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CAPÍTULO 2 – CUIDADOS INFANTIS: ELEMENTOS

2.4 Infância e brincadeira

Neste item vamos abordar e desenvolver o conceito de infância, conceito importante na relação das brincadeiras entre adultos e crianças, discutindo-o também desde uma perspectiva de gênero, tratando de fazer uma crítica a uma conceitualização neutra do termo.

Como coloca Philippe Ariés (1987), “por volta do século XVII, à arte medieval não sabia da infância ou não tentava representá-la”, de modo que na sociedade daquela época não havia uma valorização social das crianças. Para o autor, retratos de crianças sozinhas se tornam numerosos durante o século XVII, e é somente partir desse período que os retratos de família tendem a ser organizados em torno da criança. Essa mudança de percepção e sentimento em relação às crianças e seu lugar social na família poderiam ser percebidos nas pinturas de artistas da época, como Rubens, Frans Hals, Van Dyck, Lebrun.

É a partir do século XVII que o retrato de cenas de costumes, de acordo com Ariés (1987), vai reservar um lugar especial para as crianças. Para o autor, inúmeras cenas da infância de caráter convencional são observadas: aula de leitura, aula de música, aulas de desenho e brincadeiras. Além disso, o autor confirma que o interesse nas crianças, suas formas e expressões, configurou-se nesse período, no qual se viu também surgir novas formas de designação para as crianças, como bambin, pitchoun, fanfan.

Fernández (1994), citando a Ariés (1987), coincide com o autor francês de que são os retratos de crianças do século XVII que evidenciam o processo de saída do anonimato por parte das crianças, em função, em grande medida, de uma mudança na demografia da época. Se antes as crianças tinham poucas chances de sobrevivência em função de inúmeras intempéries, com os avanços sociais e tecnológicos vividos a partir daquele período sua presença entre os adultos se tornaram muito mais frequente e constante, de modo que a elas se podiam dirigir afetos e sentimentos antes impensáveis, dado que era mais normal antes a morte do que a sua sobrevivência. A autora diz também que a particularização de crianças ocorre dentro de transformações das funções da família, que a partir daquele momento passam a privilegiar a convivência em espaços privados e reduzirem seus membros. A autora prossegue dizendo que Áries produz um rastreamento do processo de personalização da infância, que vai da Idade Média até a Modernidade, através de três indicadores sociais da representação das crianças, que são a arte, as brincadeiras e as vestimentas (FERNÁNDEZ, 1994).

Ariés (1987) manifesta, portanto, que a brincadeira é um dos elementos mais importantes a se ter em mente como um indicador social para demarcar a categoria geracional de infância. Fernandez (1994) também sugere que os homens foram os primeiros que começaram a frequentar escolas de massa a partir do final do século XVI e início do século XVII, de modo que essa particularização da infância foi reservada, inicialmente, para os filhos homens de famílias burguesas e nobres.

Fernández (1994) também afirma que a consciência da inocência e da fraqueza da infância e, consequentemente, o dever de adultos para preservar as crianças, foi por muito tempo reservada para uma pequena minoria de juristas, padres e moralistas. A autora afirma que os moralistas e educadores do século XVII impuseram um sentido de uma longa infância, em conjunto com o sucesso de escolas e práticas de educação que eles guiavam. Para a autora, assim como para Ariés (1987), a origem do sentimento moderno de infância é inseparável da escola moderna. Na escola do século XVII não era só um monopólio de classe, também um monopólio do sexo, quando as mulheres eram excluídas dessas instituições. Como Fernandez (1994) coloca, existe uma diferença de dois séculos na inscrição de meninas na escolaridade.

A autora argumenta que é no discurso do dia a dia, que é o mais sofisticado, onde se percebe a invisibilidade da menina. Para a autora, a criança não é um dado, mas sim uma produção histórica e social. Neste sentido, a autora afirma que sempre houve “a menina”, e que nem todas as meninas são parte de uma sociedade com práticas semelhantes de

infância, nem respondem a um mundo de significados comuns. O campo de significados que demarca a invisibilidade na infância produz duas diferenças: a) os diferentes modos de ser meninos e meninas: registro de classe; b) as diferenças entre ser uma menina e um menino: a inscrição de gênero. Para a autora, normalmente pertence à mesma categoria meninos e meninas, quando os processos de socialização, a construção de subjetividades, como muitas de suas práticas, são diferenças importantes. Vejamos, a esse respeito, o que nos diz uma de nossas entrevistadas:

[…] yo juego a lo que ellas juegan, por lo general son muy de jugar con las muñecas, entre ellas a hablar con las muñecas, yo tengo que hablar que soy una muñeca y ellas hablan, más que nada a ellas les fascina eso, es “mama veni hija…” y eso y todo asi… (Nádia, 29 anos, 3 filhas).

Nesse fragmento da entrevista de Nádia se observa uma analogia com o que Fernandez diz em relação às inscrições de gênero, quando a mãe brinca de bonecas com as meninas, diferenças que vão traçando uma construção de subjetividades na pessoa desde criança.

Diferenças que são invisíveis na noção de infância, junto às de classe e gênero, mas também étnicos, geopolíticos, culturais, entre outras. De acordo com Fernández (1994), instituir políticas para as crianças pode, muitas vezes, produzir efeitos indesejados, porque não podem organizar programas de ação para responder às diferenças de classe, cultura e gênero. Da mesma forma, a autora sugere que, no mundo ocidental, os cientistas estão produzindo representações do mundo que ignoram essas diferenças, e reproduzem a perpetuação das desvantagens no mundo social: meninas, em geral, crianças e pobres, em particular (FERNÁNDEZ, 1994).

Fernández (1994) também argumenta que é necessário o apoio das políticas para as crianças, e não só proteção e apoio apenas àqueles que pertencem aos segmentos mais pobres da população.

Agamben (2012), por outro lado, vai colocar em Teologia y Lenguaje, mais especificamente no capítulo Por una filosofía de la infancia, que a infância é a preeminente composição do possível e da potência. O que caracteriza a criança é sua própria potência, dirá o autor. A criança vive su propia posibilidad (AGAMBEN, 2012, p. 29) Nesse mesmo texto, o filósofo italiano dirá que é em vão que as pessoas adultas tentam confinar as crianças a tempos e lugares limitados, como são as creches, as brincadeiras codificadas, o tempo de brincar e os contos de

fadas, por exemplo. Para Agamben (2012), as crianças sabem que a questão não é fantasiar, senão que nesse experimento a criança joga toda sua vida, colocando-a em jogo a cada instante (AGAMBEN, 2012, p. 30). Em outro sentido, outro conceito importante para este trabalho é o de violência simbólica, tal como o entende Bourdieu (1970). Para o sociólogo francês, a violência pode ser exercida pelos agentes de socialização na infância, mas não diretamente pela força física, mas pela imposição de certas atitudes e papéis, com uma violência que é invisível, e os dominados não a sentem como tal: “todo o poder que consegue impor significações e impô-las como legítimas ocultando as relações de poder que são a base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é, em si simbólico, essas relações de poder”. (Bourdieu, 1970 apud Tenti Fanfani, 1994, p. 3). Pode-se observar que essa violência simbólica, como bem manifesta Bourdieu, está por trás de toda imposição. Sob esse ponto de vista, talvez seja legítimo pensar a brincadeira como um dispositivo que impõe significações como legítimas ligadas a uma sexualidade heteronormativa em forma de estereótipos de gênero, que são invisíveis para muitos, e que, como são vistas como legítimas, tornam-se muito difíceis de ser combatidas. As crianças são expostas, em certa medida, a uma violência simbólica que os adultos/as impõem quando dizem com quais brincadeiras se deve ou não brincar, o que faz com que as crianças fiquem em situação desvantajosa no que diz respeito ao direito ao brincar, tal como estabelecem as leis internacionais, como a Convenção sobre os direitos da criança, em seu artigo 31, ratificada no Uruguai, entre outros, pela lei n. 16.137, de 28 de setembro de 1990.

Essa violência simbólica que se manifesta por meio da imposição de símbolos relacionados a uma tipologia ou estereótipo de mulher e homen, ao promover certo tipos de brincadeiras e proibir outras, pode ser entendida como uma repressão da identidade sexual e criatividade que as crianças experimentam nas brincadeiras quando estão sem a presença de adultos. A imposição de estereótipos ligados a uma sexualidade heteronormatiava (BUTLER, 1999) nas brincadeiras salienta a importância de nossa pesquisa sobre essa temática, promovendo uma reflexão articulada com a teoria.

Em relação às brincadeiras, existem muitos manuais e livros que tratam sobre o tema, assim como discussões teóricas sobre sua conceituação e função social e pedagógica. Como manifesta Scheines (1999), é também um tema interminável e controverso, mas pode se chegar a um acordo de que existiram brincadeiras desde a antiguidade, como observou Ariés (1987) nas imagens de pinturas.

Philippe Ariés (1987) nos mostra que Heroard, médico da corte de Henrique V, registrou e detalhou várias brincadeiras em seus escritos. A conclusão que pode se chegar disso é a de que, até certo ponto, as mesmas brincadeiras eram comuns a todas as idades e a todas as classes sociais. Contudo, essas brincadeiras vão paulatinamente ganhando especificações e diferenciações, sendo primeiramente abandonadas pelos adultos das classes superiores, mas ainda sobrevivendo na aldeia e nas crianças de classes superiores (ARIES, 1987). Nessa mesma direção, Ariés (1987) afirma que a duração da infância se reduzia apenas a um período de maior fragilidade das crianças, e que, na medida em que sobreviviam, já passavam a ocupar tempos e espaços comuns com os adultos, inclusive no que se refere às brincadeiras.

CAPÍTULO 3 – BRINCADEIRAS NO LAR: REPRODUÇÃO DOS