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Sobre a circularidade em Kundera: Vladimír Papousek

1.1 Fortuna Crítica

1.1.3 Sobre a circularidade em Kundera: Vladimír Papousek

Vladimír Papousek, no artigo Kundera’s paradise lost: paradigm of the circle (2009), identifica uma postura essencialista na fortuna crítica de Kundera: segundo ele, ao ler a obra do autor buscando encontrar nela os seus erros, ela trata o texto como “um código misterioso que carrega uma mensagem escondida e um autor advogando por sua própria interpretação como um guardião cuja tarefa é obscurecer ainda mais a mensagem”51 (PAPOUSEK, 2009, p. 384). No lugar da postura por ele identificada, o crítico busca apresentar outra, mais pragmática, afirmando acreditar que, ao falar sobre sua própria obra, “os esforços do autor são de abrir e iluminar sinceramente o seu trabalho, para fazê-lo mais compreensível para o leitor”52 (PAPOUSEK, 2009, p. 38). Deste modo, porém, ele parece continuar buscando nas declarações de Kundera acerca de seus romances uma chave interpretativa para a sua leitura, afirmando, com a declaração acima, a superioridade do autor em relação ao seu público, o qual necessitaria de explicações para atingir a plena compreensão de sua obra.

Papousek trata, em seu artigo, da obra de Kundera de forma global, ou seja, ele não se dedica a nenhum romance de maneira específica ou isolada, mas enxerga no conjunto dos romances do autor, desde La plaisanterie até L’ignorance, um paradigma circular. Compreendemos o paradigma em questão no mesmo sentido do retorno dos mesmos temas e figuras no conjunto da obra kunderiana de que fala a crítica

51 “a mysterious code bearing some hidden message, and an author pleading for his own interpretation as one of those guardians whose task is to obscure the message even more”

52 “the author’s endeavors are to open and illuminate sincerely his work in order to make it most comprehensible for the reader”

anteriormente citada. Segundo ele, a circularidade reforça a coesão interna da obra em questão, e permite afirmar que “Kundera considera um texto um certo tipo de unidade fechada, um círculo: ele se preocupa com o máximo de perfeição possível dessa entidade”53 (PAPOUSEK, 2009, p. 385). Papousek não considera produtiva a divisão em ciclos (seja sob o prisma da mudança de língua, seja pelo da mudança de local de escrita dos romances) da obra de Kundera, e explica a migração do autor para a língua francesa como uma evolução natural no contexto da sua concepção de romance. Segundo ele, a literatura tcheca restringia as possibilidades criativas do autor, e o contexto francês seria o mais adequado ao ideal romanesco almejado por Kundera:

Não tenho nenhum motivo para duvidar que a entrada na língua e na cultura francesas foram para ele nada mais que a escolha de um meio de aperfeiçoar a expressão de sua estética romanesca. A língua francesa representa, em comparação com a tcheca, um espaço mais aberto para Kundera, o que significa mais possibilidades para ele como autor, mais possibilidades para ele de criar sua obra como um todo perfeito e acabado e, deste modo, transferi-la para o auditório54 (PAPOUSEK, 2009, p. 390).

O autor identifica a postura excessivamente protetiva de Kundera em relação às suas publicações como uma maneira de compensar a inexistência, na literatura, daquilo que na música se traduz em escalas harmônicas, justificando-a com base na formação musical do autor. Em outras palavras, na música, os compositores determinam exatamente as estruturas tonais e as escalas com as quais os seus intérpretes devem trabalhar, enquanto na literatura tal procedimento é impossível. Papousek encontra nessa estratégia, chamada por ele de “orquestração”, uma ferramenta de construção da identidade de Kundera:

A orquestração fornece uma ferramenta para manter a obra no máximo de perfeição; ela permite fechá-la num círculo, prevenindo assim sua dissolução no discurso geralmente ignorante e efêmero dos críticos,

53 “Kundera considers a text a certain type of a closed unity, a circle: he is concerned about the maximum possible perfection of this entity”

54 “I have no reason to doubt that entering into French language and culture was for him nothing else but the choice of a means to a more perfect novelistic esthetic expression. French language represents in comparison to Czech a more open space for Kundera, which means more possibilities for him as an author, more possibilities for him to create his work as a perfect and finished whole and thus to transfer it to the auditorium”

historiadores da literatura, editores e imitadores. Kundera parece recusar entregar sua obra à má interpretação generalizada porque ele não quer se pôr em risco. Seus esforços para proteger sua privacidade e sua identidade privada correlacionam-se totalmente com sua necessidade de controlar a instrumentação de sua obra55 (PAPOUSEK, 2009, p. 386).

Em suma, Papousek interpreta as estratégias de migração e de proteção de Kundera como parte da construção de sua identidade autoral. Sob tal perspectiva, tais posturas são perfeitamente justificáveis e justificadas, uma vez que elas derivam de um ideal de romance perfeitamente construído e subordinado ao autor. Esta leitura ingênua acaba por voltar-se contra si mesma ao não considerar que a “vontade de perfeição” da obra kunderiana, nesta lógica, é incompatível com os procedimentos de autoexplicação e autocomentário adotados pelo autor: se a obra em questão constitui-se, de fato, em um círculo fechado sobre sua própria perfeição, como justificar a necessidade de “orquestração”? Pois se existe de fato a necessidade de proteger-se contra a má interpretação, não seria este desde já um indício de que esta obra não é tão perfeita quanto se pretende?