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Como a leucemia é uma doença grave, mas com grande possibilidade de cura, todos os entrevistados vivem a contradição entre essa possibilidade e o risco da perda, o que influencia a relação dos pais com a criança.

A criança doente passa a ser destacada na família. Como expressam os pais: “[ele] está sendo mais o centro”; “sempre ponho ela na frente de tudo”; “passei a viver mais pra ele do que pros outros (os irmãos)”; “os outros até às vezes reclamam que ele é mais protegido“. Como diz uma das mães: "Ficou uma superproteção. Eu acho que é uma coisa que com o tempo vai melhorar, mas eu acho que não acaba não. Acho que pode melhorar um pouquinho” (E10). A dedicação chega a tal ponto que um pai declarou: “deixei a minha vida e estou vivendo a vida dele (E12)” e se estabelece uma relação que os cuidadores percebem como de dependência: “Ele hoje não consegue viver assim... sem mim (E7)”.

Um aspecto realçado nas entrevistas refere-se ao processo de socialização e práticas educativas. Os cuidadores não sabem como tratar a criança doente, querem tratá-la como qualquer outra, mas não conseguem. Sentem-se inseguros em relação à educação, não desejam “ficar passando muito a mão na cabeça”; acham que ela tem que ter uma vida igual à do irmão, “se é pra sofrer castigo ele vai sofrer o castigo dele”. Mas, como fala uma das mães: “eu não tenho coragem”. Estudos mostram que a presença de doença crônica na infância pode representar um importante fator de mediação da qualidade da interação mãe-criança refletindo nas práticas educativas utilizadas pelas mães no controle e orientação do comportamento dos filhos. Uma das estratégias usadas pelos pais, de acordo com Piccinini et al. (2003), é evitar o uso da coerção, o que resulta em certa proteção ao filho doente. A tendência à superproteção ocorre diante da necessidade de reduzir-se o sofrimento da criança doente, uma questão cultural fortemente instituída em nossa sociedade. A família torna-se exposta a uma série de eventos que provocam medo, angústia e insegurança. Ela sofre por não saber o que pode acontecer ao filho e pela impotência diante da situação de doença e

hospitalização, além de confrontar-se com a autocrítica relacionada ao seu próprio papel de família superprotetora (ALENCAR; LAMÊGO; PEREIRA, 2004).

Outra forma de proteção que aparece combinada com o preconceito dos adultos com a “leucemia igual a câncer” fica evidente na relação das mães de adolescentes desta pesquisa (seis no total). Eles são poupados do conhecimento integral de sua doença. Apenas um deles foi informado diretamente pelo médico sobre a natureza da sua doença no momento do diagnóstico: “Ela ficou triste, mas o médico também chegou pra falar com ela brincando. Perguntou se ela assistiu àquela novela “Laços de Família” e tudo, da menina que teve leucemia e ele falou com ela tudo direitinho” (E4).

Em um caso, o próprio adolescente, curioso, buscou, posteriormente, informações com várias pessoas no Hospital. Outras duas situações revelam a dificuldade dos adultos de falar diretamente ao adolescente sobre sua doença. Em uma, a informação foi repassada por um parente próximo a partir da entrega a ele de um texto obtido na internet sobre leucemia (E2). Na outra, o filho só teve conhecimento que leucemia era um tipo de câncer quando a mãe conversava com a criança do leito ao lado:

Eu [a mãe] tava explicando pra uma menininha do lado dele e ele não sabia que leucemia era um câncer. A partir desse dia que eu falei que leucemia era um câncer, ele levou um choque. Ele achava que leucemia era outra coisa. Ele falou comigo: - Como ninguém nunca me falou? Aí eu falei: - É porque você nunca perguntou (E1).

Em geral, os cuidadores acreditam que as crianças não saibam o que seja realmente a leucemia. Mesmo quando elas já se encontram na fase de manutenção, o que significa pelo menos um ano de tratamento, elas estariam ainda alheia à noção de a leucemia ser um câncer. De acordo com uma das mães: “Até hoje ela não sabe. Ela sabe que é grave, mas ela acha que o tipo dela... é como se ela tivesse outro tipo de doença. Faz quimioterapia, mas para um outro tipo de doença” (E18).

No entanto, a criança observa o que acontece e constrói uma representação própria da doença e do tratamento, o que evidencia a importância de que o

médico desenvolva uma relação comunicativa com ela (NOVA; VEGNI; MOJA, 2005). Em estudo no qual foram entrevistados pacientes com idade entre sete e 14 anos, os autores concluíram que a criança/adolescente com doença crônica percebe a gravidade de sua doença, conhece o tratamento e efeitos colaterais, procura entender e justificar os procedimentos realizados e o desconforto das rotinas a que são submetidos em função de sua recuperação e cura. Nessa pesquisa, todos os participantes nomearam a sua doença, sabiam por que estavam internados e em tratamento e qual o risco que a doença trazia para suas vidas (VIEIRA; LIMA, 2002).

É prática usual na Pediatria que a mãe seja intermediária na comunicação do médico com a criança (NOVA; VEGNI; MOJA, 2005). Os adolescentes, por exemplo, podem se sentir apenas espectadores, o que compromete o tratamento e o desenvolvimento desses jovens (OLIVEIRA; GOMES, 2004). Nesse contexto, é desejável que a criança e o adolescente sejam informados sobre a doença de acordo com a sua faixa etária e nível de compreensão, o que pode, inclusive, favorecer a sua cooperação durante o tratamento (SPINETTA et al., 2002).

O preconceito em relação ao câncer é o principal entrave para falar sobre a doença com a criança. A mãe esconde do filho e se nega a responder, mesmo quando a criança lhe pergunta:

Agora, D. é que não sabe até hoje. Ele não sabe o que que é leucemia. Ele, e eu, vou falar pra você a verdade. Eu tenho até medo dele descobrir o que é que é leucemia. Eu já tentei falar, mas não consegui, não teve jeito, não... Aí o D. falou assim: o meu irmão me disse que eu tive câncer. Aí eu falei: Misericórdia, eu nunca tive câncer. Eu falei assim: você nunca teve câncer e em nome de Jesus, nunca vai ter. Porque ele tem medo demais, eu vejo que ele tem medo. Para ele, eu nunca, eu não tenho coragem de explicar, não (E11).

Uma adolescente, segundo relato da mãe, incorpora também o valor cultural negativo que cerca a doença, evitando assumir a doença e a própria palavra leucemia.

Você conversa com ela e ela fala: - Eu não estou mais doente. Às vezes eu vou conversar com alguém assim e a pessoa pergunta qual que é a doença dela. Se ela estiver perto ela fala assim: - Eu não estou doente. Eu não tenho doença mais não. Ela não gosta que “fala” a palavra leucemia de jeito nenhum (E2).

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