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3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.2 Infância e relacionamento familiar

Sobre a infância, quase todas as entrevistadas informaram que moravam no mesmo município e com a família de origem (pais e irmãos) durante esse período. As avós maternas também tiveram importância no cuidado das jovens nessa fase da vida, mas não permaneceram com essa responsabilidade a partir da puberdade:

Morava com a minha vó até os 11 anos, mas era numa fazenda aqui perto. Aí eu comecei a dar muito trabalho e ela me entregou pra minha mãe. (...) Eu já tinha começado a aprontar e minha vó ficou com medo deu arrumar uma barriga, alguma coisa assim lá na roça. Eu ficava querendo sair pra rua, sabe. Tinha umas meninas que moravam lá perto que iam pra rua e eu queria ir também. (...) Aí com 11 anos fui morar com a minha mãe. (E4)

Devido à separação dos pais ou o falecimento de um dos genitores, a família nuclear de origem se manteve em apenas três casos. De maneira geral, com a separação do casal as filhas permaneceram com a mãe, que se uniu a outro (s) companheiro (s), tendo ou não outros filhos.

Como principais motivações para a separação do casal, foram informados o abuso de álcool e o adultério. Após a separação, o pai tornou-se e/ou foi mantido

alheio à família, o que promoveu o distanciamento afetivo entre ele e a própria jovem:

Ah... Eu não conversava com ele não. Nunca fui de conversar assim sério mesmo de pai pra filho, nunca conversei com ele assim. Era: “pai eu preciso de um documento”, era só isso mesmo. Conversava com ele quando precisava de algum documento assim. Nunca fui de conversar com ele. (E1)

Ah, ele mora aqui mesmo, mas nós não conversa com ele não. Eu nunca morei com o meu pai não. Nem gosto dele. (E4)

É muito raro eu ver meu pai. (E5)

Em função da distância, a mágoa pelo abandono ou pelo tratamento dispensado pelo pai enquanto ainda estava com a família foi alimentada:

Ah, meu pai nunca gostou de mim não. E eu também nunca gostei dele. Ele fala na minha cara que nunca gostei. Ele não gosta de mim não. Ele foi muito ruim pra mim, pra minha mãe, ele foi muito ruim pra nós. (E1)

Ah, não gosto dele, ele não ajudou a criar nós né. Ele é muito prego sô! Tem uma fama muito boa não. Fica tirando onda com a gente, se fazendo de pai. Quando a gente tá com algum menino, fica fazendo que tá com ciúmes. (E4)

A mãe por sua vez foi reconhecida como aquela que foi capaz de substituir o pai em sua função de permanecer junto à família e provê-la. Para algumas jovens a mãe é uma referência moral, que dita o que é certo e o que é errado, e que por isso mesmo não raramente entra em embate com o desejo das jovens de agir com mais autonomia e liberdade. Investigando o contexto familiar de mulheres que se dedicam à prostituição, Molina e Kodato (2005) observam que questões de poder e gênero se articulam, possibilitando uma leitura desse espaço nuclear como um campo de luta e confrontações:

E minha mãe, igual como se diz o povo “boca de mãe tem praga”. Às vezes ela apontava: “Isso não é menina de você tá andando”. E aí eu virava as costas e batia o pé e falava: “A senhora intromete muito na minha vida”, entendeu? Preciso ter minha liberdade. (E5)

que ela tem hoje ela sofreu bastante. E por isso que eu admiro ela por que ela teve força, teve vontade própria pra vencer na vida sem depender de ninguém pra ser o que ela é hoje, entendeu? (E11)

De maneira geral, a convivência familiar durante a infância foi avaliada de forma positiva. A lembrança da passagem da união nuclear para a perda e/ou enfraquecimento dos vínculos relacionais entre os membros da família parece configurar um marco importante:

Ah, era melhor. Depois que minha mãe morreu acabou mesmo. (E1)

Era boa, a gente era mais assim, apegado uns com os outros... Era melhor, sabe. (E8)

Acho que da minha infância assim a única coisa que eu tenho a reclamar é só isso, a separação dos meus pais. (E11)

Verificou-se um desgaste nas relações familiares, principalmente a partir da adolescência, quando essas jovens passaram a ter novos interesses e a explorar espaços fora do ambiente familiar:

Era boa, eu e minha mãe sempre nos demos bem. Com a minha avó também. Só depois que eu comecei a aprontar aí... (E4)

Eu e minha família? Era muito boa (a convivência). Só não foi boa a partir do momento que eu larguei a minha casa e comecei a andar, entendeu? Larguei isso tudo, inclusive a minha mãe, ela, como se diz, ela se revoltou. Por causa disso. (E5)

Outras ocorrências conflituosas também parecem ter marcado as recordações sobre a convivência familiar na infância:

Aí, só era muito ruim quando meus irmãos bebiam. Ele dava a bater na minha mãe, aí nós não deixava. Aí era maior rolo. (E9)

Eu mais meu pai brigava demais. (...) Meu pai queria mandar, sabe. Ele, a gente não podia fazer nada, não podia nem sair lá pra poder ir ali fora que meu pai começava a xingar, bater na gente... (E16)

Ainda sobre a infância, algumas entrevistadas confirmaram a presença de amigos nessa época da vida, enquanto outras tiveram essa vivência tolhida de alguma forma, talvez evidenciando uma tentativa da família de resguardar tais jovens do mundo e de influências externas:

Lá na fazenda minha vó nunca deixou eu brincar assim com ninguém de fora não. Era só eu e meu primo mesmo. (E4)

Na época de criança? Minha mãe assim, diz pra mim que não, que não era muito... Ela nunca gostou de eu ficasse com colegagem. (E5)

Além das atividades lúdicas costumeiras da infância (esconde-esconde, pega- pega, pula-corda, bola, peteca, boneca, casinha, etc.), outras atividades prazerosas vividas nessa época indicam um desejo das jovens em ampliar o contato com o ambiente externo e transpor os limites impostos socialmente, que restringem a mulher ao ambiente doméstico e a comportamentos mais “contidos”.

Analisando as influências das relações de gênero na socialização de adolescentes residentes na periferia de Natal, Traverso-Yepez e Pinheiro (2005) constatam a condição de interioridade feminina em diversas dimensões da vida (lazer, trabalho, educação, rotinas e vida social). Afirmam ainda que a hierarquização de gênero perpassa todo o cotidiano vivido pelos sujeitos, reproduzindo tanto os papéis vigentes no grupo social quanto as rupturas e subversões possíveis.

Em primeira instância, cabe à família reproduzir essa norma social que postula a diferenciação entre gêneros (Giffin, 1994; Bruschini, 1997), mantendo as jovens mulheres dentro de casa e regulando seu comportamento:

Mas quando ela deixava, assim de noite a gente brincava de “caiu no poço”. Esses negócio assim de menininha quando a gente ta ficando mais mocinha, sabe? (...) (risos). Ah, brinca ué, de “caiu no poço”. Pára na pessoa a gente tem que dar um beijo. Mesma coisa assim, quando a gente vai ficando mais jovem, a gente fica mais assanhadinha (risos). (E4)

Para Moraes (1998), esse tipo de controle da sexualidade feminina pobre é reflexo do sistema acusatório que incide sobre esse grupo, onde “o fato de serem pobres e viverem a maior parte do tempo nas ruas das cidades enuncia uma condição de mulher pública em oposição à ‘mulher de casa’” (p. 32).

Essa característica de controle sexual também pôde ser observada nos relatos sobre relacionamentos familiares atuais, onde a permanência das jovens nas ruas e os comportamentos tidos como inadequados motivam desavenças e acirraram conflitos domésticos:

Em casa eu tenho hora de chegar, sabe? Eu me sinto muito segura quando eu tô em casa. Por que às vezes ela fala: “Você sai, vai pra danceteria, 4 horas você tem que estar aqui”. Se eu não tô ela pega o carro e vai atrás de mim. Entendeu? Aí eu começo, eu fico... Aí eu começo a gritar com ela, falar pra ela que... Como se diz, que ela quer me criar presa. Que eu não sou mais criança. E começa a jogar esse tipo de coisa. Aí vai, mais tarde eu pego e arrependo, vou pedir ela desculpas. Aí ela começa a falar que não é por ela me querer presa, é pela minha segurança. Por que ela é minha mãe. E eu não sinto, ela preocupa muito comigo. (E5)

Ah, num foi, minha gravidez não foi uma coisa que eu esperava, e nem eles então, no começo tava um clima chato agora já melhorou mais. (...) Ai por que mi... mi... minha irmã foi, eu ter arrumado um menino diz a minha irmã que foi a pior coisa do mundo. Foi por que eu sempre ajudava ela agora vou ter o meu, eu não vou ter, poder ajudar ela. Então nós discute, agora nós começamo a discutir por causa disso. (E19)