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Como se pode inferir, está muito longe do alcance deste trabalho apresentar uma discussão definitiva sobre o mito, suas origens, manifestações e importância. O que propomos nesse capítulo, então, é explicitar o que consideramos fundamental do nosso entendimento a partir do diálogo com alguns especialistas sobre o tema para o bom entendimento de nossa proposta.

Sofremos, como sociedades humanas, diversas modificações com o passar dos milênios. Há mudança em nossos pensamentos, sentimentos, nossas formas de compreender o mundo e ideologias. Também ampliamos nosso repertório de conhecimento e notamos as modificações em nosso corpo. As palavras também estão sujeitas à misteriosa dimensão do tempo. Elas podem ter o seu sentido esvaziado, expandido, mas o fato é que mudam.

A mudança de nossos padrões éticos e morais é um fato natural em toda a existência humana, o que antes era sagrado, hoje deixa de ser, o que antes era cultuado, venerado, hoje é considerado uma fantasia, a visão equivocada dos povos primitivos que nada sabiam da vida, não conseguiam explicar alguns fenômenos impressionantes e, por isso, recorriam aos deuses, mais especificamente aos mitos.

Os mitos estão presentes entre nós desde sempre e, assim como não podemos precisar bem a existência do homem, também não podemos prever a extensão histórica dos mitos em nossa cultura. O certo é que sempre estiveram e ainda estão entre nós. Deixando-se estar apenas na mitologia greco-romana, quem nunca ouviu falar de expressões como “o calcanhar de Aquiles”, “A caixa de Pandora”, “Flechado pelo Cupido”, “A esperança é a última que morre”, e outras.

Quem também nunca viu ou ouviu falar de Guerra nas Estrelas, Rei Leão, Troia, Fúria de Titãs, Senhor dos Anéis, etc. Todos esses filmes e expressões estão, de alguma

forma, ligados às grandes narrativas míticas da humanidade. Portanto, os mitos são tão antigos e tão atuais (Davis, 2015) e devem ser discutidos, problematizados no papel que desempenham em nosso mundo. Mas, para chegarmos a este ponto, é importante encontrarmos definições possíveis para essa palavra.

No dicionário escolar da Academia Brasileira de Letras (2011), temos a seguinte definição acerca da palavra mito:

Mito (mi.to) s.m. 1. Narrativa fantástica de caráter simbólico ou religioso, sobre divindades heróis ou elementos da natureza, difundida pela memória popular ou pela tradição: alguns mitos de civilizações diferentes têm aspectos comuns. 2. Pessoa cujas qualidades e ações são amplificadas e enaltecidas pelo grupo social a qual pertence: A mídia esportiva sempre forjou mitos dentre os jogadores de futebol. 3. Ideia fantasiosa, inverossímil, sem correspondente na realidade; crendice. Os alquimistas perseguiam o mito da eterna juventude. 4. Fig. Algo importante ou difícil de realizar-se; idealização, quimera, utopia: a paz não pode ser um mito (BECHARA, 2011, p. 866).

Apesar da multiplicidade de significações, para o senso comum, hoje, a palavra mito está mais identificada à idealização, isto é, uma “crendice” ou fantasia. Entre todas as definições possíveis no dicionário, pelo menos três apontam nessa direção. Poderíamos pensar que a segunda contém um valor positivo, mas o termo “amplificadas” e “enaltecidas” denotam também um sentido de algo irreal, ou melhor, verossímil – mas não verdadeiro.

Neste trabalho, compreendemos o mito a partir da primeira definição, como uma narrativa sagrada, de características alegóricas, difundida e parte da cultura popular e também como algo no qual reside um significado profundo em suas comparações e “ornamentos” linguísticos.

Ainda, reconhecemos os símbolos recorrentes nos mitos que, apesar de se manifestarem em culturas díspares, apresentam, muitas vezes, pontos de contato, de semelhança. Tratando especificamente do mito grego, Davis (2015) escreve:

A palavra mito deriva do grego mythos, que quer dizer “história”, e quando o filósofo grego Platão cunhou o termo “mitologia”, há mais de dois mil anos, estava se referindo a histórias que continham personagens inventados. Em outras palavras, o grande pensador grego considerava a mitologia uma grande ficção elaborada, mesmo que expressasse alguma “Verdade” maior. Platão – usando a voz de Sócrates como seu narrador – julgou a influência dos mitos deturpadora e, em seu Estado ideal, descrito em A República, baniu os poetas e suas fábulas (DAVIS, 2015, p.48). Mas, afinal, qual a razão do medo do pensador grego se as narrativas mitológicas traziam apenas ficção e qual seria essa verdade maior? Vejamos: os mitos se expressam através de alegorias, metáforas, e sempre possuem algum tipo de significado simbólico, proveniente do inconsciente coletivo do homem.

Quando uma imagem ou palavra são simbólicas, há algo nelas que está além do seu significado manifesto, algo que está além do expresso na superfície, “esta palavra ou esta imagem têm um aspecto ‘inconsciente’ mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado” (Jung, 2002, p. 20). Talvez neste significado mais profundo resida a desconfiança e o medo de Platão.

O mais interessante é que o próprio discípulo de Sócrates recorreu às alegorias - palavra grega cuja etimologia significa, basicamente, “dizer algo de outra maneira”- pois o que é o mito da caverna senão uma poderosa metáfora sobre suas ideias mais importantes? A divisão entre um mundo idealizado e outro sensível, a poderosa dicotomia que até hoje influencia nossa cultura.

É fato que Eliade (2011), antropólogo francês e estudioso dos mitos, reconhece que é difícil encontrar uma definição que agrade a todos os eruditos, mitólogos e especialistas em mitos. Aponta que o mito é uma “realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares” (ELIADE, 2011 p. 11). Mas, após o conceito que provavelmente agradaria a maioria, Eliade apresenta sua definição pessoal, diz:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, ou Cosmo, ou apenas fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente (ELIADE, 2011, p.10).

Na psicanálise, seja freudiana ou na psicologia profunda de Jung, o mito tem o seu lugar reservado e de extrema importância.

Em Londres ou Nova Iorque é fácil repudiar os ritos de fecundidade do homem neolítico como simples superstições arcaicas. Se alguém pretende ter tido uma visão ou ouvido vozes, não será tratado como santo ou como oráculo: dir-se-á que está com algum distúrbio mental. Ainda lemos os mitos dos antigos gregos ou dos índios americanos, mas não conseguimos descobrir qualquer relação entre estas histórias e a nossa própria atitude para com os “heróis” ou os inúmeros acontecimentos dramáticos hoje. No entanto, as conexões existem. E os símbolos que representam não perderam importância para a humanidade (HENDERSON, 2002, p. 108).

Desde os primórdios de nossa recente civilização, vivenciamos o mundo dos símbolos, dos mitos e das mensagens cifradas do inconsciente. Pinturas rupestres em cavernas, como as de Altamira, na Espanha, pedaços de ossos, estatuetas pequenas representando a fertilidade feminina como as Vênus de Willendorf e Laussel, misteriosas

estátuas gigantes de pedra (os Moai) na ilha de Páscoa, além das instigantes figuras antropológicas presentes no sítio arqueológico de Tiwanaku são evidências mais do que claras da importância de objetos criados pela imaginação e da força da mitologia em todas as culturas humanas, sejam elas do ocidente ou oriente.

É importante reiterar que, como aponta Eliade (2011), nas sociedades arcaicas em que os mitos ainda sobrevivem, eles não são considerados como narrativas ficcionais, mas como histórias verdadeiras por seu caráter sagrado.

Então, qual a importância de inserir os mitos nas aulas do ensino fundamental? É o que vamos discutir na próxima seção.