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Incursão: sobre o destino feminino em La lenteur

3.2 La lenteur como espelho de Point de lendemain

3.2.3 Incursão: sobre o destino feminino em La lenteur

É oportuno observar, sob a perspectiva acima desenvolvida, o tratamento dado pelo narrador de La lenteur às figuras femininas que desfilam pelo romance. A maioria delas não possui nomes próprios, sendo referida apenas por epítetos. Identificamos três tipologias das personagens femininas no romance: a estupidez ou a burrice, a loucura ou a obsessão e o apagamento ou a passividade.

Algumas mulheres retratadas no romance pertencem ao domínio da estupidez ou da burrice: a “belle inconnue” que acompanha Machu no café Gascon e a secretária do colóquio, em suas pontuais aparições na narrativa, dão provas de sua imbecilidade no modo como o narrador as retrata. A primeira parece não possuir a capacidade cognitiva necessária para presenciar uma discussão filosófica, já que, quando chega à cena do café, um dos homens do grupo, se dirigindo a Vincent, com quem ele discutia, afirma: “Ta façon d'insister, en présence d'une dame, sur des pensées si exagérément brillantes témoigne d'un inquiétant reflux de ta libido”198 (KUNDERA, 1995, p. 36). Tal representação reforça a ideia de que sua beleza, presente em seu

198 “Seu modo de insistir, na presença de uma mulher, sobre pensamentos tão exageradamente brilhantes revela um inquietante refluxo de sua libido” (KUNDERA, 2011, p. 21-22).

epíteto, seria incompatível com a inteligência, a qual se reservaria, no romance, apenas às personagens masculinas. Já a segunda, além de não conseguir pronunciar ou identificar o nome do cientista tcheco na lista de participantes do evento, dá provas de sua estupidez ao confundir a Reforma de Lutero com a reforma da ortografia tcheca feita por Jean Hus, além de aparentemente não saber onde fica a Lituânia.

É oportuno lembrarmos, aqui, da obsessão da personagem principal do romance pela literatura sadeana: La philosophie dans le boudoir figura entre as obras libertinas preferidas de Vincent. Ora, trata-se de um livro pedagógico, constituído por uma série de diálogos que retratam a iniciação sexual e filosófica de uma adolescente. Jane Gallop nota que toda a obra de Sade pode ser compreendida como uma meditação acerca de uma pedagogia em que “O estudante é um receptáculo inocente e vazio, carente de desejos próprios, tendo desejos ‘introduzidos’ nele pelo professor”199 GALLOP, 1988, p. 43). Talvez esta seja uma forma possível de compreendermos as mulheres burras de Kundera: receptáculos vazios e inocentes que precisam que o conhecimento e o desejo de um homem as penetre. Essa associação pedagógica também fornece uma chave de leitura vantajosa para pensarmos a presença, em La lenteur, do estupro como arma de punição e instrução – pensamos no companheiro de Immaculata que, após uma discussão com ela, não conseguindo aceitar que ela o rejeite, “ne trouve pas le courage de la gifler, de la battre, de la jeter sur le lit et de la violer, mas il ressent d’autant plus le besoin de faire quelque chose d’irréparable, d’infiniment grossier et agressif”200 (KUNDERA, 1995, p. 131, grifos nossos).

Outras personagens femininas do romance pertencem ao domínio da loucura ou da obsessão. Trata-se da “journaliste parisienne”, que aparece nos capítulos 14 e 15, e de Immaculata. A primeira, obcecada pelo homem por quem é apaixonada, o persegue e se recusa a aceitar suas negativas, vingando sua humilhação ao escrever um livro sobre o seu amor, obra que obtém sucesso devido ao fato de seu objeto de adoração ser uma pessoa pública. Enquanto isso, o caso de Immaculata extrapola a obsessão e a

199 “The student is an innocent, empty receptacle, lacking his own desires, having desires ‘introduced’ into him by the teacher.”

200 “Não encontra coragem para lhe dar um tapa na cara, bater nela, jogá-la na cama e violentá-la, mas sente necessidade de fazer alguma coisa de irreparável, de infinitamente grosseiro e agressivo” (KUNDERA, 2011, p. 75). Ressaltamos que o trecho é algo suavizado pela tradução de “violer” como “violentar” (“violer”: estuprar; sendo “viol” a tradução de estupro em francês. Paralelamente, “violentar” traduz-se por “faire violence”, termo não usado por Kundera).

loucura da jornalista. Sua vida é assim descrita pelo narrador: “Jusqu’au moment où elle a compris qu’elle était amoureuse de Berck, Immaculata avait vécu la vie de la plupart des femmes: quelques mariages, quelques divorces, quelques amants qui lui apportaient une déception aussi constante que paisible et presque douce”201 (KUNDERA, 1995, p. 66, grifo nosso). Deste modo, a maneira como é descrito o passado da personagem se generaliza num retrato do que o narrador considera ser a vida da maioria das mulheres, reduzida a “doces decepções amorosas”. Immaculata replica a fixação da jornalista pelo homem desejado: ela também é obcecada por um homem, o qual a rejeita e humilha, mas sua vingança acaba por se voltar contra outro, seu companheiro, já que o primeiro se demonstra inacessível. De fato, o drama de Immaculata se resume à sua rejeição por Berck, que a abala de tal modo que ela é levada a cometer um suicídio simbólico e teatralizado (além de ridículo): vestida de branco, símbolo de sua castidade e dignidade prenunciadas por seu nome, ela interrompe a simulação de Vincent e Julie e se joga na piscina, que não é funda o suficiente para que ela se afogue. Após esse ritual de contaminação202, em que a tentativa de suicídio forjada pela personagem simboliza a rejeição de sua condição de suposta virtude, ela pode enfim voltar para os braços de seu companheiro.

A terceira categoria de personagens femininas do romance, que engloba Julie, Véra e Mme de T…, pertence ao domínio do apagamento ou da passividade. Julie aceita passivamente a sua condição de vítima do estupro simbólico que sofre – atitude tida pelo narrador como natural –, e assume o papel de um de troféu para Vincent, mesmo apesar da flagrante incompetência do jovem. Véra é a simples depositária da fértil imaginação de seu marido: lembremos que a narrativa se realiza em seus sonhos, que a afligem e sobre os quais ela não tem controle. Mesmo apesar das advertências do marido de que seus sonhos são controlados por ele, ela parece resignar-se diante da ordem assim estabelecida. Mme de T…, apesar de ser a condutora do percurso de sedução no conto de Denon, em Kundera acaba tendo sua figura ofuscada pela do chevalier, que é o protagonista da história libertina recontada pelo narrador. Isso porque,

201 “Até o momento em que compreendeu que estava apaixonada por Berck, Immaculata levara a vida da maioria das mulheres: alguns casamentos, alguns divórcios, alguns amantes, que lhe trouxeram uma decepção tão constante quanto pacífica e até suave” (Ibid., p. 38).

202 Dada a situação específica da personagem acima descrita, seria incoerente falar da cena em questão como de um ritual de purificação: ele não tem o objetivo de torná-la pura, mas, ao contrário, de contaminá-la.

parece-nos, em La lenteur, a mulher não apresenta grande importância para além de um papel secundário dentro da dinâmica do casal heterossexual, em que o homem é sempre o detentor do poder e o centro do prazer. Isso também porque, segundo Milanku, “pour un homme il n’est pas de baume plus bienfaisant que la tristesse qu’il a causé à une femme”203 (KUNDERA, 1995, p. 105). A existência de todas as mulheres do romance, cujo infortúnio é fonte de deleite masculino, depende exclusivamente de seus parceiros, de quem elas são complemento e extensão. Não há outro destino para as mulheres de La lenteur além da estupidez, da loucura ou do apagamento.

Tal incursão sobre os valores associados à figura feminina em La lenteur não estaria completa sem uma menção à misoginia que perpassa a obsessão anal de Vincent. Ao expressar o desejo da personagem pelo “cu” de Julie, o narrador se lembra do poema Les neuf portes de ton corps de Guillaume Apollinaire, em que o eu lírico louva os orifícios penetráveis do corpo de sua amada. A partir de tal associação, o ânus é descrito pelo narrador kunderiano como o centro “où se concentre toute l’énergie nucléaire de la nudité”204 (KUNDERA, 1995, p. 116), sendo ele preferível à vagina205, a qual é compreendida então com um lugar público demais – reduzindo-a assim à função reprodutora, como se seu desempenho no prazer feminino não tivesse a menor importância –, o que a tornaria indesejável:

La vulve : carrefour bruyant où se rencontre l’humanité jasante, tunnel par lequel passent les générations. Seuls les nigauds se laissent convaincre de l’intimité de cet endroit, le plus public de tous. L’unique endroit vraiment intime, c’est le trou du cul, la porte suprême ; suprême car la plus mystérieuse, la plus secrète206 (KUNDERA, 1995, p. 116-117, grifos nossos).

203 “para um homem, não há melhor bálsamo do que a tristeza que causou a uma mulher” (Ibid., p. 60). 204 “em que se concentra a energia nuclear da nudez” (Ibid., p. 67)

205 Kundera se refere à vulva, e não à vagina, o que nos leva a indagar sobre o sentido da precisão anatômica do trecho. Ora, se ele prefere falar do trou du cul (o buraco do cu, ênfase especial ao buraco, que indica o orifício, e não apenas uma forma chula de se referir às nádegas) como a nona “porta”, por associação lógica indagamo-nos se a oitava “porta” não seria a vagina (o canal por onde “transitam as gerações”) e não a vulva (que é apenas a parte externa dos órgãos genitais femininos). Este significativo ato falho revela por tabela a denegação do prazer feminino por parte do autor, já que o prazer da mulher, situado também no clitóris que integra a vulva, não depende apenas do “túnel pelo qual transitam as gerações”.

206 “A vulva, encruzilhada ruidosa em que se concentra a humanidade tagarela, túnel pelo qual passam as gerações. Apenas os otários se deixam convencer pela intimidade desse lugar, o mais público de todos. O único lugar verdadeiramente íntimo […] é o cu, a porta suprema; suprema, pois a mais misteriosa, a mais secreta” (KUNDERA, 2011, p. 67).

A partir desta breve e não exaustiva leitura feminista de La lenteur, confirmamos a ordem sobre a qual se constrói o romance: trata-se de uma ordem binária e misógina, que reforça a dominação do masculino sobre o feminino, o qual é, como não poderia deixar de ser na lógica patriarcal, reduzido a uma relação de forças, objetificado e oferecido ao consumo masculino.