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4 A COMPULSÃO E A IMPULSÃO ALIMENTARES SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA E DA CLÍNICA PSICANALÍTICA

4.1 Impulsão ou compulsão? Uma importante distinção

Sigmund Freud em vários momentos de sua obra faz uso do termo “compulsão”, sobretudo, vinculando-o à neurose obsessiva. Este termo é também muito utilizado pelos teóricos da psiquiatria para demarcar um tipo específico de diagnóstico. Entretanto, a conotação que estes termos adquirem nestes dois campos em muito diferem. Para compreendermos estas diferenças demarcamos as especificidades concernentes ao diagnóstico sindrômico utilizado pela psiquiatria e ao diagnóstico diferencial específico da clínica psicanalítica 24. Esta diferença, relativa ao diagnóstico, nestes dois âmbitos do saber nos viabiliza compreender a especificidade da compulsão para a Psicanálise, onde é considerada um sintoma, e para a psiquiatria, onde é considerada um quadro clínico específico 25.

A impulsão, por sua vez, é um conceito com referências teóricas escassas no cenário psicanalítico, daí a necessidade de precisá-la e diferenciá-la clinicamente da compulsão, uma

24 Ver páginas 16 à 19 da presente dissertação.

25 Especificamente nesta dissertação estamos nos referindo ao diagnóstico psiquiátrico de compulsão alimentar.

Para maiores informações acerca da visão psiquiátrica da compulsão alimentar ver nota de rodapé 5 deste trabalho.

vez que não é tão frequente a sua discussão quanto o são as compulsões. Visando alcançar este objetivo nos embasaremos principalmente nos desenvolvimentos teóricos apresentados por Diana Rabinovich (2004) no livro Clínica da pulsão: as impulsões.

Devido a essa menor incidência no campo psicanalítico, não é rara (conforme demonstrou a nossa prática, bem como a literatura especializada) a confusão entre as manifestações clínicas das compulsões e das impulsões, sendo as últimas frequentemente confundidas e nomeadas como compulsões. O que podemos observar, por exemplo, na tese de Doutorado Sintoma, compulsão e fenômeno epiléptico: uma contribuição à clínica (D’AMATO, 2006) na qual o autor distingue dois tipos de compulsão: um tipo o autor aproxima das ditas patologias do ato 26, e distancia-a - no que tange à dimensão da repetição – do outro tipo, o qual diz respeito à compulsão relacionada ao sintoma e sua função.

O autor refere-se às patologias do ato como novos sintomas característicos da atualidade, dentre estes elenca: a bulimia, a anorexia, a toxicomania e o alcoolismo. Entretanto, é importante ressaltarmos que, em nosso entendimento, novos sintomas podem até aparecer na atualidade, mas devem ser analisados à luz da clínica das estruturas assim como qualquer outro sintoma, já que as formas de retorno do recalcado sob a égide do sintoma podem se dar sob diversas roupagens a depender do contexto cultural, mas o funcionamento do sujeito do inconsciente permanece atrelado às questões estruturais.

Nesta tese o autor propõe que “na compulsão, parece haver a ausência do Outro, fazendo erguer um vínculo forte com o ato, esta solidez do vínculo sujeito-ato nos leva a pensar uma não-referência ao Outro” 27 (D’AMATO, 2006, p. 43). Além disso, o autor ressalta que se trata de fazer uma passagem do sintoma para a compulsão como entidades distintas, ratificando, que nos casos de patologias do ato, as compulsões não dizem respeito a sintomas, mas estão vinculadas à dimensão do ato. Tais especificações deste “tipo” de compulsão estão em consonância com o que Rabinovich (2004) propõe acerca das impulsões. D’Amato (2006), inclusive, utiliza as teorizações de Rabinovich (2004) para respaldar suas concepções, mas especifica que se tratam de compulsões não fazendo, assim, uma diferenciação da incidência psíquica da compulsão em relação às impulsões.

26 Rabinovich (2004) também utiliza a expressão “patologias do ato”, porém para referir-se às impulsões e

discuti-las com relação à dimensão do ato implicada nas mesmas. Discutiremos em maiores detalhes esta relação entre as impulsões e o ato no item “4.3 - Concepções psicanalíticas acerca da impulsão e sua relação com as categorias: gozo, ato, sintoma e angústia” da presente dissertação.

27 É digno de nota esclarecermos que tanto na impulsão como na passagem ao ato há um comprometimento em

relação à referência que o sujeito faz ao Outro, sendo assim, o sujeito rompe com o Outro, mas isso não implica a inexistência de uma referência ao Outro.

D’Amato (2006) toma como base também as concepções da autora Jô Gondar para respaldar suas proposições. Para Gondar (2001) “as compulsões são patologias do ato” (p. 26), as quais são caracterizadas por

uma modalidade de recusa que não oferece lugar ao desejo. [...] Há uma recusa a obedecer as injunções, mas realizada de forma vazia, estando ausentes os argumentos ou atos que poderiam efetivamente fazer objeção aos mandamentos. É como se diante de uma lei experimentada como imperativo categórico — imperativo que não leva em conta os prazeres, desejos e inclinações singulares — a resposta do indivíduo fosse uma recusa igualmente categórica, uma desobediência que conduziria, paradoxalmente, à obediência do imperativo, na imposição de manter o desejo fora do campo. Por esse motivo, os atos de desobediência desse tipo flertam continuamente com o abismo e a autodestruição (GONDAR, 2001, p. 27).

O que está em relevo nestes casos, portanto, é a categoria do ato, a elisão do sujeito e a identificação deste ao objeto da pulsão, bem como um movimento de buscar a realização de um imperativo de gozo impossível de ser alcançado. Ou seja, diz respeito à incidência psíquica da impulsão, em contrapartida à compulsão, a qual está relacionada à formação do sintoma. Gondar (2001), inclusive, distingue dois sentidos para a compulsão na obra freudiana: o primeiro relacionado à compulsão como um sintoma formado, sobretudo, nas neuroses obsessivas; e o outro relacionado à compulsão à repetição, para a autora este segundo sentido é o que deve ser levado em consideração para abordar as compulsões implicadas nas patologias do ato.

Inferimos que esta não diferenciação entre as impulsões e compulsões, como a que constatamos na supracitada Tese, podem trazer comprometimentos no que tange ao rigor teórico e clínico com o qual o conceito de compulsão é abordado. Além do que é importante ressaltar que a relação entre compulsão à repetição é pertinente tanto nos casos de compulsão como de impulsão. Ou seja, o real comparece diferentemente em ambos os casos. A compulsão e a impulsão são incidências psíquicas distintas, que apresentam peculiaridades relevantes as quais devem ser consideradas tanto no âmbito teórico quanto clínico da Psicanálise. Por isso, ratificamos a importância da presente dissertação, na medida em que demarcamos as especificidades destes dois conceitos, sobretudo, no que concerne às categorias: gozo, ato, sintoma e angústia.

4.2 A compulsão sob a perspectiva da Psicanálise