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3.3. A maçã de Páris

3.3.2. Indeterminismo: cérebro quântico

A ideia de que o cérebro é um órgão como outro qualquer, que ele é uma máquina parece ser uma ideia reconfortante, pois ele não goza de uma áurea para além de suas propriedades biológicas, e entendê-lo daquela forma é mais condizente com as ciências biológicas e neurobiológicas.

No entanto, haveria algum modelo na física que pudesse sustentar a ideia de um cérebro quântico? Ou melhor, haveria a possibilidade de uma hipótese que justifique o cérebro enquanto um sistema indeterminado? Essa hipótese não parece clara quanto a que tipo de mecanismo o cérebro teria que ser para que seu sistema fosse não-determinado.

Searle (2004, 2007) faz uma reflexão instigadora: deve-se assumir que a consciência desempenha um papel causal na determinação das decisões e ações livres do agente, mas também deve-se assumir que esse papel causal não é determinista, ou seja, não se trata de condições suficientes. Agora, em qualquer caso, a ocorrência da consciência é uma questão de condições suficientes. Portanto, se levanta a hipótese de que os processos neurobiológicos ao longo do tempo são causalmente insuficientes, ou seja, cada estágio de um processo neurobiológico por si só não é suficiente para determinar o próximo estágio por condições causalmente suficientes. Supõe-se que a interpretação de cada estágio pelo estágio anterior depende de todo o sistema ser consciente e ter um tipo especial de consciência que manifesta uma lacuna, a saber, a consciência voluntária. Mas, como seria esse sistema? Nessa altura da hipótese está se conjeturando que o cérebro é, no nível inferior (micro), não determinístico, ou seja, a lacuna é possível em todo o caminho até o nível dos neurônios e processos sub-neurais.

Searle pergunta se existe na natureza algo que se assemelhe a essa hipótese.

Assim ele destaca:

A única parte da natureza que sabemos de fato hoje, enquanto escrevo isto, que tem um componente não determinístico é a parte da mecânica quântica.

No entanto, é um pouco enganoso chamar isso de parte porque é o nível mais fundamental da física, o nível mais básico das partículas físicas (SEARLE, 2004, p. 230)46.

Parece tentador, segundo nosso autor (2007), pensar o livre-arbítrio como uma manifestação da tomada de consciência de uma decisão racional, atribuir a ela um certo grau de indeterminismo quântico. Mas, é importante perceber que no nível quântico, para usarmos o exemplo da maçã de Páris, a forma como está representeado o momento T1, ele é apenas causalmente responsável pelo momento T2, de forma estatística, não de forma determinística. São estatísticas porque, no nível quântico, há um elemento aleatório.

Do que se desenvolveu até aqui sobre a ideia de lacuna, não nos dá a ideia de que o livre-arbítrio é algo aleatório. Ao contrário, o agente conhece suas razões para tomar uma determinada decisão e realizar uma certa ação. A pergunta era de saber se aquelas razões são causalmente suficientes, mas não de forma determinista, para se chegar a realizar uma ação.

A mecânica quântica adiciona o elemento da aleatoriedade, mas não a liberdade. Estatisticamente falando, há uma série de eventos que podem levar a um encadeamento de outros eventos, mas isso não implica que seja determinístico.

Segundo Searle:

Se supormos que a criação da consciência pelo cérebro é resultado de processos que são, em algum nível, fenômenos quânticos, e supomos que o processo de deliberação consciente herda a ausência de suficiência causal do nível quântico, isso não significa que ele herda a aleatoriedade (Idem, p.

231-232)47.

É provável que a função evolutiva da consciência seja, pelo menos em parte, organizar o cérebro de tal forma que a tomada de decisão consciente possa ocorrer.

Contudo, a aleatoriedade dos processos microscópicos que dão origem ao fenômeno da consciência no nível macroscópico não implica que o fenômeno da consciência seja aleatório.

46 The only part of nature that we know for a fact today, at the time I write this, has a nondeterministic component is the quantum mechanical part. However, it is a bit misleading to call that a part because it is the most fundamental level of physics, the most basic level of the physical particles.

47 If we suppose that the creation of consciousness by the brain is a result of processes that are, at some level, quantum phenomena, and we suppose that the process of conscious deliberation inherits the absence of causal sufficiency of the quantum level, it does not thereby follow that it inherits randomness.

Um modelo que se assemelha, embora necessitasse de experimentos que o pudessem ser basilares, é o que Dennett (1981) chama de “gerador de considerações”

(consideration-generator). Sua teoria elabora um modelo de decisão o qual ele descreve como:

Quando estamos diante de decisões importantes, um gerador de considerações, cujo resultado é em algum degrau indeterminado, produz uma série de considerações, algumas das quais podem ser imediatamente rejeitadas sendo consideradas irrelevantes pelo agente (consciente ou inconscientemente). Aquelas considerações que são selecionadas pelo agente como não desprezíveis figuram no processo de raciocínio, e se o agente é razoável estas considerações, em última instância, servem como fatores preditivos e explicativos da decisão final do agente48 (DENNETT, 1981, P. 295).

Poder-se-ia conjecturar com isso que segundo o modelo de Dennett (1981), nosso cérebro, diante de uma série de entradas caóticas, sobre as quais o controle não é possível ao agente, e que ocorrem inconscientemente, se ajustaria imediatamente para selecionar aquelas que lhes interessa no momento. Este ajustamento do cérebro serviria tanto para decisões mais complexas, quanto para outras mais simples, como levantar o dedo nos experimentos que destacamos no início deste capítulo. Mas isso seria atribuir ao cérebro um indeterminismo quântico?

Parece que não. Ele apenas parece figurar como um selecionador de inputs, que não necessariamente seriam caóticos. A capacidade seletiva do cérebro é o que se pode destacar nessa teoria de Dennett.

De toda forma, Searle (2004, 2007) considera a hipótese do cérebro quântico estranha ao que se entende da neurobiologia presente, e que sua aceitação soaria muito implausível sendo difícil de sustentar. Ela vai contra o que o naturalismo biológico tanto defende, que o cérebro é um órgão como qualquer outro e que a consciência é apenas a descrição de seu estado e nível superior. É até interessante atribuir a organização das razões para a tomada de decisão à consciência, mas atribuir uma aleatoriedade nos processos neuronais soa estranhamente desconcertante.

48 When we are faced with an important decision, a consideration-generator whose output is to some degree undetermined produces a series of considerations, some of which may of course be immediately rejected as irrelevant by the agent (consciously or unconsciously). Those considerations that are selected by the agent as having a more than negligible bearing on the decision then figure in a reasoning process, and if the agent is in the main reasonable, those considerations ultimately serve as predictors and explicators of the agent's final decision.