo ato pode ser considerado uma ofensa grave o suficiente para gerar impeachment em um contexto, mas não em outro.77 Existe também uma discussão acerca da natureza criminal ou não do processo de impeachment em si, discutida nesse capítulo, no item 1.4.3.

1.3.2. O momento em que o ato foi cometido

A natureza peculiar destes crimes políticos significa que são definidos (e redefinidos) continuamente. Duas perguntas hipotéticas são frequentemente discutidas por doutrinadores especializados em impeachment. A primeira pergunta hipotética é se uma autoridade pode sofrer impeachment por condutas que não estão relacionadas aos deveres e responsabilidades oficiais do cargo que ocupa. A resposta a esta pergunta revisita a compreensão do motivo pelo qual crimes políticos e abusos contra o Estado podem gerar impeachment em primeiro lugar: o indivíduo que detém o cargo também detém a confiança do público, e o oficial que viola essa

72 Ibid., p. 35. 73 Ibid.

74 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, U. S. Code, Título 15, Capítulo 9A, §§s 330A e 300D. Disponível em <

https://www.law.cornell.edu/uscode/text/15/chapter-9A>, acesso 10 de abril de 2017.

75 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, Code of Federal Regulations, Título 27, Capítulo I, Subcapítulo A, Parte

4, Subparte D, seção 4.39. Disponível em < https://www.law.cornell.edu/cfr/text/27/4.39>, acesso em 10 de abril de 2017.

76 BLACK, op. cit. p. 36. 77 GERHARDT, op. cit. p. 107.

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confiança perde sua legitimidade perante o público, devendo perder o privilégio de deter o cargo.78

Nesse contexto, argumenta Michael Gerhardt, “conduta que pode claramente não estar relacionada às responsabilidades de um cargo específico ainda pode estar relacionada à capacidade da autoridade em cumprir as funções do cargo e deter a confiança do povo”.79 É fácil imaginar que um presidente que, em um ataque de fúria, assassinou alguém, cometeu um ato que justificaria um impeachment. Mesmo que o ato não seja relacionado com o cargo de nenhuma maneira ou forma, ele solapa a confiança na presidência, e destrói a credibilidade do titular—tanto como presidente quanto como cidadão—perante o público, os outros poderes, e as demais nações, amplamente justificando um hipotético impeachment.80

A segunda pergunta hipotética, mais complicada, envolve uma transgressão antes de o titular assumir o cargo. Nos Estados Unidos, ninguém foi impedido com base nesse cenário hipotético, mas o cenário não é absurdo, especialmente em casos nos quais uma autoridade eleita mentiu ou cometeu uma transgressão séria para ascender à sua posição. Apesar de o ato ter ocorrido fora do período de mandato, ele macula a maneira pela qual o indivíduo obteve a posição e a sua integridade.

Essa pergunta se subdivide em duas hipóteses. Na primeira, a transgressão era divulgada e conhecida antes da ascensão do indivíduo ao cargo, ou seja, o indivíduo foi eleito (ou confirmado pelo Senado, no caso de nomeações de juízes) mesmo com o conhecimento de sua transgressão. A dificuldade dessa hipótese é que é pouco claro de que forma a nação foi prejudicada ou a confiança do povo foi violada quando o eleitorado sabia da transgressão e mesmo assim elegeu o indivíduo.

É difícil conceber como o Senado removeria do cargo um presidente que foi eleito por voto popular apesar de uma transgressão conhecida, já que um impeachment, teoricamente, depende na credibilidade do Congresso quando alega que está agindo no melhor interesse do povo, que no caso em questão essencialmente ratificou a conduta do indivíduo.81 Nada impede, contudo, que o Congresso mova um processo de impeachment por outra transgressão—seja uma transgressão diferente cometida antes de assumir o cargo, que não era conhecida, seja por uma transgressão cometida durante o mandato.

78 Ibid.

79 Ibid. (tradução minha.) 80 Ibid., p. 108.

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Por outro lado, na segunda hipótese dessa pergunta, suponha-se que o público não sabia das transgressões cometidas antes da eleição. Nessa situação, o Congresso poderia alegar a ocorrência de algo similar a fraude eleitoral, que a integridade do processo eleitoral foi comprometida e, portanto, o Congresso tem a obrigação de remediar a situação conduzindo um processo de impeachment. Alguns fatores que influenciariam a decisão final do processo seriam a seriedade da ofensa, a sua relevância para a obtenção do cargo, a sua conexão com o cargo e a proximidade da eleição.82

1.3.3. Outras controvérsias

Charles Black apresenta ainda três controvérsias menores, mas que ao meu ver são interessantes o suficiente para serem brevemente expostas aqui.

A primeira é acerca da responsabilidade do presidente por atos cometidos pelos seus subordinados. O mandato constitucional indica que é o presidente que deve ser responsável pela traição, suborno, ou outro high crime or misdemeanor, e uma simples atribuição à pessoa do presidente por qualquer ato cometido por um subordinado é incompatível com o dispositivo. Todavia, o presidente (como qualquer pessoa) é “totalmente responsável”83 pelo que comanda, sugere ou ratifica.

A dificuldade nessa hipótese se encontra na área cinzenta da negligência. Por um lado, é difícil qualificar mero descuido na supervisão dos subordinados uma ofensa que pode automaticamente gerar impeachment—inclusive porque o chefe do executivo tem uma quantidade enorme de pessoas sob seu comando. Todavia, conforme aponta Black, segundo a common law americana quando o descuido é tão crasso e habitual a ponto de sinalizar

indiferença ao delito, pode ser considerada, em termos práticos, equivalente à ratificação do

delito. Todavia, como em vários outros casos, tudo depende da situação concreta e da intepretação do Congresso.84

A segunda controvérsia trazida por Charles Black é aquela em que há crença de boa-fé na justeza do ato. Um oficial pode ter perfeita crença na legalidade ou retidão de um ato, em situações nas quais não há um comando claro que demonstre o contrário. Ao Congresso cabe a prerrogativa de em essência declarar uma conduta presidencial ilegal, dentro de certos limites.

82 Ibid., pp. 109-10. 83 BLACK, op. cit. p. 46. 84 Ibid., p. 47.

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Nesses casos, nenhum presidente subsequente poderá alegar que não estava ciente das consequências do ato.85

A terceira controvérsia é sobre a substancialidade do ato. Black aponta que nem toda má conduta presidencial apresenta fundamentos suficientes para impeachment. É necessário que a conduta tenha substancialidade, ou seja, seja substancial. O termo “substancial”— diretamente equivalente ao substantial do inglês—é definido pelo dicionário Houaiss como “[aquilo que] que é considerado grande; considerável, avultado, vultoso”.86 É um termo que remete novamente à ideia de dano grave à sociedade, discutida anteriormente.

Para Black, a dificuldade aqui é se a substancialidade se refere a uma única grande ofensa por parte do chefe do executivo, ou à substancialidade de todas as pequenas ofensas acumuladas (o “conjunto da obra”). Como aponta o autor, ambas as alternativas são perigosas. Um presidente removido pelo acúmulo de várias ofensas de menor potencial ofensivo é, para Black, o cenário mais temerário, porque torna o impeachment um julgamento da capacidade do presidente—um desvio grave da função do instituto. O autor novamente conclui que dependerá de aqueles que fizerem a decisão final não se deixarem levar por políticas partidárias ou (falta de) simpatia pela administração.87

1.4. O processo

A Constituição estadunidense confere à Câmara de Representantes o poder exclusivo de impeachment—ou seja, o poder exclusivo de acusar o presidente de ter cometido uma ou mais ofensas que podem culminar em sua remoção do cargo. Essas acusações são tradicionalmente chamadas de “Artigos de impeachment” (“Articles of impeachment”), e a Câmara realiza o “impeachment” pela maioria simples de votos dos presentes.88

O Senado “julga” os impeachments movidos pela Câmara de Representantes. Cabe a ele determinar se a acusação em cada Artigo de impeachment é verdadeira e, também, caso verdadeira, se constitui uma ofensa que pode gerar impeachment. Caso algum dos Artigos de impeachment seja considerado verdadeiro e uma ofensa que pode gerar impeachment, tem-se uma possível condenação, a depender de uma maioria de dois terços dos senadores presentes.89

Esse procedimento emula o procedimento britânico, no qual o impeachment é realizado pela Câmara dos Comuns e a condenação pela Câmara dos Lordes. Também é análogo ao

85 Ibid. pp. 47-8.

86 HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001. 87 BLACK, op. cit. pp. 48-9.

88 Ibid. 89 Ibid.

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procedimento criminal dos EUA e da Inglaterra, segundo o qual um Grande Júri decide se aceita ou não as acusações, e um Júri condena ou não. Para Black, esse procedimento de dois estágios tem méritos óbvios: ele assegura a avaliação das provas por mais de um corpo, e evita o processo já na primeira fase se as acusações forem insubstanciais ou claramente impossíveis de provar.90

Durante a história estadunidense, o procedimento do impeachment na Câmara de Representantes, e no Senado, apresentou ligeiras variações de caso a caso. Aqui exporei a maneira como o processo costuma ocorrer, mas tenha-se em mente que tanto a Câmara quanto o Senado podem alterar os procedimentos a bel-prazer, exceto o que está explicitamente previsto na Constituição daquele país.

1.4.1. O papel da Câmara de Representantes

O processo de impeachment começa com a apresentação de uma queixa de má-conduta oficial. Essa queixa pode ser apresentada por qualquer pessoa, inclusive o presidente, qualquer representante, senador, uma legislatura estadual, um grande júri, além do judiciário federal ou um procurador especial apontado para investigar um funcionário de alto escalão.91

Apesar de não previsto na Constituição americana, a Câmara costumeiramente encaminha os pedidos de impeachment para o Comitê Judiciário (o United States House

Committee on the Judiciary), que investiga as acusações e apresenta um relatório acerca das

acusações que podem levar a um impeachment. Esse Comitê analisa as provas apresentadas, e frequentemente um grande volume delas, em casos complicados. Regras de prova não se aplicam—ao contrário do processo na Justiça Federal, e em alguns estados, nos quais se aplicam as Federal Rules of Evidence,92 que estabelecem regras acerca das provas que podem ser usadas em casos que tramitam na Justiça Federal dos Estados Unidos. A comissão decidirá, em cada caso, se as provas apresentadas são válidas ou não.

As provas podem ser provenientes de investigações pelo próprio Comitê, de Grandes Júris, ou qualquer outra fonte. Testemunhos ou apresentação de documentos ou outros objetos podem ser exigidos por meio de intimações. Além de analisar a prova, o Comitê deve averiguar se os atos comprovados constituem uma ofensa que satisfaz a Constituição para justificar o

90 Ibid., pp. 5-6.

91 GERHARDT, op. cit. p. 26.

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impeachment. O Comitê então apresenta seu relatório para a Câmara de Representantes, com sua recomendação para a adoção ou não de um ou mais Artigos de impeachment.93

A recomendação do Comitê é então votada pela Câmara de Representantes. É possível que a Câmara rejeite um ou mais Artigos de impeachment, mas muito improvável que adicione novos. A Câmara não costuma ouvir novas provas depois da recomendação do Comitê, e vota, depois de debater, se irá impeach ou não. O voto pode ser sobre todos os artigos juntos, ou um de cada vez; também já ocorreu de a Câmara votar para impedir com base numa recomendação genérica do Comitê, e só depois pedir a este que elabore os Artigos específicos.94

O voto deve ser de maioria simples dos membros presentes, com o quórum mínimo de metade da Câmara (218 de 435 representantes). Ou seja, os Artigos podem teoricamente ser aprovados por um-quarto mais um de todos os membros da Câmara, embora isso seja improvável. Um voto afirmativo a um ou mais Artigos de impeachment envia o processo para o Senado, sob a tutela de “managers” (gerentes, numa tradução literal), representantes escolhidos pela Câmara que apresentarão ao Senado os Artigos de impeachment e exporão o caso para a condenação. A Câmara age, na prática, como o Ministério Público do processo de impeachment, e os managers são seus promotores.95

Michael Gerhardt levanta alguns problemas com o processo do impeachment na Câmara de Representantes, tais como os parcos recursos do Comitê Judiciário para realizar suas próprias investigações aprofundadas—o que significa que o Comitê geralmente se baseia em investigações aprofundadas realizadas por outros órgãos, e a maneira antiquada como o processo é conduzido. Mais grave parece a preocupação com o fato de que o procedimento de impeachment na Câmara demanda que Representantes realizem funções para as quais não têm preparo ou treinamento.96

Por exemplo, o Comitê realiza o papel de uma promotoria, cuidadosamente construindo um caso por meio de provas documentais, testemunhos, entre as demais atividades. Contudo, muitos membros da Câmara não são advogados por formação, e mesmo quando são, frequentemente não têm experiência de litígio, o que é agravado quando os advogados de defesa dos funcionários em investigação frequentemente são profissionais experientes e de alto nível.97

93 BLACK, op. cit. pp. 6-7. 94 Ibid., pp. 7-8.

95 Ibid., pp. 8-9.

96 GERHARDT, op. cit. pp. 30-1. 97 Ibid.

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1.4.2. O papel do Senado

O papel do Senado começa com o recebimento dos Artigos de impeachment dos gerentes do processo apontados pela Câmara de Representantes, quando deve começar a agir como um tribunal para o julgamento do acusado. Quando o acusado é o chefe do executivo, preside sobre a sessão o juiz-chefe da Suprema Corte. Os senadores fazem um juramento especial, para “fazer justiça imparcial de acordo com a Constituição e as leis”.98 A função do Senado em casos de impeachment, argui Charles Black, pode ser vista como muito similar àquela de um tribunal judicial, e se o Senado “é” ou não um tribunal é uma mera questão estéril de nomenclatura.99

Apesar de os constituintes americanos haverem mudado, já tarde na Convenção de Filadélfia, a responsabilidade para julgar impeachments da Suprema Corte para o Senado, não há indícios que sugerem que foi alterada a natureza ou as propriedades do instituto, que continuou se configurando como um julgamento—tanto que cabe ao Senado o poder exclusivo de “julgar” todos os impeachments, não meramente votar sobre o desfecho. Bom-senso político, indica Charles Black, deve levar à conclusão de que o impeachment é no mínimo um procedimento quase-judicial, e o fator importante não é a nomenclatura, mas o fim desejado: total imparcialidade, no mínimo se assemelhando àquela de um juiz ou júri.100

O autor reconhece que aqui surge uma grande dificuldade, já que Senadores naturalmente podem ter afinidade ou inimizade com o presidente. Em um julgamento ordinário, tal pessoa estaria impedida de participar, fosse como juiz ou jurado, mas é inviável aplicar tal regra ao tribunal do impeachment, já que praticamente todos os senadores seriam desqualificados. A solução depende, argui Black, da consciência moral de cada senador, da integridade de cada um, e o autor não vê razões para que isso não produza resultados satisfatórios.101

O livro de Charles Black foi publicado originalmente em 1974, em uma era quando o partidarismo exacerbado, hodiernamente reinante, não era tão difundido. Creio que confiar na “consciência moral” de cada senador é uma manobra retórica para preencher um buraco óbvio na pudicícia do processo de impeachment com a qual não se pode contar em boa consciência. É uma deficiência do instituto do impeachment em si à qual não ofereço solução por hora.

98 BLACK, op. cit. pp. 9-10. 99 Ibid.

100 Ibid. pp. 10-1. 101 Ibid.

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Agindo como o tribunal para o impeachment, o Senado historicamente tratou sua jurisdição como tendo sido estritamente limitada pelos Artigos votados pela Câmara. Nos primeiros 150 anos de sua existência, o Senado exerceu sua autoridade como tribunal do impeachment com o corpo completo da casa, e os procedimentos e debates aconteceram no plenário. Atualmente, todavia, com as novas pressões sobre os legisladores, o Senado pode delegar essas funções para um comitê, e é vedado, sob as regras atuais de impeachment no Senado, o debate sobre impeachment em sessão aberta.102

Esse Comitê age com as prerrogativas do Senado pleno, e elabora um sumário com os fatos apurados que, diferentemente do que ocorre na Câmara, não inclui qualquer espécie de recomendação acerca de como o Senado pleno deve agir. O Senado pleno, depois de cada senador ter tido a oportunidade para examinar o relatório, decide se deseja convocar novamente alguma testemunha ou se as provas devem ser reapresentadas. Depois disso, o Senado debate o impeachment em sessão fechada, na qual os membros do Comitê expõem os motivos pelos quais acreditam que o acusado deva ser condenado ou não.

O voto final para condenar necessita da maioria absoluta de dois-terços ou mais dos senadores presentes, sobre um ou mais Artigos de impeachment, removendo o acusado do cargo automaticamente. O Senado tradicionalmente realiza um voto separado para decidir se irá desqualificar o condenado para ter um cargo público no futuro.103

O impeachment no Senado, assim como na Câmara, traz alguns problemas apontados pela doutrina. Gerhardt aponta, por exemplo, o fato de que qualquer debate acerca do impeachment no Senado deve ocorrer em sessão fechada, e consequentemente qualquer análise do processo é baseada em testemunhos e em anedotas, o que não permite uma reflexão profunda ou fiel sobre os motivos dos senadores para condenar ou inocentar um acusado.104

Outros problemas apontados por Gerhardt são a paralisação política que um processo de impeachment no Senado provoca, pois demanda a atenção dos senadores devido a sua seriedade; a falta de experiência dos senadores para conduzir tal processo; problemas procedimentais em relação à aplicabilidade da Quinta Emenda constitucional (devido processo legal); e regras de prova indefinidas que dificultam a defesa eficiente do acusado.105

102 GERHARDT, op. cit. pp. 34-5. 103 Ibid.

104 Ibid., p. 35. 105 Ibid., pp. 35-42.

(33)

1.4.3. A natureza do processo e o ônus da prova

Charles Black argui que não importa se o processo de impeachment é chamado de processo criminal ou não, assim como não importa se é chamado de processo judicial ou não. O que importa é quais aspectos do processo devem ser tratados como se fosse um processo criminal, e quais não. A questão mais importante nessa seara é sobre o ônus da prova.

Imagine-se que o presidente foi acusado de dizer algo incriminador. Em um processo não-criminal, se uma testemunha dissesse que o presidente disse tal coisa e outra testemunhasse que o presidente não disse nada, o juiz ou júri teria que decidir em quem acreditar, ou seja, qual testemunho é mais crível. Nos Estados Unidos, chama-se essa regra não-criminal de

preponderance of the evidence, ou seja, “preponderância das provas”.106 O que isso quer dizer é que o júri ou jurado não precisa ter convicção absoluta daquela prova, meramente crer que ela é mais plausível do que a alegação oposta.

Por outro lado, em um caso criminal, a culpa do acusado deve ser demonstrada beyond

a reasonable doubt, ou seja, além de uma dúvida razoável. Se, como sugerido acima, houvesse

apenas prova testemunhal para cada versão dos fatos, sem um motivo muito claro para acreditar num lado em detrimento do outro, não se poderia arguir que há prova além de uma dúvida razoável, pois qualquer um dos lados poderia razoavelmente estar falando a verdade.107

Em alguns casos civis, aplica-se uma regra intermediária entre as duas descritas acima. Requer-se clear and convincing evidence, ou seja, provas claras e convincentes. É um grau de prova mais convincente que a mera preponderância, mas que não está além de qualquer dúvida razoável.

No caso de impeachment, a resposta não é clara. Remoção por impeachment repercute de forma gravíssima sobre o indivíduo condenado e sobre a nação. Um padrão de prova mais leniente pode deixar que seja removido um presidente cuja culpa não era certa, mas um padrão muito rígido pode deixar que fique no cargo um presidente obviamente culpado, mas bom em ocultar sua torpeza. Como em várias outras ocasiões quando se trata de impeachment, nenhuma resposta é satisfatória.

1.5. Revisão judicial do impeachment

Em 1986, o juiz federal americano Walter Nixon, Jr., foi condenado e preso por perjúrio, tendo dito falsidades a um júri. O juiz se recusou a renunciar a seu cargo, continuando a receber seu salário embora preso. Consequentemente, sofreu impeachment e foi condenado pelo

106 BLACK, op. cit. p. 15. 107 Ibid., p. 16.

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Senado. O juiz contestou questões procedimentais (as questões específicas não são pertinentes para essa discussão), e seu caso foi apreciado pela Suprema Corte dos Estados Unidos. A decisão da Corte, em 1993, reviveu a doutrina da questão política—uma doutrina que justifica a recusa da Suprema Corte para decidir os méritos de determinado caso com base na autoridade textual, separação de poderes, ou outras razões prudenciais,108 com critérios estabelecidos pelo caso Baker v. Carr, de 1962.109

A decisão de Nixon v. United States é paradigmática pois responde à seguinte pergunta: “as cortes têm autoridade para rever os procedimentos usados pelo Senado americano para julgar impeachments?”. A decisão, unânime, relatada pelo juiz-chefe Rehnquist, foi de que se trata de uma questão política, exclusiva ao poder legislativo, com base no requisito estabelecido em Baker v. Carr de que há um “compromisso constitucional textualmente demonstrável de uma questão a um departamento político”,110 ou seja, a Constituição explicitamente atribui o poder para julgar impeachments unicamente ao Congresso.

Charles Black realiza um exercício retórico para demonstrar a viabilidade da revisão judicial do impeachment. Suponha-se, diz Black, que um presidente seja acusado pela Câmara de Representantes, que examinou cuidadosamente todas as questões de fato e de direito, e o voto daí resultante apresenta os Artigos de impeachment. Então o Senado, presidido pelo Presidente da Suprema Corte, depois de investigar a matéria e promover debate, aprova com dois-terços de seus membros a condenação do presidente. O presidente então apela para a Suprema Corte, que apesar de não ter jurisdição originária sobre o caso, aceita-o mesmo assim. Na análise de mérito, ou em alguma questão procedimental importante, discorda com o Congresso e decide reinstituir o chefe do executivo.111

O autor diz que “não possui os recursos retóricos adequados para caracterizar o absurdo que é tal proposição”.112 A Suprema Corte não tem competência originária na constituição americana para qualquer julgamento que busca reverter a decisão senatorial que destitui o presidente. O Senado tampouco é uma corte que se submete à Suprema Corte para apelar decisões.113 Além disso, na própria Convenção de Filadélfia, o poder de impeachment que fora originalmente concedido à Suprema Corte foi deliberadamente transferido para o Senado após

108 GERHARDT, op. cit. p. 118.

109 VILLE, J. The Essential Supreme Court Decisions: summaries of Leading Cases in U.S. Constitutional Law,

15a Edição, Plymouth, Rowan & Littlefield, 2010, p. 122.

110 Ibid., p. 124.

111 BLACK, op. cit. p. 54. 112 Ibid.

Referências

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