• Nenhum resultado encontrado

Início da reflexão levinasiana sobre o ser: o mal do ser e a evasão

No documento O PROBLEMA DO SER NA OBRA DE E. LEVINAS (páginas 54-94)

O mal do ser

Em Da evasão1, um dos primeiros escritos de Levinas que não é apresentação do pensamento de algum outro autor da história da filosofia, mas em que ele apresenta a reflexão filosófica própria, a problemática do ser assume a posição central. Levinas propõe-se, neste breve estudo, uma tarefa surpreendente que atinge, nas suas palavras, o “coração da filosofia”:

“renovar o antigo problema do ser enquanto ser”2. O ser é aqui questionado; questionado é o

sentido que lhe foi dado na história da filosofia, sobretudo na história recente, e mais do que isto: Levinas começa a questionar o “ser enquanto ser”, a sua pertinência, a sua bondade, suficiência, perfeição. Isto, obviamente, pressupõe já uma compreensão própria do ser, que neste capítulo pretendo esboçar. Este questionamento se concretiza, na primeira parte do texto, em seguintes questões:

Qual é a estrutura deste ser puro? Ele tem a universalidade que Aristóteles lhe confere? Ele é o fundo e o limite das nossas preocupações, como preten-dem certos filósofos modernos? Não é, ao contrário, nada além da marca de uma certa civilização, instalada no fato consumado do ser e incapaz de sair dele? E, nestas condições, a excedência é possível e como ela se realiza? Qual é o ideal de felicidade e de dignidade humana que ela promete?3

Nem todas essas perguntas são respondidas de modo suficiente e definitivo neste escrito, elas se prolongam em várias obras. Antes, porém, de apresentar as respostas de

1 “De l’évasion”, de 1935, publicado pela primeira vez em Recherches Philosophiques 5 (1935-1936), p. 373-392, foi reeditado, com a introdução e as notas de Jacques Rolland: De l’évasion, Paris: Fata Morgana, 1982; esta é a edição usada aqui. Doravante: DE (usarei no texto o título em português, mesmo não existindo ainda a tradução portuguesa desta obra).

2 DE, p. 74.

3 Ibidem. Este modo de questionar o que é dado, isto é, de colocar perguntas concretas, é típico de muitos escri-tos de Levinas.

CAP. II: INÍCIO DA REFLEXÃO LEVINASIANA SOBRE O SER 55

Levinas, é útil notar uma referência “subterrânea” a Heidegger no propósito do escrito.4

uma relação clara com a sua compreensão do ser, clara embora não explicitada. Com J. Rolland podemos explicitá-la e sintetizá-la em três pontos. Em primeiro lugar, uma vez que Levinas aponta o questionamento do ser como o “coração da filosofia”, há uma compreensão da filosofia em comum entre os dois autores: um problema é filosófico por excelência na medida em que nos confronta com o problema do ser enquanto ser; o ser e o seu sentido é “a” questão da filosofia. Em segundo lugar, o ser é abordado a partir da diferença ontológica, na sua diferença em relação ao ente: Levinas se pergunta pela estrutura do ser puro, isto é, do ser distinto do ente. Em terceiro lugar, há uma opção clara de analisar o ser na sua relação com a existência humana, ou seja: a noção do ser não é em primeiro lugar uma noção teórica que o

homem contempla, mas é elaborada pela explicitação da existência humana.5

Excetuando, talvez, o primeiro ponto, estas referências à filosofia de Heidegger nunca serão abandonadas por Levinas. Isto, contudo, não significa que a relação com Heidegger não seja polêmica e a sua filosofia desde logo questionada: Levinas duvida que o ser puro tenha a estrutura descrita por Heidegger, que ele seja universal e, sobretudo, que o ser seja o fundo de todas as nossas preocupações, o horizonte último de todas as nossas relações.

Qual é, portanto, a estrutura do ser puro?

Desde as primeiras páginas do escrito, no interior do contexto que será plenamente es-clarecido mais adiante, Levinas adverte o leitor contra a redução da compreensão do ser à imagem do ser das coisas. A estrutura do ser, ou o seu sentido, só pode ser adequadamente

colhido se analisado a partir da existência humana. As coisas simplesmente são; quando

pensamos a sua existência, prescindindo das suas essências, das propriedades ou característi-cas que podem ser perfeitas ou imperfeitas, prescindindo das coisas enquanto entes, esta, a

4 Esta referência a Heidegger pode ser chamada de subterrânea, porque o nome deste autor não é sequer citado por Levinas na obra que estudamos, e não obstante isso a situação filosófica deste escrito, segundo J. Rolland, é o conflito latente com ele e com a sua filosofia do ser, com a renovação da pergunta pelo sentido do ser, cuja exigência Heidegger exprime alguns anos antes do aparecimento deste escrito, em Sein und Zeit (cfr. Jacques Rolland, “Sortir de l’être par une nouvelle voie”, em DE, p. 15).

CAP. II: INÍCIO DA REFLEXÃO LEVINASIANA SOBRE O SER 56 existência ou o ser, aparece com uma suficiência absoluta. O ser afirmado não se refere a nada outro além de si mesmo, é identidade:

[A] categoria da suficiência é concebida a partir da imagem do ser, tal como no-lo oferecem as coisas. Elas são. Sua essência e suas propriedades podem ser perfeitas, o próprio fato de ser situa-se para além da distinção do perfeito e do imperfeito. A brutalidade de sua afirmação é absolutamente suficiente e não se refere a nada de outro. O ser é: não há nada a adicionar a esta afirma-ção enquanto se considera num ser apenas sua existência. Esta referência a si mesmo é precisamente o que se afirma quando se fala da identidade do ser. A identidade não é uma propriedade do ser e não poderia consistir numa se-melhança de propriedades que já supõem a identidade. Ela é a expressão da suficiência do fato de ser, cujo caráter absoluto e definitivo, parece, ninguém poderia pôr em dúvida.6

O ser ou a existência, na medida em que é a afirmação do fato de ser de alguma coisa cuja essência não se considera, é a afirmação de si mesmo, a referência a si mesmo; situa-se além da perfeição ou imperfeição – pois estas podem dizer-se apenas das propriedades, daquilo que alguma coisa é, não do fato de que a coisa é – e além das noções do finito e infi-nito, que também podem referir-se apenas ao que é. A afirmação “o ser é” é por isso mesmo uma tautologia, não diz nada além desta afirmação do ser; o verbo apenas afirma ou põe o que está no sujeito, é a afirmação desta identidade do ser consigo mesmo, da sua posição. O ser é esta posição ou afirmação. Daí, a definição do fato do ser ou do existir: “Ele é aquilo pelo que todos os poderes e todas as propriedades se põem. [...] Haverá uma maneira mais ou menos perfeita de se pôr? O que é, é. O fato do ser é desde já perfeito. Ele já se inscreveu no

abso-luto”.7 A perfeição do ser é, pois, de uma natureza diferente da perfeição das coisas, tanto que

Levinas ao mesmo tempo afirma, mais adiante, que o ser é imperfeito enquanto ser. O seu

caráter absoluto revela o definitivo do ser.8

6 DE, p. 68-69.

7 DE, p. 75-76.

8 J. Rolland, no ensaio introdutório a DE, relaciona esta afirmação ou posição do ser com a verbalidade do ser, da qual Levinas de fato fala nas obras estudadas no primeiro capítulo, mas alguns anos posteriores a DE, e com a noção do “há”. Isto certamente lança alguma luz sobre a definição do ser em DE, por isso o cito, embora eu mesma prefira pensar estes aprofundamentos a partir das obras em que o próprio Levinas as possibilita. “A ‘perfeição’ do ser é a sua brutalidade, a brutalidade do seu há. Ela é, com efeito, sua perfeição de verbo, sua pura verbalidade, quer dizer ainda, sua pura afirmação. O ser é, a proposição não sai da tautologia mas, nela mesma, ela significa que o ser se afirma ou se põe; ela significa, poderia se dizer, sua energia de ser. Afirmação ou posição‘perfeitas’ na medida, precisamente, em que elas não são as de um ente mas designam o verbo pelo qual

CAP. II: INÍCIO DA REFLEXÃO LEVINASIANA SOBRE O SER 57 Ora, o sentido desta posição ou afirmação absoluta não se colhe no ser das coisas, onde a identidade do ser significa uma mera forma lógica, uma tautologia. Ela revela um caráter dramático, uma gravidade, a partir da existência humana, na referência a si mesmo do homem. O homem descobre nesta referência uma dualidade: a sua identidade consigo mesmo é a identidade do eu e do si. Ora, esta relação do eu a si mesmo perde o seu caráter lógico ou tautológico, revelando-se como um acorrentamento. Diz Levinas: “Na identidade do eu, a

identidade do ser revela a sua natureza de acorrentamento [enchaînement], pois ela aparece

sob a forma de sofrimento e invita à evasão”.9 A identidade do eu consigo mesmo aparece

como um sofrimento, um acorrentamento radical, do qual o homem sente a necessidade de se livrar.

Depois de ler a compreensão levinasiana do problema do ser em Husserl e Heidegger, uma tal afirmação certamente surpreende: Por que Levinas encontra no ser do homem este sentido dramático? Por que a afirmação do ser revela de repente uma brutalidade, como Levinas afirma? Por que o sentido do ser, depois de encontrar um desabrochamento e apro-fundamento em Husserl e Heidegger, inclina com Levinas neste sentido negativo?

Uma leitura atenta das primeiras páginas da Da evasão aponta para uma resposta

parcial. Para a filosofia tradicional, a auto-suficiência do fato do ser não despertava problema; ela concebia o ser do homem, segundo a imagem do ser das coisas, como suficiente a si mesmo, como consistindo num núcleo inquebrantável de simplicidade, unidade e paz consigo mesmo. Os conflitos do homem, mesmo os que se erguem no interior do homem, entre o eu e o não-eu, não são conflitos consigo mesmo ou com o próprio ser, mas com aquilo que no homem não é autenticamente humano, com o mundo, na medida em que o ser deste fere a liberdade da alma humana. A unidade do sujeito, o repouso pacífico sobre si mesmo, pode

o ente pode unicamente ser posto – na medida em que elas designam o fato mesmo da afirmação ou da posição, o fato que há, aquém ou em retirada de tudo aquilo que há, o fato pelo qual há tudo aquilo que há. Mas, simulta-neamente, [...] afirmação ou posição imperfeitas, essencialmente imperfeitas enquanto horríveis na maneira que têm de se afirmar sem retenção ou de se pôr até se impor absolutamente” (J. Rolland, op. cit., p. 18-19).

CAP. II: INÍCIO DA REFLEXÃO LEVINASIANA SOBRE O SER 58 sempre ser readquirido, conseguido. Este é o ideal do conceito do homem também no roman-tismo, na filosofia burguesa e capitalista. A filosofia ocidental, por conseqüência, nunca se revoltou contra o ser; quando ela combate o ontologismo, combate por um ser melhor, pela harmonia entre nós e o mundo, pelo aperfeiçoamento do nosso ser, pressupondo deste modo a suficiência do próprio ser. Contra a insuficiência da condição humana há um ideal de paz e de equilíbrio do ser; há uma aspiração a transcender os limites e a finitude do que é, para alcan-çar a comunhão com o ser infinito. Levinas diz claramente: “A insuficiência da condição

humana nunca foi compreendida de outro modo que como uma limitação do ser, sem que a

significação do ‘ser finito’ fosse alguma vez considerada”10.

A situação muda com a “sensibilidade moderna”, com a “geração contemporânea”, que deve combater problemas que não dizem mais respeito a esta preocupação com a trans-cendência dos limites do ser. “Como se ela tivesse a certeza que a idéia de limite não se pode-ria aplicar à existência do que é, mas unicamente à sua natureza e como se ela percebesse no

ser um vício mais profundo.”11 É este vício mais profundo no ser que obriga a pensar o

significado da finitude do ser, a sua gravidade e seriedade e conduz à condenação mais radical da filosofia do ser.

A geração contemporânea, diz Levinas, isto é, a geração dos povos europeus que expe-rimentaram a guerra e o tempo pós-guerra, teve uma experiência nova do ser, do ser como

mal, “mal do século”12. Em que consiste esta experiência? Cito a passagem de Levinas que a

descreve:

Não é fácil redigir a lista de todas as situações da vida moderna em que ele [o mal do século] se manifesta. Elas se criam numa época que não deixa ninguém à margem da vida e em que ninguém tem o poder de passar ao lado de si [passer à côté de soi]. Quem é preso na engrenagem incompreensível da ordem universal não é mais o indivíduo que ainda não se pertence, mas uma pessoa autônoma que, sobre o terreno sólido que conquistou, sente-se, em todos os sentidos do termo, mobilizável. Posta em questão, ela adquire a

10 DE, p. 69; sublinhado meu.

11 DE, p. 69.

CAP. II: INÍCIO DA REFLEXÃO LEVINASIANA SOBRE O SER 59 consciência aguda da realidade última cujo sacrifício lhe é exigido. A exis-tência temporal toma o sabor indizível do absoluto. A verdade elementar de que há o ser – o ser que vale e que pesa – revela-se numa profundidade que mede sua brutalidade e sua seriedade.”13

O sujeito autônomo do racionalismo e idealismo sente-se de repente posto em questão, mobilizável por uma engrenagem incompreensível da ordem universal que a guerra faz expe-rimentar. A autonomia é posta em questão, uma vez que o sujeito mobilizável não depende mais unicamente de si mesmo; a autonomia inverte-se em heteronomia. A partir da existência humana revela-se uma realidade última, que é o ser, o fato de que há ser, com toda a sua gravidade. O clima semelhante de uma nova experiência do ser, do fato de haver ser, que pesa e provoca uma fadiga e que obriga a repensar o conceito do homem e do ser, é descrito por

Levinas também num outro texto contemporâneo a Da evasão14:

A guerra, os sombrios pressentimentos que a precederam e a crise que lhe seguiu, deram ao homem um sentimento de existência que a razão soberana e impassível não teria sabido nem esgotar, nem satisfazer. Uma geração do-lorosamente consciente da importância do temporal e do sabor agudo de um destino fechado nos limites do tempo, não pôde mais ignorar o peso ou a

gravidade desta existência. O real que se tornou volátilsob o sopro subtil da inteligência, que se dissipou num jogo de relações, ergueu-se bruscamente diante do homem como um bloco sólido. O eu sentiu-se pressionado pela obrigação de se explicar com o ser (de se expliquer avec), de esclarecer as ligações que o prendem a ele. Ele sentiu-se extremamente insuficiente e in-capaz de suportar esta massa do real [...]. Esta é a significação verdadeira do renascimento da ontologia ao qual assistimos. Ela procede sobretudo deste sentimento irredutível de que há o ser; ou seja, que a existência tem um valor e um volume,que o eu pensante não é o apoio de si mesmo e que, por conseqüência, a noção do sujeito não basta para dar conta do ser.15

13 Ibidem.

14 Trata-se da análise levinasiana da obra La présence totale de Louis Lavelle, publicada em Recherches Philosophiques IV, em 1934, p. 393. Cito a longa passagem, por trazer novos esclarecimentos da questão da experiência do ser que a guerra proporciona e por o texto ser dificilmente disponível. A citação é dada por Miguel Abensour, em “Le mal élémental”, em E. Levinas, Quelques réflexions sur la philosophie de hitlérisme, Payot & Rivages, 1997, p. 67.

15 A guerra, à qual Levinas se refere neste texto, deve ser a primeira guerra mundial, talvez com os sombrios pressentimentos da segunda guerra mundial que explodiu 5 anos mais tarde. Depois da primeira guerra, que provocou profundas dilacerações nas gerações que a sofreram, “uma dilaceração de toda a vida e de toda a experiência vital, uma dilaceração que vai a fundo muito mais de um simples processo de cisão entre os indiví-duos e que atinge o indivíduo único e a sua realidade unitária” (H. Broch, “La disgregazione dei valori”, em Azione e conoscenza, Milano: Lerici, 1966, p. 9-10; apud G. Lissa “Critica dell’ontologia della guerra e fondazi-one metafísica della pace in E. Levinas”, em Giornale Critico della Filosofia Italiana, 7, 1987, p. 122, nota 2), dilacerações que resultaram num repensar o real e a posição do indivíduo nele, encontramos a expressão “mobi-lização total” para definir esta situação em diversos autores, por exemplo em E. Jünger e M. Heidegger. “Como Jünger, também Heidegger, na mobilização total dos seres iniciada pela primeira guerra mundial, viu o fenô-meno determinante da época em que a vontade de potência reúne a totalidade do ente através da técnica” (ibid.,

CAP. II: INÍCIO DA REFLEXÃO LEVINASIANA SOBRE O SER 60 A noção do sujeito, sujeito autônomo, racional, fundamento da realidade, não conse-gue mais explicar a experiência do ser, a própria existência. Daí a percepção aguda de haver algo além do sujeito e da sua autonomia, de haver o ser, a experiência do fato do ser, do seu

peso e sua gravidade. Em que consiste esta gravidade? Levinas explica em Da evasão:

O jogo amável da vida perde o seu caráter de jogo. Não que os sofrimentos, dos quais ele é ameaça, o tornam desagradável, mas porque o fundo do so-frimento é feito de uma impossibilidade de o interromper e de um senti-mento agudo de ser amarrado. A impossibilidade de sair do jogo e de resti-tuir às coisas sua inutilidade de brinquedos anuncia o instante preciso em que a infância termina e define a própria noção do sério. O que conta, por-tanto, em toda esta experiência do ser, não é a descoberta de um caráter novo da nossa existência, mas do seu próprio fato, da própria inamovibilidade da nossa presença.16

O ser, ou a própria existência, se revela ao eu como um jogo impossível de interrom-per, que por esta mesma razão deixa de ser jogo, provoca sofrimento; a gravidade do ser consiste na sua inamovibilidade, irremissibilidade, no caráter absoluto e definitivo da sua

presença. O ser revela-se no sentimento agudo de ser amarrado (être rivé) ao próprio ser, à

presença de si mesmo, a si mesmo. Aqui reencontramos o acorrentamento do eu a si mesmo, o ser como um aprisionamento, do qual se sente necessidade de sair. Esta é, em última instân-cia, a estrutura do ser, tal como o revela o novo contexto da existência que a guerra provocou, tal como se revela na experiência da própria existência neste contexto. Convém precisar com J. Rolland, que é na existência que se apercebe de si mesma, do fato da sua presença e da inamovibilidade desta presença, com outras palavras, na existência que se compreende, que o ser revela o sentido da sua estrutura de ser amarrado.

Da evasão, que precisa ainda melhor esta experiência do ser pela análise da situação da náusea e da vergonha e pretende elaborar também o conceito da saída do ser, não explica, porém, ulteriormente a razão ou o porquê desta estrutura do ser e do seu caráter brutal. Penso

p. 132, nota 25). Esta experiência do ser será aprofundada por Levinas após o traumatismo da segunda guerra mundial, como poderemos constatar nas obras posteriores.

CAP. II: INÍCIO DA REFLEXÃO LEVINASIANA SOBRE O SER 61 que seja preciso procurar ulteriormente a elucidação deste caráter brutal do ser como afirma-ção ou posiafirma-ção absoluta.

J. Rolland se pergunta sobre a origem filosófica desta noção do ser amarrado. Em pri-meiro lugar, ele é atento ao fato que Levinas usa este termo já ao apresentar pela primeira vez a filosofia de Heidegger, no texto “Martin Heidegger e a ontologia”, nomeadamente, ao falar

da noção de Geworfenheit: “A disposição afetiva, que não se separa da compreensão – pela

qual a compreensão existe -, revela-nos o fato de que o Dasein é amarrado às suas

possibili-dades, que o seu ‘aí’ [son ‘ici-bas’] [o seu ‘aqui em baixo’, o seu mundo] se lhe impõe”17. Na

compreensão levinasiana da Geworfenheit, portanto, da facticidade original do Dasein que é a

explicação ontológica do fato da sua existência e a fonte da afetividade, o fato de o Dasein ser

lançado ou jogado no mundo e nele abandonado significa que as suas possibilidades lhe são impostas, que ele é amarrado a elas, ao mundo. Mas Heidegger pensa esta facticidade do

Dasein na sua relação com o projetar-se para fora de si, na sua oposição ao projeto, Entwurf.

Segundo Rolland, Levinas reflete sobre a Geworfenheit, fazendo da sua obra também um

“ensaio da hermenêutica da facticidade”, diferindo de Heidegger pelo fato de parar o movi-mento da análise deste, de se deter no fato de ser amarrado, sem avançar para o que completa

esta estrutura, isto é, para a estrutura do projetar-se para fora de si do Dasein em direção a

suas possibilidades. Nas palavras de Rolland:

Poder-se-ia dizer que a reflexão de Levinas se detém sobre a Geworfenheit

de modo a descobrir e a descrever uma situação em que a existência não en-contra mais em si uma propensão indo além da situação imposta, uma

No documento O PROBLEMA DO SER NA OBRA DE E. LEVINAS (páginas 54-94)

Documentos relacionados