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Vamos, primeiramente, evidenciar/explicitar o nosso ponto de vista a partir de uma analogia com duas narrativas míticas gregas.

No pequeno povoado de Éfira, vivia um pastor de ovelhas chamado Sísifo. Era um sujeito meticuloso e muito inteligente, mas que ousou desafiar Zeus. Um dia, ao voltar para casa, viu o Deus raptar uma bela moça e o dedurou. Zeus ficou furioso e ordenou a Efaístos que conduzisse Sísifo ao Hades, para lá permanecer no círculo das almas condenadas. Como Sísifo era muito inteligente, conseguiu aprisionar Efaístos e ter uma conversa com Perséfone, a rainha do submundo. Queria ele voltar ao mundo para organizar seu funeral. Ela concedeu a ele um tempo de três dias.

Mas ele ficou mais. E ficou por muito tempo. Zeus, ao notar o que acontecera, solicitou a Hermes que conduzisse Sísifo ao Hades e lá teria de ser aplicada a ele uma pena exemplar: rolar uma enorme pedra morro acima, até o topo. Mas, ao chegar lá, o esforço o deixaria tão extenuado que a pedra se lhe soltaria e rolaria morro abaixo. E assim seria... pela eternidade.

A segunda história, também proveniente da cultura grega, relata a saga de Cronos, principal divindade da primeira geração de titãs. De acordo com a mitologia, Cronos temia uma profecia segundo a qual seria tirado do poder por um de seus filhos. De temperamento violento, Cronos passou a matar e devorar todos os filhos gerados com Reia. Porém, a mãe conseguiu salvar um deles, Zeus, escondendo-o numa caverna da ilha de Creta.

Para enganar Cronos, Reia deu a ele uma pedra embrulhada num pano que ele comeu sem perceber. Ao crescer, Zeus libertou os titãs e com a ajuda deles fez Cronos vomitar os irmãos (Hades, Hera, Héstia, Poseidon e Deméter). Zeus, com a ajuda dos irmãos e dos titãs,

expulsou Cronos do Olimpo e governou como o rei dos deuses gregos. Como tinha derrotado o pai Cronos, que simbolizava o tempo, Zeus tornou-se imortal, poder estendido também aos irmãos.

Em 1993, Bill Murray interpreta um repórter escalado para cobrir os eventos do Dia da Marmota. Extenuado e impaciente, apenas quer fazer o seu trabalho e retornar para casa. Mas cai em um loop temporal, e precisa reviver os acontecimentos de um dia, que irão repetir-se por anos a fio.

O filme “O feitiço do tempo” é quase como um conselho de que às vezes é importante um olhar sensível aos demais, àqueles que estão ao nosso lado e que se tornam invisíveis devido a nossa falta de cuidado com o outro. Esse filme é muito parecido com a história de Sísifo, condenado a viver os mesmos eventos do dia como um tipo de punição por sua arrogância e vaidade. São os mesmos símbolos trabalhados de forma diferente, mas muito similares.

A mesma coisa acontece com o mito de Cronos, um deus que representa o tempo, e que devora seus filhos. Afinal, o que faz o tempo com os homens senão devorá-los a cada dia? Visto de uma forma literal, pode ser uma história bárbara, absurda, de um deus vingativo, humano, indigno da sua condição. Mas quando observamos a metáfora, o significado oculto e implícito na história, entendemos o seu significado simbólico, o arquétipo nele presente.

Esses dois exemplos nos mostram que os mitos procuram refletir sobre diversos aspectos da condição humana, nossos sentimentos, ideias, emoções, nosso padrão ético, e que são narrativas, além de fantásticas, ambíguas, que revelam mensagens e informações de um modo indireto, exigindo nossa intervenção e interpretação para que possam ganhar sentido. Mitos devem ser lidos como metáforas, e não de modo literal.

A leitura literal de um símbolo é sua morte, neste caso a leitura literal é a não-leitura, é necessário ir além do texto, além das informações dispostas na superfície, é importante encontrar as pistas, o diálogo com outros mitos de simbologia similar, portanto, a leitura dos mitos na escola é de fundamental importância, por seu caráter alegórico, profundo e metafórico, que aguça a capacidade interpretativa e intuitiva do aluno.

A vida de uma mitologia surge e depende do vigor metafórico e de seus símbolos. Estes transmitem mais do que mero conceito intelectual, pois, pelo caráter interior, eles proporcionam um sentido de participação real na percepção da transcendência. O Símbolo, energizado pela metáfora, transmite não só uma ideia do infinito, mas certa percepção dele (CAMPBELL, 2003, p. 29).

Está certo que em nossa cultura moderna, organizada e racional, o mito ganhou o inglório epíteto de quimera, de algo destituído de valor prático, sendo apenas um conjunto de

narrativas ficcionais ingênuas de povos ditos primitivos que, carentes da racionalidade e imersos da superstição, procuraram explicações para o que não entendiam. Entretanto, os mitos reforçam a ordem moral, apresentam para nós uma imagem consciente do Cosmos e reconciliam as consciências às precondições de sua própria existência (Campbell, 2003).

Os mitos apresentam uma rica possibilidade de leitura em sala de aula, uma experiência singular não apenas presente no texto, mas uma verdadeira incursão pela alma humana, seus desejos e medos, suas angústias e alegrias. Além disso, os mitos são os formadores de nossas crenças atuais e nossa percepção de mundo.

Ainda que os mitos tenham surgido apenas como uma forma de se passar o tempo nas longas noites em volta da fogueira, é certo que se tornaram muito mais que uma diversão aprimorada. As pessoas que formavam as primeiras civilizações desenvolveram mitos. Com o passar do tempo, esses povoados se transformaram em Estados, e seus mitos se transformaram em histórias complexas e interligadas que constituíam a base de intrincados sistemas de crenças. Essas narrativas de deuses e ancestrais passaram a ser um dos princípios organizacionais centrais de tais culturas ditando os rituais religiosos e até a maneira como civilizações inteiras se organizavam (DAVIS, 2015, p. 49-50).

A história já cansou de mostrar ao homem que ignorá-la só trará a ele sofrimento e uma eterna revisão de problemas que se repetirão indefinidamente, tal como no mito de Sísifo.

Os mitos, portanto, poderiam apresentar reflexões importantes a respeito das antigas e eternas questões humanas. Portanto, não podemos deixá-los de fora, mas muito menos lê-los sem responsabilidade, como passatempo, como uma narrativa ingênua de uma cultura primitiva, algo que denota muito de nosso preconceito em relação aos outros povos, um etnocentrismo que não reflete, mas julga, e nos conduz a uma leitura literal e superficial dos textos sagrados.

Campbell (1990) diz que os mitos ensinam um voltar-se para dentro, para a verdadeira natureza interior. Lá, encontraremos uma diversidade de símbolos a ser decifrada, conteúdos adormecidos que às vezes vêm à tona e não compreendemos o seu significado. Pela leitura dos mitos, podemos ter uma outra visão das artes e da literatura, a própria vida é um ritual mitológico, no qual há vários estágios de iniciação, com as diferentes fases da vida, os desafios que aparecem pelo caminho.

“Quando um juiz adentra o recinto do tribunal e todos levantam, você não está se levantando para o indivíduo, mas para a toga que ele veste e para o papel que ele vai desempenhar” (Campbell, 1990, p. 12).

Sobre esses estágios da vida, há um que cuida exclusivamente da vida do herói, um modelo de narrativa, um arquétipo. Como podemos observá-lo no nosso dia a dia, o que são

as armas mágicas concedidas aos heróis em suas aventuras, o que representa o mentor, qual o papel da morte e ressurreição na trama simbólica? Podemos encontrar paralelos em todos os lugares? Quais? O mito do herói é nosso tema da próxima seção.