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4 JOVENS SURDOS E O COTIDIANO ESCOLAR

4.7 Inclusão pra que/quem?

Nesta pesquisa, ao buscar compreender a experiência escolar de jovens surdos não podemos perder de vista a estrutura escolar, marcando tempos e espaços e influenciando a

atuação de professores, intérpretes e dos próprios alunos. É importante considerar também as atuais políticas de inclusão, sem nos esquecermos, no entanto, das ações dos sujeitos no dia a dia da escola.

Dessa forma, entendemos a escola enquanto espaço sócio-cultural, ou seja, compreendemo-la a partir do olhar cultural, levando em consideração os sujeitos que ali estão, enquanto seres sociais e históricos. (Dayrell, 1996) Com isso, a escola possui uma dupla dimensão: institucional, ou seja, as regras e diretrizes que tem por finalidade unificar os sujeitos e o cotidiano que diz respeito às complexas relações estabelecidas entre os sujeitos. (Dayrell, 1996)

Nesta perspectiva, devemos entender os estudantes como sujeitos socioculturais, que chegam à escola com experiências/vivências que lhes são próprias, como aquelas apresentadas no capítulo 3, que trata de sua condição juvenil. Essas experiências constituem o material principal que o jovem utiliza para expor sua cultura. (Dayrell, 1996). Porém, tais aspectos, como sua relação com a família, o trabalho, o que fazem em seu tempo livre para se divertirem, parecem não serem levados em consideração no cotidiano escolar.

Apesar de terem experiências distintas, os jovens participantes da pesquisa chegaram à escola e carregam consigo a expressão visível de sua cultura, a Língua Brasileira de Sinais. Em um primeiro momento, a escola parece levar esta particularidade em consideração, mesmo que de modo limitado, dada a presença do intérprete educacional que visa garantir o acesso ao conhecimento escolar através da Libras. Contudo, a realidade mostrou que a escola ainda exerce fortemente uma função homogeneizadora sobre os alunos, como, por exemplo, quando professores decidem pela não flexibilização de atividades ou cobram dos alunos surdos a mesma postura dos ouvintes, ou seja, quase demandam sua oralização, principalmente quando da ausência do intérprete.

Ao longo deste capítulo indicamos, ainda, situações que marcam a invisibilidade dos alunos surdos, como a conduta dos professores perante a sala negligenciando o aspecto visual na educação destes alunos, adotando com frequência práticas orais que os excluíam das atividades, a ausência de um planejamento pedagógico que leve em consideração a surdez e a falta de atenção dispensada a este grupo.

Ao contrário do que indica Charlot (2013), onde a heterogeneidade das formas de aprender assume um papel fundamental no ambiente escolar, observamos durante a pesquisa, práticas que não levam em consideração as diferentes formas de apreender o mundo. Assim, predominaram as práticas de uma didática tradicional, que utilizam o quadro, a cópia e o

livro, os quais, segundo o mesmo autor, podem não fazer sentido para alguns alunos visto que pressupõem a disposição do aluno em apreender.

O autor aponta ainda uma nova dimensão do saber, para além de se apresentar como uma atividade ou como um patrimônio, assumindo o papel de mercadoria, “que permite passar de ano e passar no vestibular” (Charlot, 2013, pág. 180), o que parece marcar vigorosamente a relação dos jovens surdos com o conhecimento no caso desta pesquisa. Como apresentado, a nota, o visto, a preocupação em atingir a média no bimestre e o passar de ano parecem ditar a importância de uma atividade e não o aprendizado em si. Esta postura diante do conhecimento parece ser fruto das práticas realizadas na escola que levam os jovens a adotá-la, não sendo um problema dos alunos em si.

Questionamos assim se, nas dinâmicas descritas da sala de aula, há a criação de significados por parte dos alunos, visto que, para Salvador (1994), isto é central no processo de ensino/aprendizagem. O autor expõe que o aluno constrói significado quando demonstra capacidade de estabelecer relações não arbitrárias entre o que aprende e o que já conhece e, por isso, a importância de metodologias diferenciadas para auxiliar os alunos a fazerem esta conexão, o que parece não acontecer nesta escola. Nesse caso, a limitação da aprendizagem enquanto mera repetição memorística coincide marcantemente com o que foi observado nas aulas acompanhadas.

Para os alunos surdos a questão se torna ainda mais complexa, dado que o professor não se expressa através da Língua de Sinais, língua materna destes alunos, e, como visto, em muitas situações, não leva em consideração a particularidade linguística deste grupo e sua presença em sala, dada a realidade de invisibilização que constatamos. Estes fatores parecem dificultar ainda mais a criação de significados por parte destes jovens.

Salvador (1994) diz também da importância do professor, que se constitui enquanto fator determinante para despertar a intencionalidade dos alunos em relação à aprendizagem significativa. Como descrito, os professores pouco interagiam com os alunos surdos, delegando ao intérprete a execução de tarefas que seriam do docente, o que parece contribuir para a falta de uma aprendizagem significativa.

A ausência de um posicionamento dos professores diante do grupo parece gerar, ainda, a confusão entre os papéis que devem exercer o docente e o intérprete. Essa situação pode ser fruto de falta de informações e formação dos que atuam na escola. Todavia, essas questões não foram problematizas pela instituição no período do trabalho de campo.

Antes disso, as relações entre esses profissionais, bem como a dos alunos surdos com os ouvintes e com seus professores, que se mostraram limitadas, são naturalizadas pela escola.

De modo que, como aponta Dorziat e Soares (2011), com esta naturalização, sem colocar em questão as noções de gestão pedagógica, currículo e profissionalização, parece acontecer uma educação compensatória, sem a contribuição para que se promovam processos inclusivos verdadeiros.

Em analogia às mudanças ocorridas nos sistemas de ensino descrito por Bourdieu & Champagne (2001), podemos dizer que as políticas inclusivas levaram as escolas a processos semelhantes dos descritos pelos autores. A “democratização” foi um dos efeitos desse processo que levou à descoberta de que a escola possui uma função conservadora, ou seja, não é suficiente ter acesso ao sistema ensino para ter sucesso nele. Esta perspectiva parece semelhante à situação descrita ao longo deste capítulo com relação aos jovens surdos que em suas vivências na escola, tanto no que se refere ao conhecimento como no que diz respeito às relações, parecem se encontrar à margem. Como descrito por Bourdieu & Champagne (2001)

o sistema de ensino aberto a todos, e ao mesmo tempo estritamente reservado a poucos, consegue a façanha de reunir as aparências de “democratização” e a realidade da reprodução, que se realiza em um grau superior de dissimulação, e por isso com um efeito maior ainda de legitimação social. (página 485)

Desse modo, parece-nos que as políticas de inclusão legitimam a matrícula dos alunos surdos em salas regulares e a ideia da inclusão completa. A presença dos intérpretes em sala parece ser um dos fatores que contribui para essa ideia e, adicionando a falta de formação dos demais atores da escola, este profissional é concebido como suficiente para que a inclusão aconteça.

Porém, como descrito neste capítulo, apenas o intérprete de Libras parece não garantir o acesso dos alunos surdos às possibilidades que acontecem na escola. A função reprodutora da escola aparece, por exemplo, quando estes alunos são cobrados por seus professores a partir da oralidade ou quando acontecem situações preconceituosas que parecem delimitar para quem aquele espaço foi/é destinado, enfim, quando ele não é reconhecido como um sujeito de uma cultura própria.

Notamos os alunos constantemente invisibilizados e, segundo Souza e Góes (1998) essa invisibilidade pode ser atribuída ao fato de a surdez não ser reconhecida enquanto uma experiência cultural plural que tem suas raízes no campo das diferenças, ou seja, os professores parecem enxergar seus alunos apenas pela falta da audição que os diferencia dos demais. Porém, esta diferenciação parece se desdobrar em duas posturas: uma que nega a diferença pelo fato de os alunos estarem incluídos em uma escola “regular” e, por isso, busca

tratá-los como iguais; e outra que reconhece a diferença, mas pela falta de suporte não dá aos alunos surdos as mesmas oportunidades que são dadas aos alunos ouvintes.

Como lembra Skliar (2010), o conceito de diferença não deve ser utilizado como um termo de continuidade dentro de um discurso que contém outros termos como “deficiência” ou “diversidade”, pois estes, anulam as consequências políticas e colocam os sujeitos sob a ótica paternalista, escondendo a tentativa de normalização. A diferença deve ser entendida com significação política, construída histórica e socialmente, constituindo-se enquanto processo e produto de conflitos e movimentos sociais, como uma forma de “resistência às assimetrias de poder e de saber, de uma outra interpretação sobre a alteridade e sobre o significado dos outros no discurso dominante” (SKLIAR, 2010, p. 6).

Porém, a partir das observações do trabalho de campo, parece-nos que, mesmo com algumas tentativas de terem seus discursos ouvidos, falando sobre suas particularidades linguísticas, principalmente no que diz respeito às aulas, a instituição escolar silencia estes alunos.

Assim, a pesquisa parece indicar, como apontam outras pesquisas (ALMEIDA & COSTA, 2013; LACERDA 2006; MALLMANN, CONTO, BAGAROLLO & FRANÇA, 2014; GRAFF, 2013) que a inclusão destes alunos ainda está longe do previsto em lei, tanto no que diz respeito ao conteúdo escolar, como no que diz respeito às relações estabelecidas pelos sujeitos, o que parece acarretar perdas significativas na vida escolar dos alunos surdos.

No depoimento de uma intérprete o exposto acima fica claro:

Não tem essa coisa de „ah, estamos aqui todo mundo junto‟, eu acho que inclusão não é isso. Não é incluir a pessoa com deficiência, porque todo mundo tem deficiência, então inclusão seria todo mundo junto com direitos iguais. No entanto, aqui não funciona assim. (Amanda, intérprete)

Este trecho indica que, na escola pesquisada, apesar de os surdos estarem juntos com os demais alunos, eles não se encontram incluídos o que pode ser apreendido a partir da referência ao que seria a inclusão, “todo mundo junto com direitos iguais” e da conclusão de que esta não é a realidade em que vive, segundo a intérprete. Assim, estes alunos parecem estar, nas palavras de Bourdieu & Champagne (2001), “marginalizados por dentro”, ou seja, a escola os exclui, porém os mantém dentro dela. (BOURDIEU & CHAMPAGNE, 2001).

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