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Infância e Educação Infantil – marcos na legislação no século

O MOVIMENTO PELOS DIREITOS DA CRIANÇA E OS DISCURSOS OFICIAIS SOBRE A INFÂNCIA NO BRASIL

3. Destinatários

2.3 Infância e Educação Infantil – marcos na legislação no século

Nesse quadro mais amplo de construção e consolidação do movimento pelos direitos da criança no Brasil, é importante ressaltar a conquista do direito à

educação pelas crianças de zero a seis anos de idade, que no Brasil é reconhecido somente com a promulgação da Constituição brasileira de 1988.

Estudos realizados por Didonet (1993) e Cury (1998) acerca desse direito na legislação brasileira apontam para a omissão ou silêncio total tanto no século XIX quanto nas três primeiras décadas do século XX.

Entretanto, Didonet (1993, p. 14) enfatiza que, “em relação à educação, o direito da criança pequena nunca foi negado”. O autor esclarece que a Constituição de 1934 afirma o princípio do direito universal à educação, mas, ao mesmo tempo, estabelece que cabe à família, com exclusividade, a educação de seus filhos menores de sete anos. Observa-se que há, nesse caso, uma transferência da responsabilidade de educar as crianças menores de sete anos para as famílias.

Ainda de acordo com Didonet (1993), a Constituição de 1937 segue o mesmo princípio da anterior (1934) e confere aos pais o dever e o direito natural de educar seus filhos, cabendo ao Estado uma ação subsidiária somente nos casos em que a família vier a faltar, “causando abandono moral, intelectual ou físico da infância” (art. 127 da Constituição de 1937).

A primeira lei a estabelecer de forma específica a atenção à criança de zero a seis anos de idade é a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1943. Nessa Lei, porém, a preocupação é atender as necessidades da mãe trabalhadora e não da criança em particular. De qualquer forma, conforme Didonet (1993, p. 17), “há que se admitir que a CLT foi um pouco além da proposta de ‘guardar’ a criança no período da amamentação [...]. Fala em creches distritais (artigo 389, 2º), escolas maternais e jardins de infância (artigo 397), mas sem obrigatoriedade”.

Nas Constituições de 1946 e 1967 reaparece o princípio do direito universal à educação, suprimido do texto Constitucional de 1937, mas permanece ainda como atribuição da família a tarefa de educar seus filhos menores de sete anos.

A Emenda nº. 1, de 1969, à Constituição de 1967, propõe que uma Lei própria deverá dispor sobre a assistência à maternidade, à infância e sobre a educação de excepcionais. Todavia, de acordo com Didonet (1993, p. 18), “a ‘infância’ ficou sem a prometida lei”.

De acordo com Didonet (1993) e Cury (1998), as leis que tratam especificamente da educação também trazem referências à educação infantil, ainda que discretas. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1961 – Lei 4.024/61, faz uma referência discreta à educação infantil. Essa referência é feita considerando a educação infantil dentro do Grau Primário (CURY, 1998). Assim, a Lei 4.024/61, dentro do primário, distingue Educação Pré-Escolar e Ensino Primário e afirma que a educação pré-escolar se destina aos menores de sete anos, os quais deverão ser atendidos em escolas maternais e jardins de infância.

Nessa Lei, os artigos que se referem à educação das crianças são: “art. 23 – A educação pré-primária destina-se aos menores até sete anos, e será ministrada em escolas maternais ou jardins de infância”; e “art. 24 – As empresas que tenham a seu serviço, mães de menores de sete anos, serão estimuladas a organizar e manter, por iniciativa própria, ou em cooperação com os poderes públicos, instituições de educação pré-primária” (BRASIL, 1961).

A Lei nº 5.692/71, sobre o Ensino de 1º e 2º Graus, é bastante tímida em relação à educação da criança de zero a seis anos de idade (Didonet, 1993). O Artigo 19, parágrafo 2º dessa Lei dispõe que “os sistemas de ensino velarão para que as crianças de idade inferior a sete anos recebam conveniente educação em escolas maternais, jardins de infância e instituições equivalentes” (BRASIL, 1971). Para Didonet (1993), o verbo velar não significa responsabilidade, mas simplesmente “assistir, olhar, acompanhar” e que “a educação da criança pequena continua sendo responsabilidade da família, com progressiva atribuição de encargos para as empresas e o poder público, este principalmente estimulando a iniciativa empresarial” (DIDONET, 1993, p. 19).

Em meados da década de 1970, surge uma das principais reivindicações desse período, a luta pela creche (CAMPOS, 1999). A autora explica que

agora são as mulheres, lutando pelo atendimento de necessidades básicas em seus bairros, que incluem a creche na agenda de reivindicações dos movimentos que protagonizam, entendendo-a como um desdobramento de seu direito ao trabalho e à participação política (CAMPOS, 1999, p. 122).

Os principais impactos desses movimentos não vão ocorrer de imediato no setor educacional, mas principalmente na área de assistência social. Nesse período, destaca-se a atuação da LBA que será responsável pela ampliação do atendimento às crianças em creches e pré-escolas.

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que os avanços mais importantes para a educação infantil ocorreram a partir de meado da década de 1980. De acordo Didonet (1993) e Cury (1998) esses avanços decorreram de um intenso processo de mobilização da sociedade civil e participação nacional que culminaram com a promulgação da Constituição de 1988.

Para Didonet (1993, p. 22) essa Constituição “consagrou, no plano jurídico, o que já se considerava uma nova maneira de entender a criança no contexto social” e estendeu o direito à educação às crianças de zero a seis anos de idade.

Nessa mesma perspectiva, Cury (1998, p. 11) destaca:

(...) a Constituição incorporou a si algo que estava presente no movimento da sociedade e que advinha do esclarecimento e da importância que já se atribuía à educação infantil. [...] Ela não incorporou esta necessidade sob o signo do Amparo ou da Assistência, mas sob o signo do Direito, e não mais sob o Amparo do cuidado do Estado, mas sob a figura do Dever do Estado. Foi o que fez a Constituição de 88: inaugurou um Direito, impôs ao Estado um Dever, traduzindo algo que a sociedade havia posto.

A Constituição de 1988 dispõe em seu art. 205 que a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família. Além disso, estabelece que o dever do Estado em prover a educação das crianças de zero a seis anos será efetivado mediante a garantia de atendimento em creches e pré-escolas (art. 208). É, portanto, a afirmação do direito constitucional à educação para as crianças de zero a seis anos de idade.

Para além da disposição interna em afirmar a educação como um direito da criança de zero a seis anos, registra-se nesse período o debate internacional em torno da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, em 1989, já referida anteriormente, e a ocorrência de eventos que tinham por objetivo elevar a

educação à condição de prioridade nas agendas políticas dos países, sobretudo, os mais pobres e os em desenvolvimento.

Nessa perspectiva, a realização da Conferência Mundial de Educação para Todos12, em Jomtien (Tailândia), em 1990, se constituiu como um importante evento para a educação, em especial, para a educação infantil. Nessa Conferência, os países presentes (inclusive o Brasil) assumiram os compromissos de “satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem das crianças, jovens e adultos; erradicar o analfabetismo e universalizar o acesso à escola na infância. A Declaração de Jomtien reconhece que a aprendizagem inicia com o nascimento” (UNESCO, 2002, p. 9, grifos meus).

De acordo com Casassus (2001, p. 10), a Conferência tinha por objetivo “situar a educação como uma das principais prioridades da política pública”, e assim o fez. A Conferência transformou-se no marco legal internacional e fixou a educação como eixo central dos discursos políticos. As recomendações presentes na declaração assinada nessa Conferência serviram de base para as reformas, projetos e programas de educação em vários países do mundo, especialmente, nos países da América Latina dentre eles Argentina, Costa Rica, Brasil, Uruguai e Colômbia, para citar alguns.

Nesse período, a participação de organizações e agências de desenvolvimento, como o Banco Mundial (BM), a UNESCO, o UNICEF, no financiamento e na orientação das políticas públicas para a educação, inclusive a educação infantil, foi mais sistemática, em especial, nos países em desenvolvimento.

No Brasil, também em 1990, é aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente o qual reafirma o direito da criança de zero a seis anos à educação e

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“Essa reunião foi convocada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – Unesco –, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD –, Fundo das Nações Unidas para a Infância – Unicef – e Banco Mundial; o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID – atuou como um dos co-patrocinadores. O propósito fundamental da reunião foi o de gerar um contexto político favorável para a educação e orientar as políticas educacionais para fortalecer a educação básica, proporcionar maior atenção aos processos de aprendizagem e buscar satisfazer as necessidades fundamentais de aprendizado” (CASSASSUS, 2001).

dispõe que é dever do Estado ofertar os serviços para atendimento da demanda por creches e pré-escolas (art. 53 e 54).

Nesse contexto de intensos debates em torno da educação, inclusive a educação infantil, sob inspiração da Constituição de 1988 e do Estatuto de 1990, além das orientações e compromissos internacionais mencionados, é aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) - Lei n. 9.394/96. Essa Lei reafirma entre outras coisas, o direito à educação das crianças de zero a seis anos de idade, a ser realizada em creches e pré-escolas (art. 4o), proclama a educação infantil como primeira etapa da educação básica (art. 21) e define as bases para a sua efetivação.

A LDB expressa o discurso da criança como sujeito de direitos e estabelece como finalidade para essa etapa educacional o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físicos, psicológicos, intelectuais, sociais. Nesse sentido, a LDB incorpora ao mesmo tempo a concepção de criança como sujeito de direitos e o compromisso da educação com o desenvolvimento integral da criança, estabelecido tanto na legislação nacional quanto em documentos internacionais como a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989).

Em função da aprovação da LDB, em 1996, o Ministério da Educação (MEC), juntamente com o Conselho Nacional de Educação (CNE), introduz várias alterações nos sistemas de ensino com o fim de regulamentar os princípios estabelecidos pela lei máxima da educação. Essa regulamentação ocorre através da elaboração e publicação de inúmeros documentos oficiais.

Nesse contexto, as diretrizes, os parâmetros e os referenciais curriculares nacionais (dentre eles o RCN/Infantil) são publicados, os quais são documentos oficiais produzidos pelo MEC, que traduzem, além das orientações estabelecidas no ordenamento legal, a orientação da política educacional proposta pelo governo da época, como também das organizações internacionais dominantes naquele momento.

Assim, propõe-se, a seguir, explicitar as características do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, publicado pelo MEC em 1998, a fim

de evidenciar aspectos do contexto de elaboração e implementação, estrutura e conteúdo desse documento, mantendo como horizonte a compreensão dos elementos que contribuem para a conformação de um discurso oficial sobre a cidadania das crianças.

2.4 O contexto e o texto do Referencial Curricular Nacional para a Educação