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2. CAPITAL E ESTADO: A PRODUÇÃO DE RELAÇÕES SOCIAIS

2.2 Estado

2.2.2 Imperialismo e Estado

Com os elementos trazidos até agora, já é possível imaginar a importância dos Estados para a (re)produção das relações econômicas globais que se estruturam numa divisão inequânime da apropriação da mais-valia. Sobre isso, as teorias marxistas da dependência construíram relevantes sínteses. Aqui, defendemos que o imperialismo tem sido um conjunto de relações políticas, econômicas e culturais que permitiram consolidar essas relações de desigualdade e apropriação de riquezas que justificaram a construção de sistemas de bem-estar social em países do Norte e desigualdades sociais profundas em países do Sul. De acordo com David Harvey (2005:31), o imperialismo deve ser entendido como

uma fusão contraditória entre ‘a política do Estado e do império’ (o imperialismo como projeto distintivamente político da parte de atores cujo poder se baseia no domínio de um território e numa capacidade de mobilizar os recursos naturais e humanos desse território para fins políticos, econômicos e militares) e ‘os processos moleculares de acumulação do capital no espaço e no tempo’ (o imperialismo como um processo político-econômico difuso no espaço e no tempo no qual o domínio de o uso do capital assumem a primazia).

A exposição já executada sobre as relações profundas entre acumulação primitiva de capital e dominação colonial é um dos principais eixos da compreensão sobre os esforços imperialistas na história. Ellen Wood (2014:97) e David Harvey (2005:118) argumentam que uma das principais conclusões das ditas teorias clássicas do imperialismo – a exemplo, Lênin e Rosa Luxemburgo – compreendem que a expansão colonial sobre territórios não-capitalistas é uma das formas mais recorrentes da expansão imperial como face da expansão do sistema capitalista de produção e, portanto, de seu ciclo de acumulação.

No entanto, é importante apresentar que existe uma variação da forma como o imperialismo e as relações imperiais se expressam ao longo da história. Em sua fase clássica, o imperialismo se caracterizava como um fenômeno formado por um maior número de atores ativos, o que conduz Lênin a concluir que sua dinâmica leva, inevitavelmente, à guerras inter- imperialistas que disputam domínio em diferentes partes do globo, com o intuito de ampliar as capacidades do capitalismo industrial (PANITCH, 2006:28). Ainda que esta conclusão seja

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questionada, o escopo analítico se afirma, pelo menos, até o fim do que se entende como neocolonialismo – quando as lutas independentistas tomam o cenário do continente africano.

No entanto, as características das relações imperiais que encontramos hoje já não são as mesmas. Como é objeto de exposição por diversos autores que buscam aprimorar as sínteses das teorias do imperialismo, o eixo central dessas relações deixa de ser a relação colonial clássica, com domínio econômico e político sobre os territórios, para figurar a interação complexa entre nações, que mobilizam, por sua vez, de forma diversa, os seus aparelhos de soberania, visando garantir a realização de muitos imperativos, dentre eles, os econômicos (WOOD, 2014:100; TAVARES, 2002:26).

A discussão já feita anteriormente sobre as conexões da acumulação de capital e a dominação colonial apresentou uma das faces desse imperialismo que se faz latente nos dias de hoje, pelo menos desde o pós-guerra, e que se radicaliza com a ascensão do neoliberalismo (HARVEY, 2006:113). A financeirização é um outro processo essencial para a execução deste novo imperialismo. Se nos aproximarmos de David Harvey, uma das formas que conectam esse conjunto de políticas, é a ideia de acumulação por espoliação.

Antes de discutirmos o processo da acumulação por espoliação, é preciso entender como o Estado é um agente essencial em toda a dinâmica do imperialismo. Desta forma, o que vamos compreender a partir de muitas fontes de contribuição, é que, desde o pós-guerra e até os dias de hoje, o Estado capitalista vem se organizando no sentido de garantir a reprodução das relações imperiais – e que isto não tem necessária equivalência com os parâmetros do Estado- Nação. Esse processo que é entendido como a transnacionalização do Estado capitalista se estrutura com a mudança do marco das relações que produzem o Estado. Se, no fordismo, o marco nacional era o ponto-chave destas relações, nesta nova configuração, todo este aparato se organiza prioritariamente a nível internacional, em relação dialética com o nível nacional, ainda que este último assuma um caráter de mero gestor com a função de organizar este elemento transnacional (DEMIROVIC, 2010:52-3; GILL, 2008:126).

A discussão de Nicos Poulantzas sobre o caráter das burguesias também é interessante nesta discussão. De antemão, porque a diferenciação entre burguesia nacional e burguesia compradora elucida como as elites econômicas – que, para nós que buscamos fazer uma análise que fuja à precedência absoluta da posição de classe, representa parte do que conceituamos aqui enquanto classe dominante – vão se integrar nessa relação com a transnacionalização do Estado. Assim, Poulantzas (1975:76) define que

entende-se por burguesia nacional a fração autóctone da burguesia que, a partir de certo tipo e grau de contradições com o capital imperialista

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estrangeiro, ocupa, na estrutura ideológica e política, um lugar relativamente autônomo, apresentando assim uma unidade própria [...] a burguesia nacional é susceptível, em conjunturas determinadas de luta antiimperialista e de libertação nacional, de adotar posições de classe que a incluem no “povo” e é então passível de certo tipo de aliança com as massas populares. Em contrapartida, entende-se tradicionalmente por burguesia compradora a fração burguesa que não tem base própria de acumulação do capital, que age de algum modo como simples “intermediária” do capital imperialista estrangeiro – é por isso que às vezes assimilamos a esta burguesia a “burguesia burocrática” – e que é assim, do triplo ponto de vista econômico, político e ideológico, inteiramente enfeudada no capital estrangeiro.

Nesse sentido, é possível entender como a transnacionalização do Estado vai reafirmar as hierarquias da divisão internacional do trabalho e prover a manutenção da divisão entre centro e periferia do capitalismo global. Na medida em que as instituições financeiras e militares como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e outras se caracterizam como protagonistas dessas relações imperiais pelas quais a transnacionalização do Estado vai assumir o papel de agência, a posição relativa deste para com estas instituições é que vai determinar sua posição na economia política global, bem como sua posição nas relações imperiais (DEMIROVIC, 2010:53; GILL: 2008:138).

Uma análise deste cenário, feita pelo economista Antônio Carlos Diegues (2018), apresenta que, dentro deste fenômeno, o papel dos Estados da periferia global acaba por ser o de comprimir ainda mais a fatia do Trabalho em seu antagonismo com o capital, facilitar a lucratividade a partir da redução da tributação e integrar-se marginalmente à cadeia global de produção – o que leva à reprimarização da economia. Essa observação fica mais interessante se combinada a uma análise do fenômeno do neoliberalismo – o que será executado mais à frente. Além de reafirmar o efeito da reprimarização das economias periféricas, a economista Leda Maria Paulani (2019:51) lembra que, para esses países, o padrão mencionado de relações econômicas impõe o papel de “reserva patrimonial, base de operação de força de trabalho compulsória e fonte de fornecimento […] de metais preciosos e matérias-primas” a partir da expansão sobre “estados territoriais originários”. Isto é, a reprodução pura e simples da acumulação primitiva de capital.

Dito isto, em consonância com alguns autores que discutem o papel do Estado no imperialismo e, portanto, na economia política global de hoje, não concordamos com a ideia apontada de que aquele tem sido seu papel reduzido no exercício de suas capacidades, bem como de seus mecanismos de soberania. Entendemos, portanto, que o Estado tem sido um agente importante nas políticas imperiais – e mais a frente veremos que isto vale para as

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políticas neoliberais. Assim, ele assume a responsabilidade de impor os processos que garantem a acumulação de capital, sobrepondo-se à legitimidade democrática do interesse popular ao cumprir o papel de, através da coerção, garantir tipos de políticas que não seriam implementados com os mecanismos do consenso (HARVEY, 2005:123; WOOD, 2014:106; DEMIROVIC, 2010:57; PANITCH, 2006:39-40).

A importância de sabermos que o Estado não é uma unidade coesa, tampouco um produto neutro diante das relações sociais estruturadas no seio da sociedade se deve à necessidade de compreender como ele age em favor dos mecanismos da acumulação por espoliação. David Harvey (2005:122) sintetiza que a acumulação por espoliação vai muito além da expansão geográfica do capital que assume as formas de exercício de poder colonial. A financeirização das economias é uma etapa importante por ser a fonte de “grandes trampolins de predação, fraude e roubo”. Nesse sentido, o rentismo necessita do direito e da sua atuação ambivalente entre o consenso e a coerção, seja para naturalizar o processo de especulação, seja para garantir a prática da fictícia divisão liberal entre política e economia para legitimar a propriedade dos investidores sobre os ganhos (CUTLER, 2005:529)

Nesse sentido, Harvey (2005:122-42) defende que a acumulação por espoliação tem uma função importante no escoamento da sobreacumulação de capital. Outros processos que estruturam essa dinâmica são: a) privatizações, com a transferência tanto de ativos estatais, quanto de recursos da Natureza sob o domínio do Estado para propriedade privada das grandes corporações; b) patenteamento de material genético e biopirataria; c) mercantilização das formas culturais, históricas e do conhecimento intelectual de povos originários e comunidades tradicionais, e; d) radicalização da pressão sobre a classe trabalhadora na redução da remuneração, do salário indireto e do acesso a direitos. Deste modo, Harvey também afirma que, apesar de não ser um fenômeno geograficamente específico de parcela do globo, esses processos acontecem de forma mais intensa e violenta nos países da periferia.

As transformações que recaem sobre o conceito de imperialismo – o que nos leva a debater, por exemplo, o papel do Estado em seus processos e a sua transnacionalização – têm profunda conexão com a metamorfose pela qual vem passando a ordem global, desde o pós- guerra até hoje. A crise do fordismo e o fim de um marco regulatório que buscava a conciliação da relação capital-trabalho dão vazão a novas tentativas de organização das relações de poder e da estrutura do capitalismo (HARVEY, 2014:20). A transição histórica que se apresenta é a do definhamento daquilo que David Harvey chama de liberalismo embutido e a ascensão de um “projeto político de restabelecimento das condições da acumulação do capital e de restauração do poder das elites”: o neoliberalismo (ibid., pág. 27).

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Estando diretamente vinculado ao processo de globalização e sendo entendido como seu sinônimo, aqui buscaremos não nos filiar às correntes teóricas que a entendem como um processo romântico de rompimento de barreiras entre pessoas, mercados e culturas. Entendendo que neoliberalismo e imperialismo têm caminhado lado a lado, Ellen Wood (2014:103) nos apresenta que, ao contrário da liberdade propagada, a globalização “está associada ao controle cuidadoso das condições de comércio, no interesse do capital imperial”. Assim, encontramos consonância com o que é afirmado por Leo Panitch e Sam Gindin (2006:22), onde a globalização representa a reprodução e “a difusão das relações sociais capitalistas a todos os cantos do mundo”.

A vinculação entre relações sociais estruturais e processos históricos é fundamental para que possamos compreender como as dinâmicas de poder que se reproduzem em aspectos econômicos, políticos, culturais e outros. Mostramos, principalmente, como as dimensões avaliadas até aqui são interdependentes em suas formas de reprodução. Isto significa, então, que temos como objetivo avaliar a complexidade de razões e consequências envolvendo o conjunto de relações que destacamos. Para avançarmos no objetivo deste trabalho, no capítulo seguinte nos debruçaremos sobre o neoliberalismo – já destacado como desdobramento de relações imperialistas – e alcançando um dos eixos fundamentais da análise que resgata o extrativismo enquanto matriz produtiva central da atual cadeia global de acumulação.

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