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A construção da noção de cidadania infantil no referencial curricular nacional para a educação infantil

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Universidade Estadual de Campinas

Faculdade de Educação

Isabel Cristina de Andrade Lima e Silva

A CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO DE CIDADANIA

INFANTIL NO REFERENCIAL CURRICULAR

NACIONAL PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL

Campinas

2006

(2)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

A CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO DE CIDADANIA INFANTIL NO REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL

Autor: Isabel Cristina de Andrade Lima e Silva Orientadora: Maria Evelyna Pompeu do Nascimento

Este exemplar corresponde à redação final da Dissertação defendida por Isabel Cristina de Andrade Lima e Silva e aprovada pela Comissão Julgadora. Data: .../.../... Assinatura:... Orientadora COMISSÃO JULGADORA: ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ 2006

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Aos meus pais (in memoriam) Ao meu marido Gildemarks

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AGRADECIMENTOS

À Profa. Dra. Maria Evelyna Pompeu do Nascimento pela amizade e orientação precisa, sistemática e de grande rigor metodológico fundamentais para a realização deste trabalho;

Aos Professores Dr. Luis Enrique Aguilar e Dra. Raquel Pereira Chainho Gandini pelas contribuições valiosas durante a qualificação e pelas considerações que certamente farão na defesa;

Aos Professores Dr. Luis Enrique Aguilar, Dr. Zacarias Pereira Borges, Dra. Patrizia Piozzi, Dra. Eloisa de Matos Höfling, Dr. Newton Antônio P. Bryan, Dr. José Roberto Rus Perez e Dra. Maria Evelyna Pompeu do Nascimento por partilharem conhecimentos valiosos nas disciplinas ministradas durante o curso;

Ao Prof. Dr. Manuel Jacinto Sarmento pela gentileza da acolhida no Instituto de Estudos da Criança (Portugal), pelas indicações bibliográficas e pelas importantes contribuições ao projeto de pesquisa;

Às colegas do Grupo de Pesquisa Solange, Jéssica, Luciana, Débora e Sueli pelos momentos de discussão compartilhados durante o curso;

À Nadir e Gislene, da Secretaria da Pós-Graduação, pela paciência, atenção e apoio nas questões burocráticas deste curso;

A minha família pelo apoio, conforto e incentivo constante durante a minha vida;

Ao meu querido e amado Gildemarks pelo apoio incondicional, suporte emocional, incentivo constante e amor compartilhado durante a nossa vida em comum e, em especial, durante estes anos de curso;

A todas as pessoas amigas que colaboraram direta ou indiretamente para realização deste trabalho.

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Ninguém conhece a infância: quanto mais se seguem as falsas idéias que dela se têm, mais longe se fica de a conhecer.

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RESUMO

Até recentemente, enquanto a infância era vista como o lugar da criança, a cidadania era compreendida como um status atribuído especificamente aos que atingiam a condição de adulto. No entanto, não são poucos os que, atualmente, tanto no discurso oficial quanto no discurso acadêmico defendem a noção de criança cidadã, o que, evidentemente, revela um paradoxo. Pode a criança de zero a seis anos ser cidadã? Quais as concepções de cidadania e de infância que subjazem ao Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil? Neste sentido, esta pesquisa tem por objetivo identificar e analisar as concepções de cidadania e infância, assim como a relação estabelecida entre essas concepções, no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCN/infantil). Assume a hipótese de que o discurso da cidadania das crianças, presente em tal documento, é ambíguo quanto à utilização dos conceitos de cidadania e infância. Recorre à análise documental como técnica de abordagem do documento e coleta das informações necessárias ao estudo, tomando como fonte o documento Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCN/Infantil). A análise considera a trajetória de construção do documento, como também os interesses e as perspectivas teóricas defendidas no MEC e indica que há no documento uma estratégia que opera, simultaneamente, a modificação dos conceitos de infância e cidadania. Ou seja, eleva-se o estatuto da criança para atribuir-lhe cidadania, ao mesmo tempo em que se rebaixa o estatuto da cidadania para que se ajuste às crianças. Conclui, então, que as implicações decorrentes dessa alteração oscilam entre valorização relativa da criança e a desvalorização da cidadania.

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ABSTRACT

Until recently, childhood was seen as the child place, citizenship was understood as a status specifically awarded to those who were in adult situation. Nevertheless, not few are those who, nowadays, both in their academic and official speeches defend the position of the child citizenship, which, of course, reveals a paradox. Is a six-year-old child a citizen? What are the conceptions of citizenship and childhood which are laid down in the National Curriculum Referential for the Childhood Education? Thus, this research aims to identify and analyse the relation established between the conceptions of citizenship and childhood in the National Curriculum Referential for the Childhood Education (RCN/Infantil). It assumes the hypothesis that the speech of the children citizenship, which is in the mentioned document, is based upon the ambiguity related to the use of the referred concepts. It recurs to the documental analyses as an approach to the documents and takes as main source the document called National Curriculum Referential for the Childhood Education (RCN/Infantil). The analyses considers the trajectory of the document construction as well as the concerns, as perspective theories, defended at MEC and indicates that there is some strategy in the document that operates, simultaneously, the modification of the concepts of childhood and citizenship. In other words, the child´s statute is elevated to be given citizenship, and then taken back to be adjusted to the children. The conclusion is that the implications resulted from this alteration varies between the child relative valuation and devaluation of citizenship.

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LISTA DE QUADROS, TABELAS E FIGURAS

QUADRO 1 – Categorias e itens de análise da pesquisa 18 QUADRO 2 – Síntese dos direitos da criança estabelecidos pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989

82

QUADRO 3 – Comparativo entre o Código de Menores de 1979 e o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990

94

QUADRO 4 – Síntese de fatos importantes para o movimento pelos direitos da criança ao longo do século XX no Brasil

96

QUADRO 5 – Cronograma de elaboração do RCN/Infantil 109 QUADRO 6 – A organização do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil

116

QUADRO 7 – Síntese das principais características da infância presentes no RCN/Infantil

155

QUADRO 8 – Ocorrências dos termos Cidadania e Cidadão no texto do RCN/Infantil

157

QUADRO 9 – Síntese das principais características vinculadas à cidadania presentes no RCN/Infantil

171

TABELA 1 – Estabelecimentos da Educação Infantil segundo a utilização do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCN/Infantil) – Brasil e Regiões – 2000

113

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LISTA DE SIGLAS

ANPEd – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento

CEB – Câmara de Educação Básica CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas CNE – Conselho Nacional de Educação

CNPQ – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico COEDI – Coordenação Geral de Educação Infantil

DNCr – Departamento Nacional da Criança ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente

FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação FUNABEM – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira LBA – Legião Brasileira de Assistência

LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MEC – Ministério da Educação

MIEIB – Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil MNMMR – Movimento Nacional de Meninas e Meninos de Rua ONU – Organização das Nações Unidas

OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público PNAD – Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios PNBEM – Política Nacional do Bem-Estar do Menor

PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento SAM – Serviço de Assistência a Menores

SEF – Secretaria de Ensino Fundamental

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 01

CAPÍTULO 1 - INFÂNCIA E CIDADANIA: CONCEITOS E CONCEPÇÕES 21

1.1 Cidadania: um conceito complexo e dinâmico 23

1.1.1 Concepções de cidadania 24

1.2 Infância, infâncias e crianças: conceito e concepções 44

1.2.1 Concepções de infância 48

1.3 Cidadania e infância: uma relação complexa 60

1.3.1 Perspectivas teóricas acerca dos discursos sobre a criança cidadã 62

CAPÍTULO 2 – O MOVIMENTO PELOS DIREITOS DA CRIANÇA E OS DISCURSOS OFICIAIS SOBRE A INFÂNCIA NO BRASIL NO SÉCULO XX

71

2.1 Grandes movimentos, novos discursos 73

2.2 Os discursos oficiais sobre a infância no Brasil do século XX: a criança-objeto, a criança sujeito de direitos e a criança cidadã

84

2.3 Infância e Educação Infantil – marcos na legislação no século XX 97 2.4 O contexto e o texto do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil

102

2.4.1 A elaboração 104

2.4.2 A estrutura e o conteúdo da proposta do RCN/Infantil 115

2.4.3 A implementação 125

CAPÍTULO 3 – O DISCURSO OFICIAL SOBRE A CIDADANIA INFANTIL NO REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL 129 3.1 Infância 130 3.1.1 Natureza infantil 133 3.1.2 Criança 136 3.1.3 Brincadeiras e jogos 139

(12)

3.1.4 Protagonismo infantil 142 3.1.5 Cultura infantil 145 3.1.6 Educação Infantil 147 3.1.7 Desenvolvimento infantil 153 3.2 Cidadania 156 3.2.1 Direitos de cidadania 158 3.2.2 Independência e autonomia 163 3.2.3 Racionalidade 168

3.2.4 Desempenho individual x Desempenho social 169 3.3 O discurso da cidadania das crianças no RCN/Infantil 172

CONCLUSÃO 181

REFERÊNCIAS 185

(13)

INTRODUÇÃO

A consolidação da imagem da criança como cidadã, como sujeitos de direitos, tem tido, sobretudo, na Sociologia da Infância, um espaço importante de reivindicação. Questões associadas ao estatuto, neste caso a um incipiente estatuto social, económico e político das crianças, influenciam negativamente a consolidação da

cidadania infantil e a capacidade de as crianças participarem

plenamente como membros da sociedade.

Catarina Tomás e Natália Soares

[...] existe realmente esta coisa chamada cidadão-aluno ou

criança-cidadã? A escola se constitui de fato em espaço político de

exercício da cidadania? [...] Na relação intergeracional, não estamos diante de ‘iguais’: a autonomia do cidadão (adulto) não coaduna com a heteronomia infligida pela infância.

Flávio Brayner

No Brasil, o movimento pelos direitos da criança tem a década de 1980 como marco. É nesse mesmo movimento que surgem reivindicações em torno da afirmação da criança como cidadã e, a partir do marco referido, registram-se discursos que enfatizam um determinado tipo de cidadania para as crianças ou, em outros termos, proclamam uma cidadania infantil. Verifica-se, no entanto, que o debate teórico em torno da relação entre infância e cidadania não tem merecido a atenção necessária, seja na academia, na sociedade civil ou no meio político, a fim de explicitar as nuanças que envolvem essa relação.

Assim, este trabalho desenvolve-se em torno da temática Infância e Cidadania, o qual tem como eixo de análise o discurso oficial sobre a cidadania das crianças propalado pelo MEC. Nesta pesquisa, o discurso oficial é sinônimo de documentos que expressam a política do governo brasileiro (ALMEIDA, 1999). Nesse sentido, propõe-se identificar e analisar as concepções de cidadania e infância, assim como a relação estabelecida entre essas concepções, no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCN/Infantil), documento oficial publicado pelo MEC em 1998. Assume-se a hipótese de que o discurso da cidadania das crianças, presente nesse documento, está baseado em ambigüidade quanto à utilização dos conceitos de cidadania e infância.

(14)

De fato, parece haver um consenso de que o termo cidadania tem se constituído nos últimos tempos em palavra-chave de diversos discursos, quer no campo educacional, quer no campo político. No contexto educacional brasileiro, o termo adquiriu quase o estatuto de passe-partout (BRAYNER, 2001), especialmente em documentos legais tais como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB – Lei nº. 9.394/96) e outros documentos do Governo Federal. A utilização do termo não se reduz, no entanto, a leis ou documentos e é possível perceber uma referência constante à cidadania nas “falas” de professores (de diferentes níveis de ensino), de alunos e de outros agentes da prática educativa. Para além disso, o termo cidadania é o mote por excelência nos discursos políticos das mais diversas orientações ideológicas.

O fato é que a aplicação/utilização do termo tornou-se insistentemente comum, ou como aponta Almeida (1999), assumiu o status de moda no Brasil. Isso, porém, não permite dizer que a questão da cidadania em si mesma esteja resolvida, pois, na maioria dos casos, de acordo com Almeida (1999, p. 112), esses discursos ajudam a “esconder os paradoxos que configuram a sua realidade na prática”.

Além disso, pode-se afirmar, ainda, que o conceito de cidadania não é unívoco; é passível de interpretações diversas (BÁRCENA, 1997). É um conceito que admite, como tem sido ao longo da história, concepções diferentes que vão sendo retomadas e ressignificadas, servindo-se de elementos sociais, políticos, econômicos e culturais extraídos dos contextos onde se realiza. Pode haver, inclusive, numa mesma época, mais de uma concepção de cidadania (NOGUEIRA & SILVA, 2001; ANDRADE, 2001). Daí decorre a importância de se ter clareza quanto à utilização do termo cidadania.

Recentemente, aliada à utilização corrente do termo cidadania, vê-se uma associação dele à infância, referindo-se, também, às crianças de zero a seis anos. Verifica-se que a associação ocorre com uma freqüência cada vez maior em diversos documentos oficiais e orientações para o campo da educação infantil.

É necessário reconhecer, contudo, que tanto o conceito de cidadania quanto o conceito de infância não remetem a uma só noção ou concepção

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referentes a cada um dos termos. É imperativo questionar quais são os significados que os termos cidadania e infância assumem em determinado contexto, pois pode ser que, além das diferentes concepções, haja, inclusive, uma falta de clareza na utilização deles. Há que saber, ainda, se, de fato, o termo cidadania pode ser associado à infância, sem que tal associação não esteja baseada em imprecisão ou ambigüidade quanto à utilização dos termos.

Pode-se identificar, em torno do debate teórico sobre a relação infância e cidadania, pelo menos três discursos baseados em perspectivas teóricas distintas: o primeiro advoga para as crianças o status da cidadania plena, admitindo que elas são capazes de exercer todos os seus direitos e deveres; o segundo assevera que as crianças não podem ser consideradas cidadãs, mas sujeitos de direitos, possuidoras de alguns direitos relacionados, prioritariamente, aos direitos fundamentais, tais como o direito à vida, à alimentação, à proteção, à educação, entre outros; e o terceiro considera que as crianças podem ser consideradas cidadãs plenas desde que haja uma reconceituação da cidadania, uma vez que na forma como atualmente é definido tal conceito, as crianças são excluídas do status da cidadania.

Como exemplo, tome-se o primeiro tipo de discurso para observar que a relação entre cidadania e infância pode ser problemática, caso se considere a concepção moderna de cidadania. Entendendo a cidadania como um status atribuído àqueles que são membros plenos de uma comunidade, na qual exercem seus direitos e deveres através da participação ativa nos espaços públicos de decisão (MARSHALL, 1967) - e o cidadão como aquele que tem a capacidade de criar, de agir, de atuar nesse espaço, “que é um espaço mediado pela palavra e pela ação” (BRAYNER, 2001, p. 10) -, não há como associar infância e cidadania. Ou seja, não há como se referir às crianças, especialmente as de zero a seis anos, como cidadãs, porque elas não apresentam ainda as condições necessárias ao exercício efetivo da cidadania.

O fato, contudo, é que, embora existam diferentes concepções de cidadania para esse conceito, o caráter crítico do conceito, aquilo que compete ao cidadão, enquanto sujeito que se posiciona perante o contexto social, não pode ser

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anulado. Nesse sentido, entende-se que essa relação não é possível a não ser que haja uma reconceituação da cidadania; de outra forma ela revela um paradoxo.

Esse paradoxo fica evidenciado quando se considera o outro lado da relação, ou seja, a infância. Falar em infância significa falar de uma maneira específica de olhar a criança como um “ser diferente do adulto”, dessa forma, as sociedades, em momentos diversos, tiveram olhares diferentes sobre esse tempo de ser criança. Neste trabalho, compreende-se, tal como Nascimento (2001, p. 11-12), que “a infância (e também as outras etapas da vida) não é única ao longo da história e nem tão pouco num mesmo tempo histórico. Ela é carregada de significados e valores simbólicos e não apenas um fato em si”. Nessa perspectiva, é possível falar em “infâncias e não em infância visto que são vários seus significados referidos a um determinado tempo histórico, a uma determinada classe social, a determinados grupos sociais” (NASCIMENTO, 2001, p. 13). É uma construção social (SARMENTO; PINTO, 1997; SIROTA, 2001, QVORTRUP, 1999).

Para Lett1 (apud NASCIMENTO, 2001, p. 13), “a noção de infância(s) reenvia-nos às primeiras etapas de vida do indivíduo, marcadas por um crescimento e um desenvolvimento que precede a maturidade. Esta infância se refere a um sujeito concreto, observado em um contexto familiar e social” (grifos meus).

A criança é, portanto, o sujeito concreto que materializa as infâncias. Nascimento (2001, p. 13) explica, no entanto, que “as infâncias são personificadas em seres reais (crianças), mas também imaginários na medida que são portadores de diversos significados e destinatários de diferentes ideologias e culturas”. Daí o caráter ambivalente do ser criança. As imagens construídas em torno da condição de ser criança são múltiplas como, por exemplo, a criança como portadora do

1

LETT, Didier. L´Enfants des miracles: enfance et société au Moyen Âge (XIIe e XIIIe siècle). Paris: Aubier, 1997. 396p.

(17)

pecado original, a criança imagem do menino Jesus, a criança ingênua, a criança má, a criança competente, a criança imatura, a criança dependente, a criança independente, a pobre, a rica, a que trabalha para sobreviver, entre tantas outras. A criança circunscrita no âmbito desta pesquisa será aquela que se encontra no período de vida denominado de tenra idade, do zero aos seis anos; período “no qual quanto mais próximo estiver do nascimento, mais o ser humano se caracteriza como dependente de outro, em geral do adulto, como condição para a sua sobrevivência e crescimento físico, intelectual, emocional e moral” (NASCIMENTO, 2001, p. 14).

Nesse sentido, entende-se que a criança de tenra idade possui como características fundamentais a dependência em relação ao adulto e a imaturidade. Desse modo, a natureza crítica da cidadania, que remete a um posicionamento crítico participativo no contexto social, não pode ser indistinta e integralmente referida à infância ou a criança.

Assim, a temática Cidadania e Infância, especialmente quando referida às crianças de tenra idade, suscita ao pesquisador inúmeras questões. Pode-se questionar, neste primeiro momento, que concepções de cidadania estão presentes nos documentos oficiais do MEC, quando esses discursos são dirigidos às crianças de zero a seis anos? Pode a criança de zero a seis anos ser cidadã? Como estão definidos os termos cidadania e infância no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil? Há contradições na associação dos termos cidadania e infância nesses discursos?

Nesse sentido, torna-se necessário refletir, por exemplo, se o que se apresenta nesses discursos é apenas uma transposição direta para as crianças de um conceito de cidadania formulado/pensado para adultos. E, ainda, questionar e problematizar se, por um lado, a noção adultocêntrica de cidadania pode ou não ser transposta para as crianças e, por outro, se esta é a melhor maneira de estabelecer a relação entre cidadania e infância.

Para além dos problemas inerentes à associação dos termos cidadania e infância, quando tal associação é feita por parte das estruturas do Estado (ao transformar, por meio de documentos oficiais, a relação cidadania e infância em

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objeto discursivo) um outro fenômeno, de natureza um pouco diferente - embora relacionado e que influencia fortemente o primeiro - se apresenta, qual seja, o fenômeno da institucionalização de conceitos (BRAYNER, 2001).

Existe um discurso público que incorpora implícita ou explicitamente concepções de cidadania que emergem de distintos atores sociais e instituições sob diferentes perspectivas e conotações. O fenômeno da institucionalização de conceitos como, por exemplo, o da cidadania é antigo, porém, parece ter se tornado uma característica central em momentos recentes. Tal fenômeno, que significa a incorporação de conceitos pelas estruturas de poder, parece estar caracterizado por um processo de ressignificação de termos, tendo em vista a sua adaptação em contextos diversos, acarretando, na maioria das vezes, uma subversão dos sentidos, conteúdos e força relativamente ao conceito original.

Assim, ao se abordar o fenômeno de como se dá essa relação entre cidadania e infância no discurso oficial, a reflexão sobre o processo de ressignificação de conceitos não pode estar ausente, pois a conotação que cada concepção assume pode ser influenciada pelo fenômeno da institucionalização.

Nesse sentido, faz-se necessário abordar algumas mudanças no interior das estruturas do Estado, bem como as redefinições do seu papel dentro da sociedade. Essa reflexão se justifica para que melhor se visualize o problema mencionado acima (a questão da institucionalização). Pretende-se, ainda, com esta reflexão problematizar a institucionalização do discurso da cidadania das crianças nesse cenário. Ao fazer isso, neste trabalho abordar-se-á, de modo especial, esta discussão no contexto brasileiro, salientando as implicações dessa mudança para a conceituação da cidadania.

Cabe esclarecer, ainda que brevemente, a compreensão que se tem acerca do termo Estado neste trabalho. Compreende-se, tal como Gandini (1992), que aquilo que se convencionou chamar de “Estado moderno” apresenta um longo desenvolvimento que não pode ser qualificado como linear, dado seu caráter diferenciado nos vários momentos históricos e nos vários países.

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Gandini explica, fundamentada em Weber2, que o “Estado moderno” se configura “por ser uma ordem jurídica e administrativa [...] que pretende validade frente a todos aqueles que nascem naquele território e sobre todas as ações executadas sobre o mesmo” (1992, p. 28). Embora o processo de construção e consolidação do Estado moderno tenha obedecido a etapas diferenciadas nos diversos contextos, Gandini aponta que há um consenso entre vários estudiosos na compreensão de que esse tipo de Estado apresenta uma estrutura constituída por “uma elite política, pela burocracia, civil e militar, que impõe as leis e arrecada impostos sobre um determinado território” (GANDINI, 1992, p. 28). É, portanto, no interior desse Estado, desta estrutura, que se localiza o problema proposto nesta pesquisa, expresso na sua relação com a sociedade.

Abordar a questão do Estado na sociedade contemporânea significa discutir o neoliberalismo, porque este se apresenta, segundo Bedin (2002), como uma tentativa de ruptura no processo de evolução da cidadania (dos direitos da cidadania) e se apresenta como uma ideologia que perpassa toda a reestruturação do Estado nacional a partir dos anos 1970. O que significa que no cenário do Estado brasileiro, que propõe a institucionalização de um discurso de cidadania das crianças, é possível perceber influências da ideologia neoliberal.

O neoliberalismo é, de acordo com Bedin (2002), um movimento econômico que emergiu com a crise dos anos 1970, consolidou-se nos anos 1980 e se constitui em modelo único para a maioria dos Estados nacionais na atualidade. Como fenômeno distinto do liberalismo clássico do século XIX, surge no período pós II Guerra Mundial e tem como texto de origem o livro de Friedrich von Hayek3, O Caminho da Servidão, escrito em 1944.

2

WEBER, Max. Economia e Sociedad. Trad. José Medina Echavarria e outros. México: Fondo de Cultura Económica, 1980.

3

Friedrich von Hayek (1899-1992), economista austríaco, nasceu e estudou em Viena e ensinou em Londres e Chicago. Hayek desenvolveu a Teoria da Desigualdade Produtiva, segundo a qual não haveria nada mais improdutivo do que a igualdade. Em sua obra mais popular O Caminho da Servidão, 1944 (The Road to Serfdom, 1944) propôs um individualismo econômico de um extremo laissez-faire, aliado à crença política de que qualquer coisa que tenha a natureza da ação do Estado ou da ação coletiva destrói a liberdade e prepara o caminho para o totalitarismo. Exerceu enorme influência na direita econômica e política da Grã-Bretanha dos anos 1980. BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Tradução: Desidério Murcho et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

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Bedin (2002) comenta que esta obra, apesar de ter surgido como um posicionamento individual, aos poucos foi sendo socializada e, na década de 1970, diante da crise fiscal do Estado nacional, passa a ser fonte de inspiração e de sustentação da retórica: “menos Estado, mais mercado”.

Anderson (1995) enfatiza que as idéias apresentadas por Hayek, nesse livro, constituem-se numa reação contra o Estado intervencionista e de bem-estar social. São idéias com o propósito de combater o keynesianismo (pleno emprego, rede de serviços sociais, desenvolvimento baseado no investimento do Estado etc.) e o solidarismo e, ao mesmo tempo, construir novas bases para o capitalismo.

As idéias consistem basicamente, de acordo com Anderson (1995), em manter um Estado forte, na sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, e fraco, nos gastos sociais e nas intervenções econômicas. Nesse cenário, a meta maior dos governos era a estabilidade monetária que seria alcançada através de medidas como disciplina orçamentária, contenção dos gastos com bem-estar, restauração da taxa de desemprego e reformas fiscais, que teriam como finalidade o estabelecimento da nova desigualdade, a qual seria responsável pela dinamização das economias avançadas.

O neoliberalismo tem como ponto de partida os países de capitalismo avançado, na Europa, na América do Norte, além da Austrália e Nova Zelândia, assumindo diversas versões: da mais cautelosa a mais radical. Em 1991, instaura-se nova criinstaura-se do capitalismo avançado e, apesar da criinstaura-se, o neoliberalismo ganha mais força, e retoma a centralidade das decisões políticas. Conforme Anderson (1995), isso se explica pela vitória do neoliberalismo nos países do leste europeu onde, após a queda do comunismo, as reformas implementadas seguiram os preceitos neoliberais de forma mais drástica que nos países do Ocidente.

Depois dos países do leste europeu, a América Latina se converte no terceiro cenário para implementação do neoliberalismo. Apesar de ter tido experiências pioneiras4 do neoliberalismo, antes mesmo da Inglaterra de Tatcher,

4

Veja-se o caso do Chile de Augusto Pinochet e o da Bolívia de Hugo Banzer. ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In SADER, Emir; GENTILI, Pablo. (Org.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado Democrático. São Paulo: Paz e Terra, 1995. p. 9-23.

(21)

a América Latina, no seu conjunto, experimenta a virada em direção ao neoliberalismo a partir do final dos anos 1980 e início dos anos 1990.

Marrach (2002) afirma que, enquanto o liberalismo clássico teve como principal foco os direitos do homem e do cidadão, entre eles o direito à educação, o neoliberalismo enfatiza os direitos do consumidor além de contestar a participação do Estado no amparo aos direitos sociais. Nesse sentido, a autora acrescenta que o neoliberalismo representa uma regressão do campo social e político, que significa uma grande crise do senso social e da solidariedade no mundo. Para a autora, o neoliberalismo “é uma ideologia neoconservadora social e politicamente” (MARRACH, 2002, p. 43).

No Brasil, a implementação de políticas neoliberais assume o caráter de conciliação que, de acordo com Marrach, se define como uma

estratégia política conservadora, que assume uma face progressista, isto é, a de estar com a história, no caso com o processo de globalização e a inserção do Brasil na ‘nova ordem mundial’, e que, ao mesmo tempo, reage à atuação do Estado na política social (2002, p. 45).

Nesse sentido, a educação, como uma política social, é diretamente afetada por essa nova orientação política e econômica. Para a autora, a educação, no discurso neoliberal, deixa de pertencer ao campo social e político para pertencer ao campo econômico e, assim, funcionar à semelhança do mercado (MARRACH, 2002).

De fato, Sarmento (2001, p. 54-55), ao analisar aspectos da evolução das políticas educativas sob a influência do neoliberalismo, aponta características que são freqüentes, “nomeadamente as que insistem na deslocação do centro da agenda política educativa do eixo da inclusão e igualdade social das crianças e jovens para objectivos associados à competitividade e à eficácia dos resultados”.

Nessa perspectiva, Marrach (2002) enfatiza que o discurso neoliberal confere à educação um papel estratégico, ao mesmo tempo em que lhe atribui três objetivos fundamentais, quais sejam:

(22)

[o primeiro], atrelar a educação escolar à preparação para o trabalho e a pesquisa acadêmica ao imperativo do mercado ou às necessidades da livre iniciativa; [...] [o segundo], tornar a escola

um meio de transmissão dos seus princípios doutrinários; [...] [o

terceiro], fazer da escola um mercado para os produtos da indústria cultural e da informática [...] (2002, p. 46, grifos meus).

Sarmento (2001, p. 55) aponta que, conforme tem sido afirmado em muitas pesquisas,

a inculcação da lógica do mercado em educação caracteriza-se, entre outros aspectos, pela inclusão no espaço público educativo de mecanismos indutores de uma forte competitividade entre alunos, cursos e escolas, tomando por instrumento e dispositivo privilegiado formas de avaliação das aprendizagens e das instituições promotora de rankings, ao mesmo tempo que se adoptam modalidades de gestão assentes em critérios de referência que visam favorecer os melhores resultados para alguns, com ocultação das finalidades políticas da acção educativa e com efetiva condenação às fileiras da exclusão ou das ‘segundas oportunidades’ de uma maioria de alunos das classes populares e das minorias étnicas.

Para além disso, Sarmento (2002, p. 7) argumenta que, nesse cenário de influências neoliberais, os conceitos que emergem das políticas educativas

[...] ganham conteúdos semânticos diversos e pluralizados, podendo (crescentemente) ‘cidadania’ significar ‘disciplinação social’ e ‘autonomia’ subordinação aos programas periciais das ciências legitimadoras dos novos modos de administração simbólica.

É interessante observar que é nesse cenário que emergem discursos acerca de uma cidadania das crianças. Parece contraditório que mesmo sob a influência da ideologia neoliberal, com todas as suas implicações para a área das políticas sociais, esteja-se proclamando um discurso sobre a criança cidadã.

Esses discursos podem, utilizando-se da definição proposta por Marrach (2002), assumir características de “conciliação”, isto é, se configurar como uma estratégia política conservadora que se apropria de dispositivos argumentativos progressistas (como a reivindicação por cidadania) com o objetivo de mascarar

(23)

realidades sociais diversas, deslocando o sentido de ação da esfera das estruturas de poder para a esfera individual. Como enfatiza Sarmento (2001, p. 59),

o efeito ideológico de rompimento das relações entre desempenho social e condições estruturais favorece a emergência de concepções que operam o deslocamento semântico de determinadas expressões relativas à acção social para as considerar exclusivamente numa dimensão individual.

A educação infantil, compreendida como um subsetor das políticas educacionais e de assistência aos trabalhadores, portanto integrante das políticas sociais, as quais se caracterizam como uma intervenção do poder público para atendimento das demandas dos diversos segmentos da sociedade (ROSEMBERG, 2002), se insere nesse cenário mais amplo de redefinição do espaço público, onde as opções fundamentais se baseiam no modo de relacionamento entre Estado, economia e estrutura social e expressam concepções e escolhas por ideologias e interesses. Desse modo, “as concepções da infância dominantes no momento da decisão política influenciam decisivamente os programas de política educativa [...]” (SARMENTO, 2001, p. 54).

É assim que a questão proposta para essa pesquisa ganha contornos mais complexos. Como incluir as crianças no status de cidadania se, por um lado, o próprio conceito exclui esse grupo social (MARSHALL, 1967) e, por outro, as influências da ideologia neoliberal conduzem ao enfraquecimento de aspectos essenciais ao exercício pleno da cidadania como, por exemplo, a redução dos espaços públicos de participação dos cidadãos (BRAYNER, 2001).

O conceito de cidadania, que tem o seu cerne associado à ação/participação ativa do indivíduo, ao que parece, está sendo “esvaziado” de seu conteúdo mais crítico, e, nas sociedades contemporâneas, parece ter se transformado em “estatuto” formal. Expropriado de seu caráter mais crítico, o conceito de cidadania é utilizado em desarticulação com seus nexos mais profundos com a realidade social e com a história, num processo de autonomização em relação aos diversos níveis de organização da sociedade, sejam eles econômicos, políticos, sociais ou culturais. Somente assim, então,

(24)

seria possível associar cidadania à infância, o que demonstra, mais uma vez, a pertinência da reflexão sobre o fenômeno de institucionalização neste trabalho.

É nessa perspectiva que Brayner (2001) identifica o processo ao qual denomina de “institucionalização discursiva da cidadania”. O autor, ao fazer uma reflexão sobre como a relação cidadania e educação está presente nos diversos discursos políticos e/ou educacionais brasileiros, alerta para o fato de que o discurso da cidadania deixou mesmo de ser “algo marginal e periférico, clamado e exigido por uma população completamente afastada dos benefícios políticos e sociais de uma sociedade moderna, para se tornar um discurso institucional” (BRAYNER, 2001, p. 1, grifos meus).

A institucionalização discursiva só é possível, de acordo com esse autor, porque se constata - é importante mencionar - que existe, atualmente, entre cidadania e educação, uma “relação insegura e imprecisa”. Não é sem razão que o autor argumenta, ainda, que à freqüência com que a relação é pronunciada corresponde a usura do seu valor subversivo, do seu poder e força de persuasão.

Dessa maneira, há que se questionar, neste segundo momento, se, em relação ao conceito de cidadania associado à infância, no âmbito da educação infantil, existe uma institucionalização discursiva que retira desse conceito seu caráter crítico.

Aliás, semelhante ao conceito de cidadania, o conceito de infância foi - e ainda é - alvo de um processo de ressignificação, o que permite afirmar que as concepções em torno do conceito de infância são, do mesmo modo, apropriadas e utilizadas com objetivos e propósitos diversos.

Diante do exposto até aqui, propõe-se nesta pesquisa identificar e analisar as concepções de infância e cidadania, assim como a relação estabelecida entre elas, no discurso presente nos documentos oficiais do MEC. Nessa perspectiva, neste trabalho, direciona-se o foco para a análise do discurso sobre a cidadania das crianças nos documentos oficiais, tomando-se como fonte primária o documento Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCN/Infantil).

O RCN/Infantil é um documento publicado pelo Ministério da Educação (MEC), em 1998, durante o primeiro mandato do Presidente Fernando Henrique

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Cardoso (1995-1998). Durante esse período, foram eleitos, para a área da educação, três eixos de atuação: descentralização, mudanças nos componentes curriculares e avaliação (informação verbal)5. De acordo com a Profa. Maria Helena Guimarães de Castro a formação da agenda do MEC foi influenciada pelo contexto internacional de ênfase na educação gerado pela Conferência de Jomtien (1990) e pela presença das organizações multilaterais como o Banco Mundial.

Assim, o RCN/Infantil faz parte de um conjunto de ações empreendidas pelo MEC no contexto de reformas educacionais propostas no período mencionado. É um documento pensado e elaborado para a área da educação infantil com a finalidade de atender a sua especificidade. Nesse sentido, trabalha conceitos considerados fundamentais para a delimitação da identidade desse nível de ensino como, por exemplo, conceitos de cuidar, educar, brincar, criança etc. e, nesse aspecto, pode ser considerado um avanço.

O RCN/Infantil foi encaminhado aos municípios brasileiros com o propósito de subsidiar o trabalho dos professores de educação infantil a ser desenvolvido com crianças de zero a seis anos em instituições educativas (creches e pré-escolas). No RCN/Infantil consta a informação de que o MEC colocou à disposição de cada um desses profissionais um exemplar do documento, conforme se pode constatar a seguir:

para garantir o acesso e o bom aproveitamento deste material, o MEC coloca à disposição de cada profissional de educação infantil seu próprio exemplar, para que possa utilizá-lo como instrumento de trabalho cotidiano, consultá-lo, fazer anotações e discuti-lo com seus parceiros e/ou com os familiares das crianças usuárias das instituições.

De acordo com informações contidas na mensagem encaminhada ao Congresso Nacional, em 2000, o MEC distribuiu 527.050 conjuntos do RCN/Infantil (BRASIL, 2000). O Censo da Educação Infantil, realizado pelo

5

Informação fornecida pela Profa. Dra. Maria Helena Guimarães de Castro durante palestra intitulada “Políticas Públicas e Reformas”, proferida no Seminário Desafios do Magistério, organizado pelo LAPPLANE/Faculdade de Educação, em 15/06/2005, no Centro de Convenções da UNICAMP, Campinas, São Paulo.

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MEC/INEP em 2000, revela que cerca de 77% das instituições de educação infantil no Brasil (total de 92.526 instituições) utilizaram o Referencial em atividades desenvolvidas nessas instituições (BRASIL, 2000). A observação desses dados revela que o RCN/Infantil teve grande aceitação junto aos profissionais de educação infantil.

O RCN/Infantil é um documento extenso que contém 457 páginas e é composto por três volumes. O primeiro se refere à introdução e dois remetem aos âmbitos de experiência definidos pelo Referencial. O Volume 1, Introdução, contém 103 páginas e aborda os seguintes conceitos: criança, educar, cuidar e brincar. Tal documento inclui, ainda, considerações sobre o perfil do professor de educação infantil, a instituição e o projeto educativo, objetivos gerais da educação infantil e informações sobre a organização do Referencial.

O Volume 2 abrange o âmbito de experiência Formação Pessoal e Social e contém 85 páginas. Esse volume apresenta o eixo de trabalho Identidade e autonomia. Nesse volume, registra-se a preocupação com o processo de construção da identidade, processos de socialização e desenvolvimento da autonomia da criança, ao mesmo tempo em que enfoca questões vinculadas à expressão da sexualidade, construção de vínculos e processos de fusão e diferenciação. O documento abrange objetivos e conteúdos para o trabalho com esse âmbito de experiência. Além disso, inclui a questão da aprendizagem, no que concerne aos aspectos relativos à imitação, ao brincar e à linguagem. Apresenta também orientações gerais para o professor para o trabalho com esse âmbito, enfatizando jogos e brincadeiras, organização do espaço e tempo e questões relativas à avaliação.

O Volume 3 se refere ao âmbito de experiência Conhecimento de Mundo e contém 269 páginas, referente à construção das diferentes linguagens pelas crianças. Apresenta os eixos de trabalho movimento, artes visuais, música, linguagem oral e escrita, natureza e sociedade e matemática, apontando para cada um os objetivos, conteúdos e orientações gerais para o professor na educação infantil.

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Alguns motivos orientaram a escolha desse documento, o qual não possui caráter mandatório6. Primeiro, ele é um documento que faz parte do conjunto de políticas públicas para a educação infantil do Ministério da Educação e exprime concepções, opções, valores e interesses; segundo, porque, como documento oficial, contou com a estrutura do Ministério da Educação para sua divulgação, o que garantiu um amplo espectro de abrangência, atingindo centenas de milhares de pessoas que trabalham com a educação infantil. Em decorrência disso, esse documento teve grande poder de disseminação das idéias ali explicitadas junto aos profissionais da educação infantil.

Além do RCN/Infantil, consultou-se também a legislação referente à educação e outros documentos oficiais produzidos pelo MEC relacionados à educação infantil. Buscou-se, ainda, em alguns autores o aporte teórico necessário ao estudo pretendido. Nesse sentido, pode-se apontar a bibliografia7 consultada acerca da temática estudada que inclui: a) bibliografia referente à História8 e Sociologia da Infância9, especialmente, Philippe Ariès, Neil Postman,

6

O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCN/Infantil) é um documento oficial, porém não se constitui como um documento normativo. É um documento cuja função é auxiliar na execução das propostas pedagógicas no âmbito das instituições de educação infantil. Nesse aspecto, ele difere das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Resolução CNE/CEB n. 1/1999) que possui caráter mandatório para os sistemas educacionais.

7

Duas observações são necessárias acerca da bibliografia consultada e referenciada nesta dissertação. A primeira se refere aos autores portugueses. Optou-se, nesse caso, por manter a ortografia original dos trabalhos citados. O segundo se refere às obras em língua estrangeira. Nesse caso, as obras citadas têm tradução livre, de responsabilidade da autora desta dissertação.

8

Sobre a História da Infância, consultar, entre outras, as contribuições dos autores Philippe Ariès (1981), Lloyde De Mause (1982), Manuel Sarmento; Manuel Pinto (1997), Egle Becchi e Dominique Julia (1998), Mary Del Priore (1999).

9

Règine Sirota e Cléopâtre Montandon realizaram um “balanço da produção” em língua francesa e inglesa sobre a infância na área da Sociologia, publicado em 1998 no n. 2 da revista Éducation et Societés. Esse trabalho procurou contemplar a evolução do objeto infância e das perspectivas de análise, num quadro mais amplo de emergência de um novo campo de estudos: Sociologia da infância. A Sociologia da Infância propõe que a infância e a criança sejam objetos centrais nas pesquisas, concebendo a infância não mais como um “objeto passivo de uma socialização regida por instituições” (SIROTA, 2001, p. 9), mas como uma “construção social, dependente ao mesmo tempo do contexto social e do discurso intelectual” (SIROTA, 2001, p. 10). De acordo com Sarmento (2004, p. 1), “a constituição e legitimação do campo científico da Sociologia da Infância está em curso em todo o mundo, desde há pouco mais de uma década. O desenvolvimento recente deste campo de estudos acompanha os progressos verificados no plano internacional, onde a Sociologia da Infância foi reconhecida como o mais recente Comitê de Pesquisa da ISA (Associação Internacional da Sociologia) e um dos últimos grupos de trabalho a ser criado no interior da AISLF (Associação Internacional de Sociólogos de Língua Francesa)”. Sobre a Sociologia da Infância, consultar, entre outros, os trabalhos de Allison James e Alan Prout (1998), Willian Corsaro (1997), Chris Jenks (1996), Jens Qvortrup (2000), Manuel Sarmento (1997, 2003,

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Manuel Sarmento, David Archard, Maria Evelyna Pompeu do Nascimento, Règine Sirota; b) bibliografia referente à cidadania e direitos humanos, principalmente, Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau e Thomas H. Marshall; c) bibliografia referente à educação infantil no Brasil, tais como Maria Malta Campos, Sonia Kramer e Fúlvia Rosemberg; e d) convenções e declarações internacionais.

Em conformidade com o objetivo central desta pesquisa, recorre-se a análise documental como forma de coleta das informações necessárias ao estudo pretendido. De acordo com Thiollent (1980, p. 32), a análise de documentos consiste em um questionamento indireto “que visa a captar uma informação que circula nos canais dos meios de comunicação ou que é estocada em arquivos”.

A análise documental se constitui ainda, conforme Lüdke e André (1986, p. 38), “numa técnica valiosa de abordagem de dados qualitativos, seja complementando as informações obtidas por outras técnicas, seja desvelando aspectos novos de um tema ou problema”.

Assim, os procedimentos para análise do documento RCN/Infantil em busca das respostas às questões colocadas nesta pesquisa foram três. Primeiro realizou-se uma leitura panorâmica do documento para um reconhecimento geral de sua estrutura e conteúdo. A partir dessa leitura, num segundo momento, realizou-se, em função dos objetivos da pesquisa, uma primeira categorização. Foram escolhidas duas categorias de análise: Cidadania e Infância. Sob esses dois títulos conceituais foram agrupados os elementos, idéias, expressões ou proposições significativas referidas aos termos infância e cidadania presentes no texto do RCN/Infantil. As referências diretas aos termos, presentes no texto, não são abundantes. O termo infância é referido sete vezes. Já o termo cidadania é

2004, 2005), Cléopâtre Montandon (2001) e Régine Sirota (2001). Fontes: SIROTA, Règine. Emergência de uma Sociologia da Infância: evolução do objeto e do olhar. Cadernos de Pesquisa, n. 112, p. 7-31, março/2001. MONTANDON, Cléopâtre. Sociologia da Infância: balanço dos trabalhos em língua inglesa. Cadernos de Pesquisa, n. 112, p. 33-60, março/2001. SARMENTO, Manuel Jacinto. Geração e Alteridade: interrogações a partir da Sociologia da Infância. 2004. Disponível em: http://old.iec.uminho.pt/cedic/textostrabalho.htm Acesso em: dez. 2004.

(29)

referido quatro vezes. Todavia, o quadro de análise (Apêndice A) não foi construído a partir apenas das referências diretas, mas baseado em referências indiretas aos termos.

No terceiro momento, de posse de um quadro com as referências mais significativas retiradas do texto do documento analisado, procedeu-se a uma leitura dessas proposições. A partir dessa leitura, as proposições foram agrupadas novamente com a finalidade de organizar as mensagens segundo as relações que mantinham entre si.

Finalmente, com esse quadro mais amplo foi possível fazer aproximações, inferências e relações, buscando identificar, através de elementos relevantes e referências aos termos infância e cidadania, as concepções e as relações trabalhadas no texto do documento RCN/Infantil e proceder à análise propriamente dita.

Através da revisão da literatura realizada e dos autores mencionados, fez-se a análifez-se das informações prefez-sentes no Referencial para, dessa maneira, construir um quadro teórico de referência que permita contribuir para uma reflexão crítica sobre a relação cidadania e infância no campo educacional brasileiro.

O quadro final (Apêndice A) apresenta as seguintes categorias e itens de análise:

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QUADRO 1

Categorias e itens de análise da pesquisa

Categorias de Análise

Infância – interessam os discursos ou situações comunicativas (elementos, idéias, expressões ou proposições) dirigidas ao que se entende por infância e ao que se entende por criança.

Cidadania – interessam os discursos ou situações comunicativas (elementos, idéias, expressões ou proposições) relativas à cidadania, que exprimam direta ou indiretamente, atitudes, posicionamentos ou valores acerca da cidadania. Itens de análise • Natureza infantil • Criança • Brincadeiras e jogos • Protagonismo infantil • Cultura infantil • Educação infantil • Desenvolvimento infantil • Direitos de cidadania • Independência e autonomia • Racionalidade • Desempenho individual x desempenho social

Considerando o exposto até aqui, apresenta-se a seguir a estruturação desta dissertação.

No Capítulo 1 - Infância e Cidadania: conceitos e concepções - apresenta-se inicialmente, com baapresenta-se na revisão bibliográfica sobre a temática, uma contextualização teórica dos conceitos de cidadania e de infância. Pretende-se com esta parte do capítulo resgatar alguns elementos teóricos relevantes para a compreensão dos conceitos, sem a intenção, no entanto, de apresentar elementos novos ou esgotar as discussões em torno desses conceitos. Ressalta-se que ambos têm uma longa trajetória histórica, que não pode ser caracterizada como um processo linear, visto que são conceitos dinâmicos e contextualizados, ou seja, variam conforme o momento histórico, sofrendo influências dos elementos econômicos, sociais, políticos, culturais desses contextos. Na discussão em torno desses conceitos, interessa traçar um quadro mais amplo no qual o problema apontado nesta dissertação possa ser visualizado. Em seguida, com base nesse quadro teórico, estabelece-se a base para o debate em torno da relação entre cidadania e infância, apresentando as principais perspectivas dessa discussão.

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No capítulo 2 – O movimento pelos direitos da criança e os discursos oficiais sobre a infância no Brasil no século XX - faz-se uma discussão acerca do movimento pelos direitos da criança, ressaltando as concepções sobre infância e criança que foram emergindo, ao mesmo tempo evidenciando as influências desse processo para os discursos oficiais sobre a infância no Brasil. Inicialmente, considera-se o cenário internacional no qual surge o movimento e seus principais desenvolvimentos. Em seguida, percorre-se a trajetória desse movimento no cenário brasileiro, evidenciando a legislação e os documentos oficiais elaborados ao longo do século XX para, de certa maneira, responder aos anseios desse movimento no país. Dentro deste cenário destaca-se a trajetória da educação infantil na legislação brasileira: do silêncio ao reconhecimento da educação infantil como um direito da criança de zero a seis anos de idade. Finalmente, evidencia-se o cenário no qual é elaborado o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCN/Infantil), documento analisado nesta dissertação, explicitando aspectos de seu conteúdo e dos processos de elaboração e implementação desse documento.

No Capítulo 3 – O discurso oficial sobre a cidadania infantil no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil - identifica-se inicialmente no documento as abordagens aos termos infância e cidadania, assim como as possíveis relações estabelecidas entre eles, a partir de passagens significativas extraídas do texto do RCN/Infantil. Em seguida, apresenta-se a análise das concepções de cidadania e infância e da relação explicitada no documento à luz do eixo teórico delineado nos capítulos anteriores deste trabalho.

Finalmente, na Conclusão, tendo como horizonte o objetivo estabelecido para esta pesquisa, tecem-se comentários, interpretações e considerações fundamentadas no referencial teórico elaborado nesta dissertação.

A discussão em torno da temática infância e cidadania não é, de forma alguma, uma discussão nova, principalmente no âmbito internacional. No Brasil, porém, parece não haver interesse em discutir a coerência e pertinência da questão. Aceita-se de forma pouco crítica uma associação que tem gerado muitas e diversas polêmicas, sobretudo no meio acadêmico.

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Assim, espera-se com este trabalho de pesquisa contribuir para o debate em torno da relação entre infância e cidadania, apontando elementos importantes para evidenciar os limites e as possibilidades de tal relação. Considerando, ainda, que não se trata de resolver o paradoxo aqui evidenciado, o trabalho procura explicitar as várias perspectivas que fundamentam os discursos acerca de uma noção de cidadania infantil, a fim de possibilitar um debate mais coerente e consciente das implicações de uma tal proposição.

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CAPÍTULO 1

INFÂNCIA E CIDADANIA: CONCEITOS E CONCEPÇÕES

[...] uma cidadania da infância [...] exige que se repense o próprio conceito de cidadania, uma vez que as fórmulas tradicionais, os princípios clássicos que apoiavam os velhos conceitos de cidadão e cidadania perdem cada vez mais legitimidade e acuidade.

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Neste capítulo, com base na revisão da literatura sobre a temática, efetua-se um panorama do deefetua-senvolvimento dos conceitos de cidadania e de infância ao longo da história. Os conceitos de cidadania e de infância constituem-se, assim, conceitos-chave para a compreensão da temática proposta nesta pesquisa, qual seja: Infância e Cidadania.

Pretende-se, inicialmente, resgatar um pouco da história relativa a esses conceitos sem a intenção, no entanto, de apresentar elementos novos ou esgotar as discussões em torno deles em tão poucas páginas. Reconhece-se que esses conceitos têm uma longa trajetória histórica, caracterizada por um desenvolvimento não linear, apresentando um movimento constante de fortalecimento e enfraquecimento, visto que são conceitos dinâmicos e contextualizados, ou seja, variam de acordo com o momento histórico, sofrendo influências de vários elementos desses contextos (econômicos, sociais, políticos, culturais etc.).

Nessa discussão, interessa traçar um quadro mais amplo no qual o problema apontado nesta dissertação possa ser visualizado. Em seguida, com base nesse quadro teórico mais amplo, procura-se estabelecer as bases para um debate em torno das relações entre cidadania e infância.

A abordagem do conceito de infância é feita a partir dos campos teóricos da Sociologia da Infância, especialmente os trabalhos de Manuel Sarmento e Régine Sirota e da História da Infância, com o trabalho de Philippe Ariès, buscando contribuições desses campos para a Educação Infantil (Maria Evelyna Pompeu do Nascimento, Maria Malta Campos, Sonia Kramer, Fúlvia Rosemberg).

O conceito de cidadania é abordado com base, especialmente, nas contribuições de teóricos da Filosofia Política, uma vez que a tradição de análise desse conceito radica nesse campo, no qual destacam-se, neste trabalho, as contribuições dos teóricos Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Além desses autores, busca-se, ainda, aporte teórico na Sociologia através da obra de Thomas Humphrey Marshall e na História, principalmente através da obra organizada por Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky.

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Busca-se, através das contribuições desses autores, compor um quadro, resgatando os principais elementos de cada um dos conceitos, tendo como horizonte a análise das relações entre infância e cidadania formuladas nos discursos oficiais. Ressalta-se, portanto, que a bibliografia consultada e referenciada não tem a pretensão de esgotar os estudos sobre os conceitos trabalhados, mas antes recuperar os elementos mais significativos para o estudo da temática proposta nesta pesquisa.

1.1 Cidadania: um conceito complexo e dinâmico

Nos últimos anos no Brasil, não têm sido poucos os discursos em torno da cidadania, em especial, sobre sua construção ou seu exercício. Nota-se ainda que nesses discursos não são poucos também os significados atribuídos a cidadania ou ao seu exercício.

Diante disso, é natural que apareçam questionamentos acerca do que significa o termo cidadania ou ainda o que é ser um cidadão. Refletir sobre a cidadania é, para além de apreender os diversos significados que o termo pode admitir, compreender o significado do conceito em seus elementos mais importantes. É nesse sentido que a reflexão em torno desse conceito se faz necessária, tornando-se fundamental para avaliar se as relações são coerentes e conseqüentes, e ainda para visualizar as implicações e o alcance daquilo que se fala.

Assim, compreender o que se entende por cidadania e, consequentemente, o que é ser um cidadão, se constitui em objetivo no texto a seguir. Na verdade, essas têm sido questões freqüentes na história das sociedades ocidentais (DAL RI JÚNIOR, 2002). De acordo com Gallo “a cidadania não é um conceito unívoco; sua conceituação é histórica e depende estritamente da percepção do momento histórico em que ela é forjada” (2004, p. 136).

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Nesse sentido, ao longo de toda a história esse conceito assumiu significados ou concepções diferentes em função das diversas situações e dos determinantes econômicos, sociais, culturais, políticos entre outros. E, nesses vários momentos da história, foram sendo agregados novos elementos ao conceito, procedendo-se a sua reconceituação. Em conseqüência, não tem o mesmo significado falar em cidadania na pólis grega ou na civitas romana, ou na França da época da Revolução Francesa ou ainda no Brasil desse início do século XXI (GALLO, 2004).

Assim, embora não se trate de uma classificação rigorosa e absoluta, é possível identificar pelo menos quatro noções distintas de cidadania: (1) antiga; (2) medieval; (3) moderna ou liberal; e (4) contemporânea.

A noção antiga de cidadania está intimamente associada à participação ativa do indivíduo na comunidade política, bem como a direitos e obrigações dos cidadãos para com essa comunidade. Na sociedade medieval, essa participação é relegada a um segundo plano, prevalecendo antes os deveres e obrigações dos súditos para com suas comunidades do que os direitos do cidadão. Nas sociedades modernas, retoma-se o ideal de participação dos cidadãos na vida política da sociedade como elemento essencial da cidadania e definem-se os direitos e deveres dos cidadãos fundados na liberdade e igualdade considerados direitos fundamentais dos homens. Nas sociedades contemporâneas prevalece a noção de cidadania como participação do cidadão na sociedade, a titularidade de direitos e deveres e acrescenta-se a fruição ou gozo efetivo desses direitos e deveres pelos cidadãos.

1.1.1 Concepções de cidadania

De acordo com Barbalet (1989, p. 11), “a cidadania é tão velha como as comunidades humanas sedentárias. Define os que são e os que não são membros

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de uma sociedade comum. A cidadania é manifestamente uma questão política [...]”.

Na pólis grega, para Aristóteles1, a cidadania podia ser definida como uma relação de pertença e de participação ativa nos assuntos da comunidade. De acordo com Aristóteles, o cidadão era aquele que podia “exercer seu direito de administrar a justiça e exercer funções públicas” (ARISTÓTELES, LIVRO III, CAP. I).

Nesse contexto a cidadania está associada à participação ativa do indivíduo na vida pública, condição que o torna cidadão. Assim, na pólis grega, a cidadania era o status2 atribuído ao grupo dirigente da cidade-estado. Dessa forma, o cidadão era aquele que se ocupava das questões da comunidade exercendo atividades públicas e tornando-se responsável por decisões concernentes à vida em sociedade. Essa participação ativa nas questões da comunidade política definia as obrigações e dispunha os direitos de cada cidadão.

A participação ativa do indivíduo na vida pública da comunidade se constituía, assim, em condição para definir quem tinha o status de cidadania, quem era o cidadão.

Acerca dessa questão, Quirino e Montes explicam que o cidadão, na pólis grega, é

aquele que já atingiu a maturidade e a quem os deuses beneficiaram, fazendo-o nascer homem e não mulher, grego e não bárbaro, [...] ter nascido livre e não escravo, podendo assim gozar de uma vida de ócio, capaz de permitir-lhe desenvolver as próprias faculdades intelectuais para, através de sua participação na vida pública, realizar sua verdadeira natureza enquanto homem. Não basta, pois, ter nascido no território da cidade ou nele viver. Aquele cuja vida o faz ocupar-se apenas dos próprios afazeres [...], como o escravo ou o negociante, a mulher ou a criança, consumidos no próprio interesse particular, no cuidado de si mesmos, não passam de indivíduos privados [...] incapazes de ter qualquer participação

1

Aristóteles (384-322 a.C.), juntamente com Platão, é o filósofo mais influente na tradição filosófica ocidental. Aristóteles nasceu em Estagira, na Macedônia. Algumas de suas principais obras são: Ética a Nicômaco, Política, Retórica e a Poética e Metafísica. Fonte: BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Tradução: Desidério Murcho et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

2

Status é uma palavra de origem latina utilizada para indicar “posição” ou “categoria” dentro de um determinado contexto. Fonte: Barbalet, J. M. Cidadania. Editorial Estampa, Lda.: Lisboa, 1989.

(38)

na vida pública, sendo assim excluídos da cidadania (1987, p. 16).

De fato, na concepção de Aristóteles (LIVRO III, CAP. I), a cidadania

não resulta do fato de alguém ter o domicílio em certo lugar, pois os estrangeiros residentes e os escravos também são domiciliados naquele lugar, nem são cidadãos todos aqueles que participam de um mesmo sistema judiciário, assecuratório do direito de defender-se em uma ação e de levar alguém aos tribunais (...); estes são cidadãos somente no sentido em que aplicamos o termo a crianças ainda muito novas para serem arroladas como cidadãos e aos anciãos já isentos dos deveres cívicos, pois não os chamamos cidadãos de maneira absoluta (...).

Portanto, conforme visto acima, a cidadania não era um status concedido a todos os indivíduos indistintamente. Acerca dessa idéia de “exclusão” da cidadania na pólis grega, Guarinello (2003, p. 35) esclarece que

pertencer à comunidade da cidade-estado não era, portanto, algo de pouca monta, mas um privilégio guardado com zelo, cuidadosamente vigiado por meio de registros escritos e conferido com rigor. [...] Não podemos, no entanto, entender a formação dessas comunidades apenas como um processo de inclusão, já que o fechamento da cidade-estado implicava, necessariamente, a definição do outro e sua exclusão. E o outro não era apenas o estrangeiro, mas muitos dos habitantes do próprio território das cidades-estado. Eles participavam da sociedade com seu trabalho e recursos, mas não se integravam ao conjunto dos cidadãos.

A cidadania era, portanto, um status atribuído a alguns membros da comunidade. Eram cidadãos os homens adultos, livres, proprietários, nascidos na cidade e dedicado aos assuntos coletivos; as mulheres, as crianças, os negociantes, os escravos e os estrangeiros eram excluídos dessa categoria.

As crianças, como se observa nas citações acima, não eram consideradas como cidadãos plenos. De acordo com Aristóteles (LIVRO III, CAP. III), as crianças assumiam, dentro da comunidade, uma condição de “cidadãos presuntivos”, conforme se explicita na citação a seguir:

é verdade que nem todas as pessoas indispensáveis à existência de uma cidade devem ser contadas entre os cidadãos, porquanto

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os próprios filhos dos cidadãos não são cidadãos no mesmo sentido que os adultos: estes são cidadãos de maneira absoluta, enquanto aqueles são cidadãos presuntivos (são cidadãos, mas incompletos).

Assim, observa-se que as crianças não pertenciam ao mundo dos adultos, ao mundo dos cidadãos, podendo, no entanto, ser consideradas como cidadãos incompletos ou futuros cidadãos.

Na pólis grega, de acordo com Dal Ri Júnior (2002), a cidadania pode ser considerada como restritiva e exclusivista, porque atribuída a poucos membros da comunidade e transmitida basicamente de forma hereditária, ou seja, transmitida por vínculos de sangue.

Em Roma, ainda na Antigüidade clássica, a cidadania se caracterizou por ser mais inclusiva, isso devido à própria expansão do Império romano. A evolução do conceito de cidadania na Roma antiga percorre, ao longo dos séculos, inúmeras fases. Sofre inicialmente a influência da cultura grega transformando-se, posteriormente, em decorrência das conquistas militares e expansão do território (DAL RI JÚNIOR, 2002).

No período republicano, a cidadania em Roma era um atributo de poucos privilegiados (patrícios) e estava intimamente relacionada à participação política, tal como ocorria na Grécia. Com a expansão e a transformação da República em Império, a cidadania perdeu, gradualmente, sua associação à participação política ativa e assumiu-se como instrumento de controle e pacificação (NOGUEIRA; SILVA, 2001).

Acerca disso, Guarinello (2003, p. 44) explica que,

com o desaparecimento da participação política, o espaço público restringiu-se. Os novos pólos do poder passaram a ser o imperador, símbolo da unidade do império, e o exército, esteio de sua dominação. Ser cidadão romano permaneceu ainda como privilégio, mas as formas de obter tal distinção se diversificaram: podia ser por hereditariedade, alforria ou concessão, individual ou coletiva, aos súditos do imperador. [...] a concessão da cidadania romana alastrou-se até alcançar todos, ou quase todos, os habitantes do Império. Foi, ao mesmo tempo, uma conquista e uma perda.

(40)

Assim, todos ou quase todos os indivíduos do Império romano passaram à condição de cidadão. Essa inclusão alterou os fundamentos do próprio conceito de cidadania. A cidadania foi se desvinculando da ética da participação política, elemento essencial do conceito, para se tornar um conceito legalista, cujo objetivo maior era o de minorar os descontentamentos sociais. Para os cidadãos romanos, a cidadania passou a significar muito mais um símbolo de proteção judicial do que um estatuto que denotasse participação política.

A cidadania antiga, para Guarinello (2003, p. 45), resulta de um longo processo histórico que culmina com o Império Romano. O autor resume esse processo, enfatizando que

de pertencimento a uma pequena comunidade agrícola, a cidadania tornou-se, com o correr dos tempos, fonte de reivindicações e de conflitos, na medida em que diferentes concepções do que fossem as obrigações e os direitos dos cidadãos no seio da comunidade se entrechocaram. Participação no poder, igualdade jurídica, mas também igualdade econômica foram os termos em que se puseram, repetidamente, esses conflitos, até que um poder superior se estabeleceu sobre o conjunto das cidades-estado e suprimiu da cidadania comunitária, progressivamente, sua capacidade de ser fonte potencial de reivindicações.

A noção de cidadania na Idade Média, de acordo com Quirino e Montes, mantém, no essencial, os fundamentos da concepção grega acrescentando-lhe, todavia, “um elemento novo relativo à vinculação com o sobrenatural” (1987, p. 17), e retirando-lhe o caráter de participação política. Assim, a cidadania perde parte de sua importância, uma vez que a Igreja Católica Romana vem ocupar o lugar antes destinado a comunidade política (DAL RI JÚNIOR, 2002).

Na sociedade medieval prevaleceu o sistema de vassalagem no qual cabia aos súditos obediência às leis do reino. Essa nova organização social relegava a participação política a um plano secundário, privilegiando as questões relativas ao plano religioso. De acordo com Quirino e Montes (1987, p. 19), a igualdade existente à época dizia respeito à igualdade religiosa, ou seja, “a igualdade de todos os homens diante de Deus como seus filhos” e não relativa a um Estado que reconhece a todos, igualmente, direitos e deveres que deve garantir.

Referências

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