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INCENTIVOS FISCAIS COMO DESPESA: O CONCEITO DO TAX EXPENDITURE

A partir dos anos 80, com a nova formatação de governança baseada no Estado Mínimo ou Estado Regulador, a decisão discricionária do poder público em conceder benefícios fiscais tornou-se uma prática comum, sobretudo no intuito de atrair investimentos da iniciativa privada no setor produtivo. No entanto, frequentemente, a concessão de incentivos fiscais é realizada sem a devida observância das possíveis consequências. Na realidade, raros são os governos que ponderam, efetivamente, os resultados advindos da tributação indutora sobre determinados setores. Com efeito, não há uma lógica direta de que a concessão de benefícios (exemplo redução de alíquota de ICMS ou IPI) irá, necessariamente, desencadear a atração de indústrias e geração de empregos, por exemplo. Existem muitos outros fatores, inclusive sociais, a serem considerados para tal decisão. Portanto, a análise da tributação indutora sob o prisma da renúncia de receita revela uma importância insofismável.

Inicialmente, impende estabelecer que não há um conceito de renúncia fiscal único e a doutrina se divide em vários aspectos. Numa tentativa de unificar o entendimento deste instituto, a Receita Federal compilou alguns requisitos necessários à compreensão deste instituto. Assim, um incentivo fiscal pode compreender renúncia de receita quando, cumulativamente, reduzir a arrecadação potencial, aumentar a disponibilidade econômica do contribuinte, constituir, sob o aspecto jurídico, uma exceção à norma que referencia o tributo ou alcancem, exclusivamente, determinado grupo de contribuintes.117 Nesse contexto, explicam os Professores Marcos Nóbrega e Carlos Figueiredo que a redução de alíquota do IPI não compreende renúncia de receita, dada a sua essência extrafiscal. Por outro lado, a redução da alíquota do ICMS com o intuito de regulação econômica (indução) implica, necessariamente, numa utilização desvirtuada desse tributo, que foi criado com o fito arrecadatório.118

Assim, pode-se dizer que a renúncia de receita é entendida como resultado ao não exercício pleno da competência e capacidade tributária, reduzindo o montante de recursos

117 Para conhecer melhor a visão da Receita Federal acerca de gastos tributário, vale a leitura do artigo.

Gastos governamentais indiretos de natureza tributária. Receita Federal, Coordenação Geral de Política Tributária. Estudos

Tributários 12, Brasília, 2003. Disponível em:

<http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e- estatisticas/estudos-diversos/gastos-tributarios/view>

118 FIGUEIREDO, Carlos Maurício. NÓBREGA, Marcos. Responsabilidade fiscal: aspectos polêmicos. Belo Horizonte: Fórum, 2006. p. 114.

públicos e, portanto, afetando, entre outros aspectos119, a saúde financeira do ente público. Nas palavras de Marcos André V. Catão, a renúncia de receita é a

[...] abstenção no exercício de competências atribuídas, passou a abarcar na prática toda e qualquer forma de redução de um determinado gravame, e, por conseguinte, uma extensão ampliada: compreenderia a diminuição dos recursos estatais, seja por imperativo constitucional ou legal, seja na órbita da receita ou da despesa pública. 120 Por outro lado, entende-se que a renúncia de receita representa um verdadeiro gasto tributário indireto, conforme lição do Secretário Assistente para Política Fiscal do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, Professor Stanley S. Surrey que, em 1967, foi o primeiro a utilizar a expressão “tax expenditure” para designar os dispositivos especiais do imposto de renda usados com a finalidade econômica e social.

José A. Pellegrini aponta a dificuldade em estabelecer o conceito de gasto tributário e, para facilitar a empreitada, indica alguns aspectos presentes no instituto:

São vários os elementos que podem ser agregados ou não de modo a tornar a definição mais ou menos restritiva. Como ponto de partida, gasto tributário pode ser definido como dispositivo da legislação tributária que: a) reduz o montante recolhido do tributo; b) beneficia apenas uma parcela dos contribuintes; c) corresponde a desvios em relação à estrutura básica do tributo; e ou d) visa objetivos que poderiam ser alcançados por meio dos gastos públicos diretos. Os dispositivos podem assumir várias formas como redução da base a ser tributada, diminuição da alíquota incidente sobre a base, dedução do montante a ser recolhido ou postergação do pagamento.121 Com efeito, gastos tributários podem ser entendidos como despesas indiretas elaboradas para alcançar desideratos de cunho extrafiscal, ultrapassando, portanto, a necessidade arrecadatória.

De acordo com a lição de Marcos Nóbrega e Carlos Figueiredo, o gasto tributário consiste numa abdicação do Estado em recolher o produto do tributo no intuito de incentivar determinadas regiões, atividades, setores ou agentes econômicos, de maneira a estabelecer uma renúncia de receita voltada à política econômica ou social. 122 No mesmo sentido é a conceituação dada pela Receita Federal:

119 A renúncia de receita desencadeia uma série de repercussões na vida econômica do ente público, indo desde consequências simplesmente financeiras, a sociais, econômicas e, principalmente, afetando o equilíbrio do conjunto de entes, no caso brasileiro, o equilíbrio federativo. Este é tema de fundamental importância para esta dissertação e, por isso, será analisado de forma mais aprofundada em tópico específico.

120 CATÃO, Marcos André Vinhas. Regime jurídico dos incentivos fiscais. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 94.

121 PELLEGRINI, José Alfredo. Gastos tributários: conceitos, experiência internacional e o caso do Brasil. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/ Senado, Outubro/2014 (Texto para Discussão nº 159). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso em 14 out. 2014.

122 FIGUEIREDO, Carlos Maurício. NÓBREGA, Marcos. Responsabilidade Fiscal: aspectos polêmicos. Belo Horizonte: Fórum, 2006. p. 123.

Gastos tributários são despesas indiretas que, em princípio, poderiam ser substituídas por um gasto orçamentário, alocado a uma função orçamentária própria. Estão inseridos no sistema tributário por meio de isenções, deduções, abatimentos, imunidades, presunções creditícias e outros benefícios de natureza tributária, reduzindo a arrecadação potencial do tributo. 123

Ainda nesta senda, Marcos Nóbrega e Carlos Figueiredo atentam para dois questionamentos: um relativo à razão que leva o ente público a lançar mão do incentivo fiscal (gasto tributário indireto) e não, simplesmente realizar transferências diretas aos setores que deseja estimular; e o segundo diz respeito aos critérios utilizados para se aferir o gasto tributário.124

No que concerne ao tax expenditure ou gasto tributário indireto (incentivos fiscais indiretos) em face dos incentivos diretos, é preciso compreender que, sob o prisma financeiro, o incentivo fiscal e as transferências governamentais representam uma redução na receita pública. No entanto, existem distinções marcantes entre estes institutos. Nas palavras de José A. Pellegrini,

Gastos públicos diretos e tributários diferem, pois, no primeiro, ocorre a arrecadação que, posteriormente, financia a despesa; enquanto, no segundo, é a não arrecadação que financia a realização, na órbita privada, de um determinado resultado esperado pelo poder público, por exemplo, gasto extra com educação ou inovação tecnológica ou ainda investimento extra em determinada região ou setor. Assim, embora sejam distintos, ambos são gastos; daí a expressão gasto tributário ou ainda gasto indireto, realizado por meio do sistema tributário. 125

Ademais, outras consequências fazem com que os governos lancem mão dos incentivos fiscais (gastos tributários), preferindo-os aos incentivos diretos (gastos públicos diretos). A primeira característica dessa distinção, explicam os Professores Marcos Nóbrega e Carlos Figueiredo, é o fato de ser mais fácil controlar o registro de transferências diretas (como subsídios) do que o registro de incentivos fiscais indiretos (como redução de alíquota), que são concedidos com quase nenhuma transparência. Realmente, é bem mais complicado fiscalizar programas baseados em incentivos fiscais do que programas fundados em transferências. Outro ponto “favorável” ao incentivo fiscal indireto é o fato de permitir uma visão um pouco mais absenteísta do ente público. De tal forma, ao passo que a decisão pela transferência de recurso

123 Gastos governamentais indiretos de natureza tributária. Receita Federal, Coordenação Geral de Política Tributária. Estudos

Tributários 12, Brasília, 2003. Disponível em:

<http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e- estatisticas/estudos-diversos/gastos-tributarios/view>

124 FIGUEIREDO, Carlos Maurício. NÓBREGA, Marcos. op. cit., p. 124.

125 PELLEGRINI, José Alfredo. Gastos tributários: conceitos, experiência internacional e o caso do Brasil. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/ Senado, Outubro/2014 (Texto para Discussão nº 159). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso em 14 out. 2014.

ao setor privado emana no governo, a decisão de usufruir do incentivo fiscal parte do setor privado, que irá seguir a norma tributária indutora ou não.

O fato de a concessão de benefícios fiscais implicar em gasto tributário e, consequentemente, na redução de recursos estatais, torna o tema deveras relevante, demandando bastante atenção do gestor público, sobretudo em razão dos efeitos perversos que podem desencadear, pois, conforme mencionado anteriormente, esta técnica de indução de comportamento econômico vem sendo vastamente utilizada pelos entes públicos, principalmente, pela dificuldade de controle contábil. Em razão disso, a CF/88 não se absteve de normatizar tal instrumento de indução de comportamento e impôs, em seu art. 165, §6º, que a Lei Orçamentária venha acompanhada de demonstrativo regionalizado dos efeitos dos benefícios e a Lei de Responsabilidade Fiscal disciplinou a matéria, em seu art. 14, estabeleceu uma série de requisitos para a concessão de tais incentivos:

CF/88

Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão: [...]

§ 6º - O projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia. 126

* LC nº 101/2000

Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições: (Vide Medida Provisória nº 2.159, de 2001) (Vide Lei nº 10.276, de 2001)

I - demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias; II - estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição. § 1o A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

§ 2o Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de que trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso. § 3o O disposto neste artigo não se aplica:

I - às alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do art. 153 da Constituição, na forma do seu § 1o;

II - ao cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança.127

126 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 127 BRASIL. Lei Complementar nº 101 de 04 de maio de 2000.

A partir da intelecção dos referidos diplomas, é possível perceber que a renúncia fiscal é entendida pelo legislador como uma espécie de despesa tributária, impondo-se, portanto, mecanismos de compensação. Neste ponto, no entanto, é preciso salientar que, inobstante a existência de uma Lei Complementar normatizando o instituto, a fiscalização efetiva ainda é bastante difícil. O controle realizado pelos Tribunais de Contas, por exemplo, ainda é incipiente por falta de instrumentos técnicos operacionais capazes de tornar as auditorias eficazes.