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Capítulo 2 Epilepsia

2.6 Incidência, tratamento e morbidade

As causas da epilepsia dependem da idade do paciente e do tipo de crise. As principais são trauma, infecções do SNC, fatores de risco pré-natal e perinatal, desordens cerebrovasculares, fatores genéticos e tumores. Como as quatro primeiras razões são evitáveis, é possível diminuir consideravelmente a incidência (número de novos casos) da epilepsia tomando medidas multidisciplinares, como combater os fatores de risco (p. ex., infecções, acidentes de trânsito e problemas no cuidado perinatal) e oferecer proteção específica (p. ex., vacinação). No entanto, em 30-60% dos casos de epilepsias, a causa não pode ser identificada. (WHO, 2005)

A incidência anual de epilepsia é de 24-53 por 100.000 pessoas em países desenvolvidos e de 73-190 por 100.000 pessoas em países em desenvolvimento. A taxa maior no segundo caso se deve provavelmente a parasitoses (especialmente neurocisticercose), HIV e trauma. (Burneo et al., 2005; WHO, 2005)

Os objetivos do tratamento são evitar que novas crises possam levar a comorbidades adicionais ou à mortalidade, e manter um estilo de vida normal, idealmente sem crises e com a

capacidade funcional do paciente restaurada. Caso as crises sejam provocadas por fatores externos (p. ex., privação de sono, consumo de álcool), como é a situação da minoria dos pacientes, eles deverão ser evitados. Para o restante, além de apoio psicológico e social, o tratamento consiste em farmacoterapia, presente em 75% dos países (em aproximadamente 65% deles, o medicamento é fornecido gratuitamente). Se as drogas antiepilépticas (DAEs) não fizerem efeito, estratégias não-farmacológicas são utilizadas. (Sander, 2004; WHO, 2005)

Epilepsia é considerada ―resolvida‖ para indivíduos que tinham uma síndrome epiléptica dependente da idade e passaram da idade da aplicação do diagnóstico, ou para aqueles que não tiveram crises nos últimos 10 anos e pelo menos nos últimos 5 anos não tomam medicamentos. Quando a epilepsia está ―resolvida‖, a pessoa não possui mais epilepsia, mas a desordem pode retornar. Esse termo não é necessariamente idêntico a ―remissão‖ (que não implica na ausência da doença) ou ―cura‖ (quando o risco para novas crises é semelhante ao da população não afetada). O uso dessas definições na prática pode variar de acordo com o contexto ou o propósito. (Fisher et al., 2014)

As primeiras DAEs utilizadas foram brometos em 1856, fenobarbital em 1912 (atualmente ainda é o medicamento mais usado) e fenotoína em 1938. Pelo menos em torno de 90% dos países têm acesso a fenobarbital (custo mediano para a dose diária definida1 de USD$0,14), carbamazepina (custo mediano 11 vezes maior), fenitoína (custo mediano 3 vezes maior) e ácido valproico (custo mediano 16 vezes maior). Nos países de baixa renda, o custo com essas drogas é em torno de 3 vezes maior do que em países de alta renda. Desde o final da década de 1980, novas DAEs foram desenvolvidas, mas não há evidências de que são mais eficazes do que as DAEs mais antigas. (WHO, 2005)

Quando um paciente é diagnosticado com epilepsia, receita-se uma DAE específica de acordo com sua epilepsia, idade, sexo, existência de outras doenças e outras medicações. Dependendo da síndrome epiléptica, o tratamento pode ser interrompido se o paciente entrar em remissão, especialmente crianças; sugere-se um período de espera de pelo menos 2 anos em adultos (Specchio & Beghi, 2004). Mas se uma DAE em monoterapia não funcionar, testa- se outra e, caso também falhe, inicia-se politerapia (combinação de mais de uma DAE). O tratamento com DAE em combinação ou não costuma ser eficaz em 60-70% dos casos, e pode ser barato: estima-se que o custo direto com fenobarbital para tratar um paciente pode ser tão baixo quanto USD$2,60/ano. (Kwan & Brodie, 2004; Kwan & Sander, 2004; Sander, 2004)

ocorre porque as DAEs diferem em vários aspectos, como eficiência contra cada tipo de crise, efeitos colaterais, interação medicamentosa e facilidade de uso. De qualquer forma, é fundamental que se realize o tratamento, pois, se não forem medicadas, 40-50% das pessoas que têm uma crise não provocada terá uma nova crise em até dois anos (Berg, 2008). Embora haja vários preditores para recorrência, controle, remissão e tratabilidade, os mais importantes são o diagnóstico da síndrome e a resposta à primeira DAE adequadamente utilizada. Quando o tratamento medicamentoso não funciona, ou seja, quando a epilepsia é refratária a medicamentos, aconselham-se estratégias não farmacológicas, como cirurgia, estimulação de nervo vago (ENV) e dieta cetogênica. (Sander, 2004; WHO, 2005)

A dieta cetogênica foi desenvolvida na década de 1920 e é usada de forma eficaz principalmente em crianças com epilepsia que não respondem ao tratamento com medicamentos. Ela se baseia em uma dieta com mesmo conteúdo calórico que uma dieta normal, mas com alto teor de gordura, baixo teor de carboidrato e quantidade adequada de proteína. (Lutas & Yellen, 2013)

A ENV para tratamento de epilepsia foi aprovada pelo FDA (Food and Drug

Administration) dos EUA em 1997 e não elimina completamente as crises (reduz em

aproximadamente 50%). Apesar de não serem conhecidos os mecanismos neurobiológicos da ENV na epilepsia, mais de 60 mil pacientes já fizeram uso desse equipamento. Ele pode ser utilizado em pacientes que não são candidatos à cirurgia (p. ex., por haver múltiplas origens para a crise ou quando o foco epiléptico está próximo do córtex eloquente) ou para os quais ela falhou. A ENV consiste de um gerador de pulso instalado na parte superior esquerda do peito que estimula eletricamente o nervo vago no lado esquerdo do pescoço por 30-90 s seguido de um período de 5 min desligado. (Bonaz et al., 2013; Englot et al., 2011)

De todos os modos de tratamento possíveis, a cirurgia é a única terapia capaz de curar a epilepsia; o restante consegue apenas controlar as crises. O aumento significativo na realização de cirurgias em epilepsia na segunda metade do século XIX se deve ao advento de novas técnicas de neuroimagem, em especial IRM, PET (Positron Emission Tomography) e SPECT (Single-Photon Emission Computed Tomography). Com elas, lesões cerebrais epileptogênicas puderam ser identificadas de forma não-invasiva, como esclerose hipocampal e malformações do desenvolvimento cortical. (WHO, 2005)

Estima-se que 25-50% das pessoas com epilepsia refratária sejam candidatas à cirurgia, ou seja, em torno de 10-15% das pessoas com epilepsia (Meinardi et al., 2001). Um problema é o conceito errôneo de que a cirurgia deve ser o último recurso após testar todas as DAEs disponíveis. Elas são tão numerosas que levaria praticamente a vida inteira para se

testar todas as combinações possíveis. Essa concepção a respeito da cirurgia é um dos motivos pelos quais aproximadamente 2% dos pacientes candidatos à cirurgia nos EUA são de fato operados (Wiebe et al., 2001).

Por isso têm sido formuladas diretrizes para trocar tentativas com fármacos por intervenção cirúrgica. Nesse sentido, foi criado o conceito de síndromes epilépticas cirurgicamente remediáveis, que são condições bem definidas, de fisiopatologia e história natural conhecidas, com prognóstico ruim para tratamento com DAE e bons resultados com relação ao tratamento cirúrgico. Fazem parte das síndromes cirurgicamente remediáveis a epilepsia de lobo temporal mesial e epilepsias devido a lesões focais. Nesses casos, 60-90% dos pacientes ficam livres das crises. Complicações como infecções e déficits neurológicos não esperados ocorrem em aproximadamente 5% dos pacientes. Para epilepsias extratemporais, o resultado costuma ser pior, com no máximo 50% dos pacientes livres de crises. (Engel, 1996; Téllez-Zenteno et al., 2005; Wiebe et al., 2001; WHO, 2005; Yoon et al., 2003)

Como a meta da cirurgia é remover quantidade suficiente de tecido neuronal para eliminar as crises, a avaliação pré-cirúrgica deve identificar a área do cérebro responsável pela geração das crises. Além disso, deve ser demonstrado que, se ela for removida, não será criado déficit neurológico ou cognitivo não tolerável. Não há consenso sobre como se deve fazer a avaliação pré-cirúrgica, mas os testes envolvem EEG não-invasivo ou invasivo, vídeo- EEG, IRM, SPECT ictal, PET interictal e exames neuropsicológicos. (Engel, 1996; Horky & Treves, 2011)

A importância do tratamento em epilepsia pode ser constatada com a observação de que em países desenvolvidos o risco de morte de pessoas com epilepsia é 2-3 vezes maior que o da população geral, devido à causa da epilepsia (p. ex., tumor cerebral, doença cerebrovascular e encefalites), à epilepsia em si (p. ex., suicídio, resultado do tratamento, acidentes, status epilepticus e SUDEP) ou a motivos não relacionados (p. ex., pneumonia e infarto do miocárdio). Causas frequentes de mortes são: pneumonia, especialmente em idosos, neoplasias em geral e doenças cerebrovasculares; suicídios, acidentes e infarto do miocárdio têm baixa contribuição. Outras causas importantes são morte súbita inesperada e inexplicável em epilepsia (SUDEP: sudden unexpected, unexplained death in epilepsy), que causa 2-18% das mortes em epilepsia, e status epilepticus, que causa até 13% das mortes. (Forsgren et al., 2005; Gaitatzis & Sander, 2004; Lhatoo & Sander, 2005)