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Infância, o visível e o dizível, a escola

1 4 Linguagem-comunidade, política, poder

4. Estratégias I: ordem do discurso, escolas e prisões

4.1. Infância, o visível e o dizível, a escola

“Não é exagero dizer que todo dispositivo é um mingau que mistura o visível e o enunciável”.521 Digo, por minha conta, que talvez não seja possível ser mais claro do que Deleuze foi ao comentar a teoria do poder em Foucault. É curioso que o filósofo enuncie a frase acima num contexto em que discorre sobre os aparatos de controle da prisão. Mais especificamente, num trecho de seu texto em que está a discutir o livro que trata primordialmente das tecnologias da disciplina – Vigiar e punir.

Recorto-a por que ela guarda uma incrível semelhança com a narrativa de

Infância. Observe como a perspicácia do argumento do interlocutor de Foucault ilumina

o trecho inicial da narrativa:

A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma. De qualquer modo a aparição deve ter sido real. Inculcaram-me nesse tempo a noção

de pitombas – e as pitombas me serviram para designar todos os

objetos esféricos. Depois me explicaram que a generalização era um erro, e isto me perturbou.522

Do lado de Graciliano, a argúcia concernente à relação do ser vivente com a linguagem, rede constituinte da memória, é assombrosa. É certo que o relato que se propõe a reconstituir a experiência da criança que ainda não fala (o infante) ultrapassa o limite da discussão restrita ao tema do poder. A hesitação do narrador523, que desconfia da “imagem, brilhante e esguia”, discorre, na verdade, a respeito de uma concepção singular da relação entre o visível e o enunciável. Trata-se de uma relação originária, testemunha da natureza da atividade do pensamento. Ela trata também das possíveis relações entre a linguagem e o real. Para ratificar a imagem, o narrador tem que lhe

521

DELEUZE, 2005, p. 48. 522

RAMOS, 2011, p. 9. (Grifos meus). 523

Cláudio Leitão já havia notado a importância estrutural da “técnica” do narrador hesitante para a narrativa memorialista. Cf. LEITÃO, 2011, p. 271-272.

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assegurar o status da diferença: assim, é bem provável que ela seja a “reprodução” do referente, a “aparição” de um vaso vidrado cheio de frutos típicos da região.

“Certas coisas existem por derivação e associação; repetem-se, impõem-se – e, em letra de forma, tomam consciência, ganham raízes”.524 A concepção inextricável de memória e de pensamento, indissociáveis, no autor, da ideia de escrita, adquire toda sua potência e clareza ao misturar, num “mingau” bem particular, os elementos da imagem, do outro e da palavra.

A hesitação é ainda uma maneira de marcar a natureza controladora da linguagem. De certo modo serve à confirmação da estreita relação entre o saber e o poder. Em outros termos, seria a consciência da apropriação da língua como aparato de controle, como dispositivo. A “reprodução” da “lembrança” da “alfaia” cheia de pitombas é “corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma”. Acompanhando a explicação, sabemos que foi nessa época que “inculcaram” à criança a “noção de pitomba”. Por um tempo, a fórmula lhe serve para designar todo objeto esférico. Logo ela precisa ser reformulada: a criança se depara com a árvore carregada de frutos redondos e com o novo signo que designa a “laranja”.525 No presente da história, o enunciado é a reconstituição do procedimento inadequado. Ele se refere à “generalização” inexata do nome da fruta e à imposição da diferença dos signos, característica do jogo da linguagem. O desvio no método do adestramento linguageiro é vivenciado com alguma perturbação.

A escolha dos verbos – fixar, inculcar –, definidores da ação dos indivíduos que intermedeiam as primeiras relações da criança com a língua, não me parece casual. No decorrer dessa cena primária, que captura o menino, de “dois ou três anos”, para dentro da comunidade dos falantes, vislumbram-se outros elementos envolvidos nas relações de poder-saber. O primeiro capítulo do livro – Nuvens – permite que se tome contato com aqueles “indivíduos” que exercem a função de incitadores da transformação do “pequeno animal”, como o próprio narrador caracteriza a personagem que o representa na infância, no sujeito que se torna depositário da lembrança. As figuras do pai e da mãe, “entidades próximas e dominadoras”526, se sobressaem. Mas se vê, além da descrição dos progenitores, o esboço das personagens que vão acompanhar o percurso da infância. A memória conserva ainda a imagem de “um velho de barbas longas”, que

524 RAMOS, 2011, p. 27. 525 RAMOS, 2011, p. 10. 526 RAMOS, 2011, p. 12.

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coordena o exercício da “soletração” numa “pequena escola primária da roça”. Vemos, em sua companhia, as duas irmãs do menino: uma mais nova, “legítima”, mera “insignificância”, e a irmã “natural”, Mocinha, personagem de destaque no tempo da infância. Em sua esteira, seguem outras personagens que compõem o núcleo do grupo em que a criança se desenvolve. E ali se encontram os parentes próximos, entre os quais um tio que estava de passagem, além dos avós. Ligados a eles se veem os agregados, Amaro, vaqueiro; José Baía e sinha Leopoldina. A sequência de cenas que capta “as mais antigas recordações do ambiente” em que o menino se desenvolve passa-se principalmente na “vasta sala” da “escola primária”, alargada pelo restrito foco da criança pequena. O recinto serve de pouso à família que se deslocava da pequena cidade em Alagoas para a região rural de Pernambuco. Agrupam-se assim os elementos basilares apresentados no primeiro capítulo do livro.

Subscrevendo o apontamento certeiro de Cláudio Leitão, que vê a composição dos capítulos introdutórios dos livros de Graciliano como prefácios camuflados527, nota- se ainda em “Nuvens” a presença especial que o pai e a mãe ocupam nas lembranças. Sabemos que ele é a pessoa responsável por induzir e acompanhar, até certo ponto, os primeiros exercícios de leitura do menino. A narrativa lhe reserva o posto, direto e indireto, de protagonista em alguns relatos – Um cinturão, Leitura, Os astrônomos, Venta-romba. A mãe, por sua vez, aparece ainda nesse capítulo como a pessoa que lhe desperta a atenção para os aspectos da linguagem. É ela quem implica com a prosódia e com as palavras alheias, diferentes das usadas no ambiente da casa. É, além disso, a protagonista da mais tenra lembrança do contato com a fábula da história do “papa- hóstia”: enredo de cunho anticlerical que era mastigado dos quatros grossos volumes que vivia a manejar.

Esse poder ao mesmo tempo “fragmentário e sinóptico”528 do relato introdutório incita à proposição de uma primeira hipótese de análise. Inicio com a tentativa de alocar os elementos da imagem inicial, e de seu desdobramento, nos devidos lugares de um possível diagrama. Apostando na hipótese do surgimento do sujeito rudimentar da criança, que manipula seus primeiros signos linguísticos, abre-se um horizonte que propicia a reconstituição das condições históricas do acontecimento. Se o sujeito é a criança que testa a validade do nome da coisa, temos, por conseguinte, a língua como tecnologia de sujeição e o adulto – pai, mãe, avô, tio, um agregado? – como o agente,

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Cf. LEITÃO, 2003, p. 23-24. 528

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“instrumento”, do poder disciplinar. Estamos diante do “sistema de diferenciações” através do qual o poder se manifesta.529 Conforme Foucault, ele se materializa em variadas maneiras: diferença de riquezas, diferenças linguísticas, de status social, de apropriação da produção, inclusive a de idade, entre adultos e crianças.

Por uma coincidência que parece dispensar a natureza do acaso, sujeito, agente do poder e tecnologia de controle agrupam-se taticamente no espaço da escola. O imóvel improvisado no meio do sertão é apenas o primeiro de uma sucessão de estabelecimentos do gênero que vão marcar a infância do menino. Dos três espaços delimitados da experiência daquele tempo – a fazenda em Pernambuco, a vila em Buíque, e Viçosa, em Alagoas – a escola funciona como uma espécie de significante mestre que modula, desde o início, a relação do menino com as instâncias do poder. Especialmente o contexto que se refere à relação da criança com o mundo da linguagem e seu desdobramento: a leitura, a “educação sentimental” embasada nos livros de literatura, assim como as primeiras experiências de composição literária. Vemos a escola se generalizar no local da loja de miudezas do pai do menino. Era ali que “prendiam” a criança530 em suas horas vagas da escola, e ali também onde ela desperta a curiosidade para os livros. Assim, no decorrer da narrativa, vemos ainda a escola ser transpassada por sentidos que lhe emparelham à cadeia. “Não há prisão pior que uma escola primária do interior”. O dito claro é um dos pontos em que o narrador enuncia a proximidade entre a escola e os outros locais de adestramento que a criança circula. É sobretudo a funcionalidade disciplinar que une os locais ou os aparelhos de correção; da mesma forma como acontece no texto de Foucault.

A hipótese poderia ser assim sintetizada: a conjunção das imagens da memória, agrupando os “indivíduos” que chancelam o significado das coisas e a escola, compreendida tanto no aspecto físico quanto no metafórico, forma o núcleo do diagrama que apresenta a narrativa de Infância.

Se tomássemos a existência e a vida social do menino como uma planta baixa, veríamos num ponto central, marcado pela “escola primária da roça”, irradiar-se uma linha tortuosa que resvala em pelo menos mais quatro instituições de educação para crianças. Apesar das descontinuidades e da longa distância de tempo, essa linha vai se cruzar, por fim, com o caminho que nos leva à Colônia Correcional da Ilha Grande.

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FOUCAULT, 1995, p. 246. 530

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Antes disso, proponho a apresentação de alguns lances produzidos por essa grande “máquina abstrata” de crítica do poder que é Infância. Que tipo de sujeição a confluência de infância e de escola produzia, em pleno sertão brasileiro, na virada do século 19 para o século 20? Que mecanismos disciplinares essa equação bota em curso? As questões nos encaminham para o exame dos dispositivos entrelaçados na rede que as imagens da narrativa permitem extrair.