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O ser: a separação e o pensamento

No documento O PROBLEMA DO SER NA OBRA DE E. LEVINAS (páginas 151-200)

Na obra Totalidade e Infinito, de 1961, a reflexão levinasiana sobre o ser é sem dúvida

amadurecida, erigida num edifício sólido que relaciona entre si os conceitos e questões en-contrados nas obras anteriores juntamente com questões e conceitos novos, alargando-os a partir de uma visão crítica a respeito de toda a história do pensamento ocidental. O que se pretende ultrapassar, nesta obra, não é apenas o clima da filosofia de Heidegger; Levinas encontra parentesco entre este clima e o da filosofia ocidental na sua orientação geral, na sua concepção do ser, do pensamento ou saber, do outro. O fio condutor do pensar levinasiano, que foi encontrado nas obras anteriores, nesta obra mais complexa não é mais tão nítido – a sua explicitação exige um esforço maior, uma “arqueologia”.

Nesta parte do trabalho pretendo analisar esta obra, juntamente com alguns artigos im-portantes que a precedem ou seguem e que com ela formam uma unidade mais ou menos coe-rente, que encontra nesta obra maior, precisamente, a expressão mais clara. Vemos o questio-namento sobre o ser – que, a meu ver, não obstante as questões importantes que encontraram maior destaque nas interpretações e comentários da obra de Levinas, permanece central – polarizar-se em torno de alguns problemas maiores, que poderiam ser anunciados de seguinte modo: a relação entre ser, pensamento e linguagem; a relação entre ser e ética, ou ser e o Bem, e a ela relacionada a problematização da relação entre a ontologia e a ética; o problema da transcendência e a relação entre o Infinito e finito; o problema da multiplicidade ou unidade do ser; a relação entre ser e tempo. A questão sobre a origem do ente no ser, que se

levantou fortemente nas primeiras obras de Levinas, como uma contraposição à Geworfenheit

CAP. V: O SER: A SEPARAÇÃO E O PENSAMENTO 152 reorientar-se lentamente, como foi indicado no último capítulo, para o questionamento da origem da subjetividade humana, como único campo possível da investigação sobre a origem

do sentido. A partir da Totalidade e Infinito se torna extremamente claro que a Levinas não

interessa, na problemática da origem, da criação, nenhum problema cosmológico ou ontológico. A pergunta fundamental poderia, talvez, ser anunciada assim: como o ser pode significar, como surge a significação no ser? Ou também: como se pode sair do mal no ser, sendo o mal no ser a absoluta falta de sentido? Este problema toca a questão da relação entre o pensamento e o ser, já que o sentido deve poder ser pensado; esta problematização do

pensamento e do conhecimento é novidade de Totalidade e Infinito em relação às obras

anteriores. Mas, mais fundamentalmente ainda, o problema do sentido do ser diz respeito à relação do Eu com o Outro, relação intersubjetiva - é a partir desta relação que o mal tem lugar, ele não diz respeito somente à relação do ente isolado com o ser. Ou seja, o problema do mal é também o problema da relação com o ser, da abertura do ser, no Eu, para o Outro. Todos estes temas estão imbricados na obra de Levinas e a sua sistematização implica cortes e costuras às vezes artificiais, que, por sua vez, apontam para a subjetividade do leitor e da leitura – e assim para o elemento subjetivo subjacente em todo sistema. Este, talvez, permite que a obra de Levinas seja ainda pensada em termos de diálogo ou discurso entre interlo-cutores, diálogo que não tem pretensão de ser conclusivo.

Neste capítulo pretendo, em primeiro lugar, situar a problemática do ser no seu novo contexto, apontando as suas dimensões, abordando a relação entre o ser e o pensamento, a noção de separação no ser e a relação, no ser, entre a interioridade e a exterioridade como abertura da interioridade.

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A ontologia é fundamental?

O texto com este título1, de 1951, introduz uma novidade em relação à convicção de

Levinas a respeito dos problemas e das estruturas ontológicas; em O Tempo e o Outro,

Levinas afirmava crer na existência destas estruturas, crer no sentido da noção do ser, e pre-tendia descobrir a sua dialética, descobrir na economia do ser o lugar das categorias

ontológi-cas novas, tais como solidão, fecundidade, paternidade.2 A partir da convicção da função

fundamental destas estruturas é elaborada a pesquisa filosófica das primeiras obras. O aban-dono pós-guerra do clima da filosofia heideggeriana prolonga-se, porém, num repensar mais profundamente toda a tradição ontológica ocidental. Nas obras de Levinas parece levantar-se uma nova certeza: as estruturas ontológicas certamente podem ser pensadas, mas elas não são fundamentais, no sentido de não terem o papel de fundamento; elas têm raízes e condição de possibilidade nas estruturas e acontecimentos mais originais e originários. “É necessária uma

relação originária e original com o ser”, diz Levinas no prefácio a Totalidade e Infinito3,

supondo, portanto, que a ontologia não trata da relação mais originária com o ser.

Ora, questionar o primado da ontologia significa questionar “uma das mais luminosas

evidências”4 sobre a qual repousa este primado e da qual deriva a dignidade das investigações

ontológicas: a evidência do fato da existência dos entes, evidência ou compreensão implícita em toda a nossa relação com os entes, em todo o conhecimento dos entes e das relações entre eles. Como é possível questionar esta evidência?

Levinas retoma no artigo a novidade da ontologia heideggeriana que impressionou os pensadores contemporâneos, por renovar os temas ontológicos tradicionais, fazendo-os con-vergir com as preocupações atuais da sua época. A compreensão do ser – o que seria próprio

1 E. Levinas, “L’ontologie est-elle fondamentale?”, Revue de Métaphysique et de Morale, 56 (1951), p. 88-98. Reeditado em EN, p. 21-33.

2 TA, p. 17-18.

3 TI, p. 10.

CAP. V: O SER: A SEPARAÇÃO E O PENSAMENTO 154 da ontologia – não é, pois, a partir deste autor, uma entre as faculdades da razão humana, como já sabemos, mas ela coincide com a própria existência, com a relação do homem com o seu próprio ser: todo o comportamento humano, a própria tensão da existência para com a sua

condição temporal, é ontologia - “o homem inteiro é ontologia”5. Heidegger parece, assim,

romper com o intelectualismo, com a estrutura teórica do pensamento e da compreensão do ser; pensar não seria mais uma atitude contemplativa, mas o próprio engajamento do homem no que pensa, o próprio acontecimento do ser-no-mundo. Levinas adere à pretensão da supe-ração do primado do teórico, da consciência: os nossos atos excedem as intenções conscientes e somos, de fato, responsáveis para além das nossas intenções; “nossa consciência e nosso domínio da realidade pela consciência não esgotam nossa relação com ela, [...] estamos aí

presentes com toda a espessura do nosso ser”6.

Mas, eis que Levinas inverte já a relação entre o ser e a compreensão que parecia ir além do teórico: se a relação teórica com o ser, o pensamento, na ontologia clássica era apenas uma das dimensões da nossa existência, a mais alta e a mais digna, a extensão heideggeriana da compreensão do ser para toda a existência não significa o superamento do intelectualismo, mas a infiltração do teórico, da inteligibilidade, da compreensão, em todas as dimensões da existência concreta do homem. Também as dimensões que não são pensamento interpretam-se como compreensão. A transitividade do verbo ser, que parecia impressionar Levinas, revela agora o significado do seu parentesco com o verbo conhecer. O compreender, isto é, o conhecer, esgotaria o significado da existência; para a filosofia heideggeriana

perma-nece ainda verdadeira e válida a afirmação de Aristóteles que abre a Metafísica: “Todos os

homens aspiram por natureza ao conhecimento”.7

A existência humana como compreensão está fundada numa noção do ser: o ser é in-separável da sua abertura, isto é, da sua inteligibilidade, da sua verdade. É a abertura do ser

5 EN, p. 22.

6 EN, p. 24.

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que, segundo Heidegger, possibilita o Dasein como compreensão do ser e a inteligibilidade de

cada ente particular para o Dasein.

O fato de o ente ser ‘aberto’ não pertence ao próprio fato do seu ser? Nossa existência concreta interpreta-se em função de sua entrada no ‘aberto’ do ser em geral. Nós existimos num circuito de inteligência com o real – a inteli-gência é o próprio acontecimento que a existência articula. Toda incompre-ensão não é senão um modo deficiente de compreincompre-ensão. Sendo assim, a aná-lise da existência e do que se chama sua ecceidade (Da) nada mais é que a descrição da essência da verdade, da condição da própria inteligibilidade do ser.8

A inteligibilidade de cada ente estaria no seu fato de ser, isto é, no percebê-lo no hori-zonte do ser, na sua abertura no aberto do ser. Traduzido em termos da tradição filosófica ocidental isto significa, segundo Levinas, que para Heidegger compreender um ente particular significa ir além da sua particularidade, em direção ao universal: “compreender é relacionar-se ao particular, único a existir, pelo conhecimento que é relacionar-sempre conhecimento do univer-sal”9.

Como contestar esta conjuntura entre ente e ser através da compreensão ou conheci-mento? Pode-se, certamente, dizer, contra Levinas, que para Heidegger a compreensão não é ainda um conhecimento universal, conhecimento através dos conceitos universais; a compre-ensão primeira do ser dos entes, que se esboça através da própria existência humana, é uma compreensão implícita, não conceptual, não refletida. Ela deve ainda passar por uma explici-tação e clarificação para se tornar conhecimento. Por outro lado, também a própria noção do ser, à qual a inteligibilidade de cada ente se refere, não é um conceito universal no sentido tradicional; a sua universalidade ou transcendência em relação ao ente particular deve também

ser adequadamente esclarecida, afirma Heidegger em Ser e Tempo10. Levinas deverá

ulterior-mente esclarecer as suas críticas. Além disso, o que está em questão não é soulterior-mente a noção de

8 Ibidem.

9 EN, p. 26.

10 M. Heidegger, Sein und Zeit, Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1986; edição portuguesa: Ser e tempo, trad. port. M. S. Cavalcante, Petrópolis: Vozes, 1988, 7ª ed., p. 28-29. Isto vale também para o sentido tradicional do ser: a sua universalidade não é a do conceito, porque se conjuga com a absoluta imanência do ser em tudo o que há; há uma mudança de ordem entre a abstração e a apreensão do ser.

CAP. V: O SER: A SEPARAÇÃO E O PENSAMENTO 156 ser, mas a relação entre o ente e o ser, a implicação do ser na inteligibilidade dos entes para o homem. De qualquer modo, em “A ontologia é fundamental?” Levinas parece aceitar, até certo ponto, a evidência imediata da remissão dos entes ao ser. Contra ela, contra o lugar fun-damental do ser, não se pode opor preferências pessoais pelo ente, erigir uma preferência em condição da ontologia. Trata-se de mostrar que a ontologia, isto é, a relação de compreensão, não é a relação primeira com o ente, que ela própria tem condições; que a abertura do ser que permite a inteligibilidade do ente não é compreensão. Isto, porém, não é possível se os entes são tomados indistintamente, nivelados a partir da sua entidade. Para qualquer ente, visto na sua entidade, pode valer que a relação com ele começa com a compreensão inicial do seu ser, entendida como o fato de deixá-lo ser enquanto ente, independente da nossa percepção. Para

qualquer ente - “salvo para outrem”11.

Há uma diferenciação – uma separação – a ser estabelecida entre os entes. Heidegger já salientou que não se pode compreender o ser a partir de qualquer ente, a partir das coisas;

elaborou a sua ontologia a partir do ser do ente humano, Dasein. Nas primeiras obras,

Levi-nas, como vimos, seguiu a indicação heideggeriana, investigando a relação do existente – eu

com o ser. Em Da existência ao existente e em O Tempo e o Outro, sensível à crítica à

repre-sentação elaborada por toda uma geração dos filósofos contemporâneos, desde Bérgson, Husserl, Heidegger, até os filósofos da existência e outros, Levinas procurava a relação do existente com o ser anterior ao conhecimento ou reflexão teórica, a relação primeira, o começo da relação. Esta relação revelou-se como acontecimento da posição, assunção do ser, que é uma dominação sobre a inumanidade do ser puro, relação de sujeição do ser no meio da subjugação à sua irremissibilidade na solidão; a relação com o ser que se dá no interior do existente solitário dá-se em termos de poder. A relação com o ser no mundo, a consciência, resolve-se em gozo e conhecimento, mas estes não mudam a sua determinação primeira,

CAP. V: O SER: A SEPARAÇÃO E O PENSAMENTO 157 apenas a tornam mais leve, menos imediata, uma vez que entre o ser e o sujeito se inserem as relações com os objetos. Mas Levinas, além disso, detectou uma dialética que, começando pela hipóstase, desembocava na relação com o Outro, na facticidade que não se refere à rela-ção com o ser, através das situações de morte, encontro com o feminino e a paternidade.

A relação de poder, que parece ser a relação fundamental com o ser que explica também o conhecimento, pode ser, assim, perturbada por duas instâncias. Aquém do mundo, ela é perturbada pelo ser puro, contra o qual, precisamente, o existente deve afirmar-se a cada instante, incessantemente, como poder; esta afirmação tem sucesso relativo, o há continua a perturbar e ameaçar o existente solitário. Se, para Heidegger, toda a relação com os entes situa-se no interior da compreensão do ser, que seria a primeira iluminação ou abertura, ante-rior à teoria e à representação, Levinas, por sua vez, mostrou que esta primeira relação não é compreensão, nem sequer a compreensão pelo sentimento da existência. No há, todo o pen-samento, a sensação e o sentimento, enquanto compreensão de algo por alguém, extinguem-se no indeterminado. O há é a situação de incompreensão por excelência, da absoluta falta de luz; o ser puro não é luz, não é aberto, não tem sentido. Como ele pode proporcionar inteligi-bilidade aos entes? E como, contudo, a consciência desponta sobre o há, pela própria hipós-tase, e possibilita ao eu uma distância em relação ao ser, um domínio, uma luz? A questão sobre a relação entre o sentido, o pensamento e o ser se levanta fortemente a partir destas reflexões, inclinando a reflexão para o problema da origem da subjetividade como possibili-dade do sentido no ser, origem que não está no ser puro nem na relação que o homem mantém com ele, mas vem ao ser de outro “lugar”.

Do “para além” do mundo, por sua vez, a relação de poder é perturbada pelo mistério do outro, acontecimento diferente do poder e que desata a tensão do existente para com o seu ser, dando-lhe futuro, permanência não violenta no ser. Em “A ontologia é fundamental?”, Levinas afirma com decisão que se deve começar pela consideração do outrem; ou seja, não

CAP. V: O SER: A SEPARAÇÃO E O PENSAMENTO 158 se pode superar o primado do teórico e da ontologia a não ser que se comece pelo outrem, que se considere o ser a partir da relação com o outrem.

“A relação com outrem [...] não é ontologia”12 – é uma das conclusões de Levinas no

texto “A ontologia é fundamental?”. Nele o autor já avança com os argumentos, que

encontra-rão em Totalidade e Infinito o seu desenvolvimento maduro e o seu suporte. Se a ontologia

não é fundamental, se, portanto, a relação de compreensão com o ser não mantém o seu primado e a própria noção do fundamento não parece se sustentar, como vimos no capítulo precedente, permanece aberta a questão sobre a origem, sobre o princípio: o que é primado, afinal, o que é primeiro? O questionamento sobre o significado da criação e da criaturalidade do ente não está implicado nesta problematização do primado do ser, do conhecimento e da ontologia?

Levinas esforçar-se-á por demonstrar, nos textos a seguir, que a relação com outrem é a condição de possibilidade da compreensão, que a inteligibilidade do ser não consiste na relação de poder que o homem pode sempre manter com as coisas e com o ser na compreen-são, mas se instaura na ordem humana, distinta e anterior à ontologia.

O racional reduz-se ao poder sobre o objeto? É a razão dominação em que a resistência do ente como tal é superada, não por um apelo a esta resistência mesma, mas como por um ardil de caçador que apanha o que o ente com-porta de forte e irredutível a partir de suas fraquezas, de suas renúncias a sua particularidade, a partir do seu lugar no horizonte do ser universal? Inteli-gência como ardil, inteliInteli-gência da luta e da violência, feita para as coisas – estará ela em condições de constituir uma ordem humana? Paradoxalmente, fomos habituados a procurar na luta a própria manifestação do espírito e sua realidade. Mas a ordem da razão não se constitui antes numa situação em que ‘se fala’, em que a resistência do ente, enquanto ente, não é quebrada, mas pacificada?13

Esta investigação da racionalidade, da origem do inteligível ou do sentido, da relação entre o ser, pensamento, sentido e linguagem, é uma das características marcantes da filosofia

levinasiana que se exprime na obra Totalidade e Infinito. No prefácio desta obra, Levinas

expõe a problemática da relação com o ser, indicando em que direção vai o seu

12 EN, p. 29.

CAP. V: O SER: A SEPARAÇÃO E O PENSAMENTO 159 mento do primado da ontologia, isto é, da relação com o ser como compreensão; esta exposi-ção ajuda a situar os desenvolvimentos complexos da obra em relaexposi-ção a este questionamento central.

Levinas concorda com a tradição na convicção de que a relação com o ser deve ser o pensamento. Mas, o pensamento verdadeiro começa com a evidência? Esta é a convicção firme da tradição que Husserl ainda encerra e, embora isto não seja explicitado no prefácio, sabemos que a noção heideggeriana de compreensão está inserida, segundo Levinas, nesta tradição: embora a compreensão se oponha ao pensamento, por meio da noção de poder ela alcança o que mais propriamente caracteriza a relação com o real segundo a ontologia clás-sica. Se o pensamento se apodera do real pela evidência – isto é, como Husserl ensina, se o pensamento consegue adequar o ser ou o real pela idéia, pelo conceito, ou seja, se o pensa-mento é essencialmente objetivação, abordagem do real como objeto – o ser é guerra. A inte-ligência como ardil, a inteinte-ligência da luta e da violência, feita para as coisas, capta a realidade como luta, como guerra. O ser, na evidência, se revela como guerra.

Não há necessidade de provar por meio de obscuros fragmentos de Heráclito que o ser se revela como a guerra ao pensamento filosófico; que a guerra não o afecta apenas como o facto mais patente, mas como a própria patência – ou a verdade – do real. Nela, a realidade rasga as palavras e as imagens que a dissimulam para se impor na sua nudez e na sua dureza. Dura realidade (eis um verdadeiro pleonasmo!), dura lição das coisas, a guerra produz-se como a experiência pura do ser puro, no próprio instante da sua fulgurância em que ardem as roupagens da ilusão. O acontecimento ontológico que se desenha nesta negra claridade é uma movimentação dos seres, até aí fixos na sua identidade, uma mobilização dos absolutos, por uma ordem objectiva a que não podemos subtrair-nos.14

Nestas linhas aparece a proximidade da Totalidade e Infinito às reflexões levinasianas

anteriores: a experiência do ser puro – a verdade do real – é mal, interpretado aqui como guerra, isto é, lido já a partir das relações intersubjetivas, onde o mal se exprime como violên-cia. Porém, esta revelação do ser ao pensamento é relacionada ao pensamento objetivante, pensamento que procura certezas e que parte da evidência. Abordar o ser a partir da evidência

CAP. V: O SER: A SEPARAÇÃO E O PENSAMENTO 160 seria, segundo esta citação, descobrir o ser como a movimentação dos entes por uma ordem objetiva. Esta ordem objetiva subjuga tudo, não permite distância, não deixa nada de fora; exprime-se pelo conceito de totalidade.

Ora, Levinas neste ponto questiona a tradição:

A relação com o Ser produzir-se-á apenas na representação, lugar natural da evidência? A objectividade, cuja dureza e poder universal a guerra revela, trará a forma única e a forma original sob a qual o Ser seimpõe à consciên-cia, quando ele se distingue da imagem, do mundo, da abstração objetiva?15. A estas perguntas o autor “responde pela negativa”: acima de tudo, à guerra e à onto-logia da guerra opõe-se a paz, garantida não pela evidência, mas por uma relação mais origi-nária com o ser, na qual a realidade, o ser, pode revelar-se como exterior à totalidade, como excedendo a apreensão ou a experiência objetiva. A filosofia deve começar pela evidência, pela evidência da guerra, da totalidade, mas pode remontar para aquém da totalidade, até à situação em que ela é excedida e que condiciona a própria totalidade. O ser, então, revela-se no pensamento como o que o excede, o que lhe é exterior, sendo este próprio exceder essen-cial ao pensamento e à realização do ser: o ser produz-se no pensamento, como o seu

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