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3. DISCUSSÃO GERAL E CONCLUSÕES

3.1.6. Implicações da pesquisa em políticas futuras

Por força do progresso da ciência e da tecnologia, da mudança dos perfis epidemiológicos e da necessidade de melhorar a eficiência dos sistemas de saúde, “os papéis desempenhados pelos diversos profissionais de saúde estão a mudar em todo o mundo” (Fundação Calouste Gulbenkian, 2014). Portugal não constitui uma exceção. No caso específico do skill mix entre médicos e enfermeiros e da expansão do campo de exercício da profissão de enfermagem, embora a investigação tenha revelado que este é um tema recente na agenda das políticas de saúde nacionais, que existe relutância de certos stakeholders em participar na discussão, que a força de trabalho de enfermagem disponível é insuficiente e que o país ainda se encontra na primeira etapa deste possível

137 percurso (Buchan et al, 2004), ela também mostrou que, particularmente no âmbito dos CSP, algumas equipas de saúde percecionam a urgência da mudança e estão disponíveis para a empreender, como forma de melhorar a resposta às necessidades assistenciais da população. Tal poderá fundamentar um desenvolvimento através de iniciativas-piloto de natureza voluntária. Aliás, a pesquisa revelou que, em alguns contextos, a atribuição à enfermagem de papéis, tradicionalmente desempenhados apenas por médicos, é descrita como sendo uma realidade, sustentando a ideia de que muitas mudanças dos conteúdos profissionais ocorrem no seio das equipas e sugerindo a necessidade de conhecer e avaliar, desde já, os resultados destas experiências. A relativa fluidez do quadro normativo que define as fronteiras do campo de exercício das profissões médica e de enfermagem parece constituir, simultaneamente, uma barreira e um estímulo a estas modificações incrementais (Dubois et al, 2006).

A investigação mostrou que, em Portugal, a aceitabilidade social do desenvolvimento de práticas avançadas de enfermagem e as preferências dos profissionais de saúde relativamente à expansão dos papéis clínicos do enfermeiro de CSP não são homogéneas. O número relativo de enfermeiros e médicos foi o principal argumento dos antagonistas do modelo. Discutir a atribuição de mais papéis clínicos à profissão de enfermagem é, nesta perspetiva, desajustado, num país onde o rácio enfermeiros por médico é de 1,4 (OCDE, 2014), onde um modelo prospetivo de cálculo aponta para um excedente médico em 2015 (Santana et al, 2013) e onde, por efeito da redução da despesa pública em saúde, o número de enfermeiros nas unidades prestadoras se tem distanciado dos valores de referência das dotações seguras de cuidados de enfermagem (Ordem dos Enfermeiros, 2014). Ora, por um lado, é reconhecido que, embora Portugal tenha um número de médicos por 1.000 habitantes que o situa acima da média dos países da OCDE, esse valor pode estar sobrestimado (Biscaia et al, 2003), esconde assimetrias na distribuição geográfica e sectorial e não impede que o país tenha que manter em vigor um regime de exceção para a contratação de médicos aposentados pelas instituições do SNS (Ministério da Saúde, 2013) ou recorrer à celebração de protocolos bilaterais com governos de outros Estados para a contratação de médicos (Dussault et al, 2014). Por outro lado, embora a carência de médicos tenha sido o motivo que, historicamente, justificou as primeiras iniciativas de expansão do campo de

138 exercício da profissão de enfermagem (Pulcini et al, sem data; Kaasaleinen et al, 2010) e se mantenha como o primeiro racional enunciado pelos países onde este tipo de organização conheceu maior desenvolvimento (Delamaire et al, 2010), factores como a melhoria do acesso e a promoção da qualidade dos cuidados são também invocados como drivers da mudança em países com composição da força de trabalho semelhante à de Portugal, como é o caso do Chipre (Delamaire et al, 2010). Quanto à carência de enfermeiros, o Plano Nacional de Saúde atualmente em vigor, partindo de uma base de 551,3 enfermeiros por 100.000 habitantes, em 2009 (75,2 enfermeiros de CSP por 100.000 habitantes), aponta para uma meta de 801,1 em 2016 (106,5 enfermeiros de CSP por 100.000 habitantes) (Direção-Geral da Saúde, 2013), o que colocará o país a par com a média dos países da UE-28. De qualquer modo, reconhece-se que advogar a expansão do campo de exercício da profissão de enfermagem sem reforçar o número de efetivos é irrealista, da mesma forma que é imprudente não estimar o respetivo impacto em outros grupos profissionais, sendo este um aspeto que o decisor político não poderá ignorar. A revisão do skill mix entre médicos enfermeiros deverá ser sempre integrada numa estratégia global para os RHS do país, sob pena de agravamento dos desequilíbrios já existentes na força de trabalho.

A investigação revelou também que, entre os aspetos críticos de um processo político de definição e implementação de uma estratégia de revisão do skill mix entre médicos e enfermeiros em Portugal, se destacam a necessidade de uma forte liderança do processo, de uma clara compreensão dos objetivos a atingir e de uma visão de longo prazo para o sistema de saúde. Com efeito, dado que o instinto de sobrevivência de cada grupo profissional tende a manifestar-se no sentido da preservação do seu próprio território de conhecimento, competências e técnicas (Abbot, 1998), são antecipáveis resistências à construção de um profissionalismo diferente do instituído (Frenk et al, 2010; Plocgh et

al, 2011), centrado nas necessidades da população e não nas fronteiras tradicionais entre

as profissões (NHS, 2000). O antagonismo inicial da profissão médica à atribuição de papéis clínicos mais amplos à enfermagem constitui um aspeto comummente descrito nos sistemas de saúde em que este tipo de modelo se encontra implementado (Philips et

al, 2002; Buchan et al, 2004; Delamaire et al, 2010). A liderança deste processo será,

139 difícil tarefa de conquistar a adesão das profissões. Igual relevância deverá merecer a clara compreensão das metas a atingir pela revisão do skill mix entre médicos e enfermeiros. Os resultados dos estudos mostraram que, em Portugal, ao longo do triénio de vigência do PAEF, no contexto das medidas destinadas a reforçar a sustentabilidade do sistema de saúde, alguns stakeholders (Entidade Reguladora da Saúde, 2011; Grupo Técnico para a Reforma Hospitalar, 2011; Ordem dos Enfermeiros, 2013), e entre eles os credores internacionais (Governo de Portugal et al, 2012), defenderam a atribuição de um campo de exercício mais amplo à profissão de enfermagem. Concluir que pela alocação de recursos humanos, cujo preço relativo é mais baixo, se obterá redução da despesa é precipitado. Para além de ser necessário considerar os custos do treino adicional que uma prática segura e de qualidade sempre terá que acautelar, há que tomar em consideração o tempo e volume de recursos consumidos pelos profissionais cujo campo de exercício se optou por expandir, a necessidade da sua supervisão (Richardson

et al, 1995; Bourgeault et al, 2008), bem como a circunstância de, frequentemente, as

novas formas de trabalhar não se traduzirem na libertação de recursos por não corresponderem a substituição mas a complementaridade e resposta a necessidades não satisfeitas (Wilson et al, 2002). Assim, uma revisão do skill mix entre médicos e enfermeiros norteada por objetivos de redução da despesa em saúde, no curto prazo, provavelmente não será efetiva (Bourgeault et al, 2008) e ignorar este aspeto poderá conduzir ao insucesso político (Dolowitz et al, 2000). Por último, entre os aspetos críticos do processo de definição e implementação de uma política de revisão do skill

mix entre médicos e enfermeiros em Portugal, destacou-se a necessidade de uma visão

de longo prazo para o sistema de saúde. As estratégias relacionadas com RHS são dificilmente compatíveis com a obtenção de resultados rápidos, desde logo pelo tempo associado à formação dos profissionais de saúde (Zurn et al, 2004). Neste caso concreto, a mudança implicaria, antes de mais, o reconhecimento da centralidade das políticas de RHS para o desempenho do sistema de saúde português e o planeamento da força de trabalho em saúde em função das necessidades assistenciais da população e dos modelos de cuidados adequados a responder-lhes (Campbell et al, 2014). Depois, a mudança implicaria, não só o já referido reforço da dimensão da força de trabalho de enfermagem, mas também a adequação da respetiva formação e treino a uma prática profissional mais autónoma. A efetividade da mudança beneficiaria da implementação

140 de um modelo de formação interprofissional, que atenuasse os tradicionais silos profissionais e incentivasse modelos de trabalho colaborativos (Frenk et al, 2010), como também beneficiaria do reforço da literacia em saúde e de uma maior participação dos cidadãos como co-produtores da sua própria saúde (Fundação Calouste Gulbenkian, 2014). Trata-se, portanto, de um programa para uma década.

A investigação identificou ainda um conjunto de funções em que, potencialmente, o campo de exercício da profissão de enfermagem pode ser expandido – v.g., promoção da saúde e prevenção da doença, vigilância da saúde materna e infantil, gestão de doenças crónicas. Ela também identificou um conjunto de tarefas em que essa expansão é considerada, pelos profissionais de saúde, como merecedora de maior reflexão – v.g, referenciação de doentes, primeiro atendimento de doença aguda comum, prescrição protocolada de alguns fármacos, realização de certas técnicas de diagnóstico e tratamento. Contudo, estes resultados devem ser considerados pelo decisor político como meramente indicativos de que uma outra distribuição do trabalho entre médicos e enfermeiros, diferente da atual, pode ser equacionada. Sobretudo, eles devem ser interpretados sem esquecer que o objetivo da expansão do campo de exercício da profissão de enfermagem não é a prática de atos, tradicionalmente da esfera médica (DoH, 2010; Niezen et al, 2014), e sim uma maior autonomia clínica para a resposta às necessidades assistenciais, num contexto do reforço dos modelos colaborativos de cuidados (Phillips et al, 2002; Frenk et al, 2010; Nelson et al, 2014), em que o trabalho da equipa de saúde envolve confiança, respeito mútuo, partilha do poder decisório e igualdade (Schadewaldt et al, 2013).

A investigação mostrou que existe um relativo espaço social, normativo, político e nas preferências dos profissionais de saúde para a expansão do campo de exercício da profissão da enfermagem. Tal como diferentes países se encontram em diferentes estádios de discussão deste possível processo (Buchan et al, 2004), também no nosso país diferentes stakeholders, diferentes campos de atividades e diferentes equipas de saúde revelam distinto potencial de adesão a esta inovação; considerá-los por igual seria, certamente, um erro. Em qualquer circunstância não poderá esquecer-se que otimizar o skill mix da força de trabalho em saúde é um processo dinâmico (Dubois et

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al, 2009). Este traço foi patente na circunstância de, ao longo do período de realização

da investigação, no contexto nacional, se ter evoluído de uma quase ausência de referências ao tema da atribuição de papéis mais vastos à enfermagem para várias menções legais ao desenvolvimento da figura do enfermeiro de família (Ministério da Saúde, 2013; Ministério da Saúde, 2014).

O desafio futuro que se coloca ao nível das políticas de saúde não reside apenas numa melhor combinação dos papéis das profissões médica e de enfermagem mas no desenvolvimento de uma estratégia global de otimização sistemática do skill mix da força de trabalho da saúde (Dubois et al, 2009), alicerçada num modelo de formação dos RHS que incentive a maximização das competências individuais e da equipa (Frenk

et al, 2010) e estimule o papel dos cidadãos, saudáveis e doentes, como co-produtores

da saúde (Fundação Calouste Gulbenkian, 2014).

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