• Nenhum resultado encontrado

Se, para a desconstrução, a posição-sujeito é fundamental, é pertinente que um trabalho que se pretenda desconstrutor reflita sobre a posição-sujeito a partir da qual ele se formula. Nesse sentido, esse tópico do trabalho se dedica a pensar sobre tal posição.

O percurso até um programa de doutorado implica em muitos anos de treinamento no método e nas práticas da ciência. Ainda que tal treinamento não implique na (impossível) superação das ilusões e faltas da ciência, considerar que esse percurso não deixou marcas no pesquisador, além de uma ingenuidade, seria negar os próprios pressupostos do trabalho, que considera a constituição subjetiva do pesquisador uma importante característica da pesquisa. É nesse sentido que consideramos a desconstrução não uma opção, mas uma exigência do trabalho que nos propusemos a empreender. Assim, na qualidade de cientista, sempre nos colocamos na fronteira fluida entre acatar as premissas científicas e a impossibilidade de fazê-lo.

Um desses conflitos diz respeito à exigência de que o pesquisador se afaste de seu objeto, tome-o como algo externo a si mesmo para executar um trabalho supostamente objetivo. Segundo Arrojo (1992), as teorias logocêntricas – que por hora tomamos como basilares da ciência moderna – compartilham o pressuposto de que há uma distinção intrínseca entre sujeito e objeto. Separação que, por definição, exclui qualquer possibilidade de tomar a própria ciência como objeto de estudo, na medida em que isso implicaria em estudar a si mesma, o que colocaria fim à separação sujeito/objeto requisitada pelos cânones da cientificidade.

Por essa via, nossa proposta de trabalho, de certa maneira, encontrar-se-ia no campo da impossibilidade constitutiva, a menos que tal premissa seja problematizada. Movimento que fazemos a partir do pensamento derridiano. Pensamento que atende duplamente às necessidades da proposta, já que nos vemos impelidos a trabalhar no campo da différance, posto que, ao mesmo tempo em que somos impelidos a problematizar essa perspectiva logocêntrica de ciência, não podemos romper com ela, já que se trata da lógica que constitui o sujeito contemporâneo e, consequentemente, o próprio pensamento científico, campo que forjou o sujeito pesquisador que elabora esta pesquisa.

Como já apontamos, consideramos a própria ideia de objetividade uma ilusão, mas, neste momento, é importante discutir, a partir de Coracini (1991), as particularidades que impedem esse afastamento entre sujeito e objeto e, portanto, objetividade, em nossa própria proposta. Refletir sobre a ciência no interior de um programa de doutorado, ou seja, no seio da própria prática científica, impede esse afastamento, já que uma parte que constitui esta pesquisadora, parte de sua prática, está sendo colocada sob escrutínio. Assim, ao refletir sobre ciência, trabalharemos no imbricamento que transforma a dicotomia entre sujeito e objeto no par sujeito-objeto, refletindo, de certa maneira, sobre nós próprios.

Considerando-se, então, essa implicação inicial do pesquisador, é pertinente conhecer os vetores que determinaram sua posição e, portanto, seus caminhos reflexivos. Não porque se trate de um indivíduo plenamente consciente e senhor de sua prática, mas justamente porque também essa pesquisadora que, agora se expressa, é cindida pela lei do desejo e resultado das formações discursivas nas quais foi forjada.

Assim, outro imbricamento importante a ser apontado é o fato de que essa pesquisadora, como toda sua geração, teve seus primeiros contatos com o imaginário de ciência no programa Fantástico, que foi ao ar pela primeira vez em agosto de 1973 (BORELLI e PRIOLLI, 2000), ano de nascimento desta pesquisadora. Essa coincidência de datas, aliada aos

históricos índices de audiência do programa, aponta para o fato de que o Fantástico é parte importante da construção do imaginário sobre ciência da sociedade brasileira. Não é desprezível notar que toda uma geração, que hoje ocupa os mais variados postos na sociedade, inclusive de prática científica, teve o discurso do programa como uma das primeiras referências para a construção de seu ideário sobre o que seja ciência.

Por outro lado, esta mesma pesquisadora empreendeu a maior parte de sua formação acadêmica nos departamentos de comunicação de universidades brasileiras, além disso, tem experiência profissional trabalhando no mercado de comunicação, tanto de rádio como de televisão. Sendo assim, fala de uma posição implicada com a prática científica, mas também com o fazer empírico dos meios de comunicação de massa, local onde se localiza seu objeto de estudos, o programa Fantástico.

Se essa proximidade, por um lado, pressupõe um conhecimento mais específico do campo que nos propusemos a estudar, por outro, é mais um ponto de enredamento que

impossibilita a posição objetiva preconizada pela prática científica. Assim, em função de nossa posição implicada, da mesma maneira que assumimos uma postura crítica e reflexiva, mas não destrutiva, sobre a ciência, procuramos fazer o mesmo movimento em relação à mídia. Salientando que, em última instância, nosso objeto de estudo é o discurso da mídia, e não a ciência propriamente dita.

Finalmente, se apontamos pontos de enredamento do pesquisador com a ciência e com a mídia, devemos ainda refletir sobre um terceiro norteador do trabalho, com o qual nos implicamos: a religião.

Embora a autora dessa pesquisa se apresente (e represente) como não religiosa, tanto no sentido de que não professa qualquer religião institucionalizada, como no sentido de que não nutre nenhuma crença pessoal em divindades, não é possível negar o atravessamento do religioso em sua constituição subjetiva. Quando Freud (1944), apesar de seu ateísmo e sua procedência judaica, pontua que para os judeus há Deus, marca o papel fundamental da representação de Deus na constituição dos sujeitos, mesmo que tal representação não implique em existência efetiva para o sujeito. Ou seja, as representações de Deus atravessam as constituições subjetivas, mesmo entre aqueles que não acreditam na existência de um deus.

Assim, tendo crescido no seio da civilização judaico-cristã ocidental, a pesquisadora, independentemente de suas convicções pessoais, é também atravessada pela ideia de Deus. Atravessamento que se daria de qualquer forma em sua cultura, mas que tem a particularidade de ser marcado por uma família (ou parte dela) intensamente católica, característica que lhe proporcionou a inserção em todos os ritos iniciais do catolicismo: batismo, missas, catecismo, primeira comunhão e um curso preparatório para a crisma, momento em que opta por afastar-se da religião.

Esse atravessamento pelo religioso contribuiu para a própria elaboração da tese, na medida em que é a partir dessa posição interna ao religioso que o olhar da pesquisadora pode voltar-se para o esquema conceitual da religião para colocá-lo em relação com o esquema conceitual da ciência. Adiante, no capítulo 3, discutiremos os esquemas conceituais aos quais nos referimos, marcando o fato de que nossa pesquisa se constitui no ponto de encontro de três vetores – mídia, ciência e religião – que se enredam ou emaranham num novelo no qual a própria pesquisadora se insere. É dentro desse novelo que o trabalho reflexivo se situa e é a esse novelo

que a pesquisadora tenta lançar um olhar que (re)organiza, de maneira necessariamente particular, os fios que o compõe, num movimento constante de aproximação e afastamento.