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Durante o período colonial, as forjas e tendas de ferreiro estiveram presentes especialmente nas regiões mineradoras. Essa atividade não parou nem mesmo durante o período de proibição da manufatura no Brasil, estabelecido pelo alvará de 5 de janeiro de 1785, que perdurou até 1795, quando D. João VI suspendeu o alvará, dessa maneira, revogando as imposições proibitivas anteriores tangentes a siderurgia (ALFAGALI, 2010). Os trabalhos com o ferro, seja este oriundo dos mercados do Rio de Janeiro ou extraído do minério de ferro, abundante na região, eram fundamentais para a manutenção de ferramentas necessárias em outras atividades regionais. Supriam, assim, demandas locais, geralmente, instaladas em uma propriedade agrícola ou mineral. Com a diminuição do ouro de aluvião, a mineração aurífera necessitou de maiores esforços, exigindo o uso de numerosas ferramentas: almocafres, alavancas, enxadas, picaretas, etc. Ademais, a agricultura ganhava força e também demandava enxadas, machados, foices; os transportes requeriam ferraria de carros, ferraduras; a construção exigia cravos, pregos, e assim por diante. Conforme estas ferramentas eram submetidas ao esforço, desgastavam-se e necessitavam de reparos que, por sua vez, exigiam o uso de novas porções de ferro (BARROS, 1989).

O alto preço com que os produtos importados e comercializados no Rio de Janeiro chegavam às regiões montanhosas de Minas Gerais estimulava a produção local. Segundo Coutinho (1966), um quintal de ferro, no início do século XIX, que, em Portugal, custava em torno de 3$800 réis, chegava a Minas, pelo valor de 12$200 réis, podendo custar ainda mais caro em locais mais afastados, como Goiás e Mato Grosso. Ademais, ainda de acordo com Coutinho (1966), eram acrescidos aos custos de transporte os impostos, que eram fixados pelo peso, ou seja, por exemplo, certa quantidade de ferro pagava o mesmo valor de imposto do que a mesma quantidade de tecido, todavia o fato de o metal ser uma mercadoria pesada fazia com que uma quantia muito grande de tributação recaísse sobre o mesmo. Segundo dados de GORCEIX, os custos do transporte elevavam, ao menos, 80 réis por arroba e por légua, desde que se tratasse de distâncias superiores a 3 léguas, o que lhe duplicaria o preço (do ferro) logo que tivesse de percorrer 30 léguas.3 Para mais detalhes sobre os caminhos em nossa região ver o anexo C.2.

Além das pequenas instalações que fundiam e obravam o ferro, duas grandes fábricas foram montadas ainda no período colonial, em Minas Gerais, uma por ação do governo imperial e outra particular. O debate atinente à necessidade de fabricar ferro no Brasil foi intensificado com a vinda da família real ao Brasil, particularmente, pelo relacionamento estreito entre D. João VI com personagens que buscavam a realização de tais empreendimentos, como Rodrigo de Souza Coutinho e o Intendente Câmara. A Fábrica do Morro do Gaspar Soares foi criada em 1812 e dirigida pelo Intendente Câmara. Esta manteve- se funcionando até 1830, quando foi fechada após o fim do contrato com os alemães que trabalhavam na fábrica. A fábrica de Gaspar Soares não teve êxito econômico significativo e chegou a trabalhar no prejuízo (GOMES, 1983). A Fábrica Patriótica foi criada em 1811 e dirigida por Eschwege, funcionou até 1822. Eschwege acreditava que o Brasil não deveria ter grandes fábricas, pois as dificuldades de transporte eram mais favoráveis à criação de diversas fábricas menores e espalhadas pelo país. Assim, a produção estaria mais próxima do mercado consumidor, diminuindo os custos e dificuldades do transporte. Muitos trabalhados já foram escritos sobre questões administrativas destas duas fábricas, bem como sobre as diferenças ideológicas de seus administradores no que se refere à produção de ferro no período, assim, não vamos nos deter na descrição destes empreendimentos.

O panorama geral da siderurgia mineira no final do período colonial era diversificado. Apesar do esforço para montar fábricas de médio e grande porte, o que prevalecia ainda era a

3 A Acualidade. Ano III, n° 83, Ouro Preto, 25 de Agosto de 1880. GORCEIX, Henrique. O ferro e os mestres de forja na província de Minas Gerais (parte I).

produção local, dentro das fazendas de mineração ou agricultura, apenas para consumo interno ou com pouco excedente comercializável. Essa produção utilizava-se principalmente de trabalhadores escravos, que se baseava no método rudimentar dos cadinhos (veremos os diferentes métodos de produção de ferro um pouco mais adiante).

O trabalhador escravo, especialmente os africanos, é apontado tanto nas fontes como na historiografia como o responsável tanto pela introdução das técnicas de fundição na capitania mineira como pela regularidade do trabalho (HOLANDA, 1993). Mesmo Eschwege (1941)4, que se posicionava contrário ao uso de escravos, declara que a continuidade de trabalhos na fábrica Patriótica só foi possível com a aquisição de cativos. O discurso de Eschwege e de outros seus contemporâneos sobre a falta de disciplina do trabalhador livre e das dificuldades do aluguel de escravos – uma vez que logo que eles apreendiam o ofício, os seus senhores os reclamavam e colocavam para trabalhar para eles novamente – pode ser lido de mais de uma forma. Essa perspectiva mostra que, conquanto os trabalhos com o ferro em pequena escala não dessem conta do sustento de uma família, mesmo assim, era importante e garantia certo retorno, seja ele pecuniário ou não, o que justificava o senhor preferir alocar seu escravo para trabalhar diretamente para ele do que garantir o valor do aluguel do mesmo para

terceiros. Quanto às tecnologias utilizadas para a fabricação de ferro no século XIX, nas Minas

Gerais, restringiam-se a três processos, podendo os mesmos sofrer algumas diferenças devido a adaptações feitas pelos usuários. Os métodos eram os seguintes: cadinhos, italiano e catalão. Segundo Ferrand, as forjas eram alocadas, comumente, às margens de um rio, que fornecia a força hidráulica necessária; próximas a matas, que forneciam a madeira para a fabricação de carvão; e ao minério de ferro em si. Com isso diminuíam-se os custos de transporte e, por consequência, do ferro fundido a ser comercializado. (FERRAND, 1885) A técnica dos cadinhos era a mais simples, pois tratava-se de pequenos fornos que se agrupavam em número variado de acordo com cada proprietário, o fogo era acesso na parte de baixo dos cadinhos e, dentro dos mesmos, acrescentava-se uma mistura de areia e carvão de madeira muito fina, depois, o cadinho era preenchido até a borda de carvão, após de uns 15 minutos, colocava-se o minério de ferro em pó e se cobria com mais uma camada de carvão. A cada 5 ou 10 minutos, era necessário acrescentar mais minério em pó e carvão. O processo levava em torno de 2 horas e meia. Com o fogo apagado, retirava-se a camada de areia que fechava a abertura no

4 Eschwege dizia-se contrário ao uso de escravos, todavia usou escravos na sua fábrica e afirmava entender a resistência dos brasileiros em acabar com a escravidão e, até mesmo, pontuava que, se fosse brasileiro, não saberia se aceitaria o final do tráfico como algo bom para o país, uma vez que todos dependiam muito desta forma de trabalho.

fundo do cadinho e se obtinha uma bola de ferro esponjosa e impregnada com escórias, este material era malhado, reaquecido e malhado novamente e quantas vezes fossem necessárias até se transformar em barras de ferro bruto. Esse era o processo mais difundido em Minas Gerais, durante o século XIX, exigia pouco conhecimento e técnica, todavia tinha menor rendimento do que os demais. O método italiano produzia ferro de melhor qualidade e demandava menor quantidade de carvão, no entanto exigia certa habilidade dos trabalhadores. Esta forja compunha-se de um forno, com sua trompa, um malho com roda motriz e um forno de reaquecimento. Neste processo, o ritmo de trabalho era fundamental, pois o minério de ferro e, depois, a lupa eram reaquecidos, divididos e moldados várias vezes, demandando compasso entre o foguista (comanda o forno) e o malhador (dá forma a lupa de ferro). Além disso, o calor do fogo devia variar de acordo com as etapas de reaquecimento e o esforço de esticar, puxar e malhar a lupa de ferro constantemente, por cerca de 3 horas e 45 minutos, exigia concentração, sendo bastante desgastante. (FERRAND, 1885)

O método catalão era ainda mais elaborado e, durante o período de estudo, apenas, era utilizado na fábrica do Monlevade, tendo os trabalhadores cativos treinamento e supervisão do mesmo Monlevade. Armand de Bovet, professor de metalurgia da Escola de Minas de Ouro Preto na época, em um estudo realizado na década de 1880, apresenta algumas estimativas referentes à diferença na produção e a quantidade de matéria-prima envolvida nos dois processos mais comuns em Minas Gerais:

Tabela 3.1 - Estimativa de matérias-primas e tempo de trabalho necessários para produzir uma tonelada de ferro.

Método Produção Carvão Minério Tempo de trabalho

Cadinhos 1 tonelada 7000kg 4000kg 27 dias

Italiano 1 tonelada 5500kg 2200kg 18 a 19 dias Fonte: Bovet (1883, p.45).

Segundo Bovet, a maioria das fábricas não tinha fundos de giro e vendia os produtos à medida que os fabricava, tendo mercado fácil para os mesmos. O autor estima que o lucro obtido, aproximadamente, com a venda de 1 tonelada de ferro em barra seria de 57$600, usando-se o método dos cadinhos; e 114$690 com o italiano, na região central de Minas, onde o minério é mais abundante e a produção mais contínua.5

5 Para produzir 1 tonelada de ferro em barra com o método dos cadinhos será necessário 7 toneladas de carvão (70$000), 27 dias de trabalho (54$000, 2$000 cada), 4 toneladas de minério (4$800). Assim, as despesas seriam (exageradamente segundo o autor) de 128$000 e o preço da venda em torno de 186$400. Com o método italiano, as proporções seriam 5,5 toneladas de carvão (55$000), 18 dias de trabalho (36$000), minério (2$400).

Torna-se muito difícil saber como era a dinâmica de uma propriedade no século XIX mineiro, pois seus proprietários ou administradores não tinham o hábito do relato escrito, e os que tiveram esse costume, dificilmente, puderam ser observados em razão do extravio dos mesmos com o passar do tempo e pela mudança de comando das propriedades. Na continuação deste trabalho, vamos tentar entender um pouco desta dinâmica e, para isso, individuamos, em nossa amostra, os inventários que possuíam instrumentos para trabalhar e transformar o ferro. A fim de ajudar a interpretar a heterogeneidade destas propriedades, separamos os mesmos em três categorias, de acordo com os bens relacionados a atividades metalúrgicas: 1) fábrica de ferro, 2) tenda de ferreiro, 3) ferramentas para trabalhar o ferro. Em casos onde um mesmo senhor possuía concomitantemente diversos bens relacionados ao trabalho com o ferro, por exemplo, uma fábrica de ferro e uma tenda de ferreiro, foram consideradas apenas uma categoria, neste caso, a de maior representatividade, conforme a hierarquia presente na tabela a seguir.

Tabela 3.2 - Relação de inventários com bens relacionados ao trabalho com ferro, Termo da Vila de Santa Bárbara, 1822 – 1888.

Tipo de bem Quantidade

Fábrica de ferro 13

Tenda de ferreiro 35

Ferramentas para trabalhar o ferro 37

Total 85

Porcentagem em relação ao total de inventários consultados (360) 23,6% Fonte: APHMS. Amostra de Inventários, 1822-1888.

Apenas uma observação antes de seguirmos para o próximo tópico, o uso do termo fábrica é empregado, neste texto, com o significado de um local onde eram executadas atividades de transformação (manufatureira e/ou fabril). No caso das fábricas de ferro, termo recorrentemente empregado neste trabalho, estas designavam um cômodo/compartimento onde estava instalado o forno usado para transformar o minério de ferro em ferro fundido, bem como os malhos e demais instrumentos utilizados para dar forma à lupa retirada do forno. Segundo o dicionário de Raphael Bluteau, os termos “forja” e “fábrica” poderiam ser utilizados como sinônimos quando estamos tratando dos trabalhos com o ferro, obviamente (foram separadas apenas as explicações aqui pertinentes):

Assim, as despesas seriam em torno de 93$400 e o preço da venda de 208$000. BOVET, A. de. A indústria

mineral na Província de Minas Gerais. Primeira parte: Ferro e Ouro. Annaes da Escola de Minas de Ouro Preto. 3.ed. Ouro Preto: [s.n.] 1883. p. 52-54. v.2.

Forja: oficina de ferreiro, forno grande em que se derrete o ferro que vem da mina. No livro 3. De Nat. Deor. Cicero lhe chama fábrica, sem mais nada.6

Antonio de Moraes Silva (1789) e Luis Maria da Silva Pinto (1832) apresentam conceitos semelhantes, sem, contudo, comparar as forjar com fábricas:

Forja: fogão do ferreiro ou de outros que trabalham em alguma obra de metal.7 Forja: O fogão do ferreiro, espingardeiro, ourives.

Forjar: trabalhar com o ferro, levando-o a forja, e sobre a bigorna.8

Buscamos também os conceitos de fábrica para os mesmo autores:

Fábrica: Casa onde se trabalha e fabricam, por exemplo, panos, chapéus, sedas e outras manufaturas.

Fabricado: forjado na fábrica.

Fabricante: O que fabrica manufaturas, tanto o mestre como os oficiais.9 Fábrica: casa que se fabricam manufaturas.10

A definição da palavra “fabricado”, oferecida por Antonio de Moraes Silva, parece especialmente lapidada para transparecer o produto destas fábricas de ferro: materiais que foram forjados na fábrica. As definições deixam evidentes que o uso da palavra “fábrica” refere-se a processos manufatureiros. Ademais, as fontes apresentam a denominação de “fábrica” para qualquer empreendimento que transformasse minério de ferro em ferro fundido, mesmo os que usavam o método dos cadinhos, o mais simples para a época. Assim, vamos nos apropriar do significado utilizado na época, sendo que fábrica de ferro e forja serão utilizados como sinônimos neste trabalho.