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Praça vermelha, assembleia, Coletivo, política

1 4 Linguagem-comunidade, política, poder

3. Coletivo com dissenso

3.2. Praça vermelha, assembleia, Coletivo, política

335 Aproprio-me aqui do conceito do método de “montagem” da arte estética, analisada por Rancière

tendo como base o cinema de Godard. Cf. RANCIÈRE, 2012, p. 54.

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RANCIÈRE, 2012, p. 54.

337 RANCIÈRE, 2010, p. 79.

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RANCIÈRE, 2010, p. 79.

339 Refiro-me à cena antológica, passada na Colônia Correcional, em que o companheiro de prisão,

assumindo a função que lhe era delegada (espécie de carceragem e representação dos pares) entra em confronto com Graciliano: o objetivo era força-lo a se alimentar. Desde o tempo da viagem no navio Manaus, o escritor vinha sofrendo de um distúrbio alimentar, que lhe impossibilitava a ingestão ordinária da comida servida. O fato se acentua nas últimas semanas no Pavilhão dos Primários, chegando próxima a um quadro de sitiofobia durante a estada na Colônia. Cf. RAMOS, 2004, vol. II, p. 146-147.

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A chegada ao Pavilhão dos Primários mergulha a personagem Graciliano num contexto cercado de referências políticas. Ainda que restringida pela maciça repressão policial340, a memória que abastece o discurso se retorce em busca dos limites possíveis para a crítica da experiência. Desde o primeiro contato com os novos companheiros, na Praça Vermelha341, os signos que se deixam apreender designam a materialidade de uma situação que remete à política. Eles se espalham pelos cantos da cadeia, pela voz e pelos gestos dos prisioneiros. Trata-se, certamente, da ideia de política que compõe um dos “objetos”342 singulares da discussão fundadora da filosofia.

No entanto, Graciliano não perde a oportunidade para empreender a crítica balanceada do contexto histórico de que foi testemunha. Percebe-se facilmente o uso da ironia que lhe é consensualmente atribuída.

Saímos, andamos um pedaço do pátio, alcançamos o nosso destino, alto edifício de fachada nova. Entramos. Salas à esquerda e à direita do vestíbulo espaçoso. Uma grade ocupava toda a largura do prédio. No meio dela escancarou-se enorme porta. Introduzimo-nos por aí, desembocamos num vasto recinto para onde se abriam células, aparentemente desertas: era provável terem todos os inquilinos vindo receber-nos. Avançamos entre duas filas de homens que, de punhos erguidos, se puseram a cantar, na música do Hino Nacional:

Do norte, das florestas amazônicas, Ao sul, onde a coxilha a vista encanta. . . A terra brasileira, à luz dos trópicos...

Ri-me interiormente, pensando no que me havia dito o guarda pouco antes: - “Vivem cantando e berrando como uns doidos”.343

O autor antecipa a apresentação do caráter incongruente de certo nacionalismo revolucionário, inspirado nas ideias comunistas em voga.344 O leitor das Memórias sabe,

340 Vale notar a descrição da arquitetura e dos protocolos que regulam o deslocamento dos presos e dos

guardas na prisão. Um bom exemplo é o trecho que se pode ver no primeiro capítulo da segunda parte da história. Cf. RAMOS, 2004, vol. I, p. 207-212.

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O termo aparece pela primeira vez no segundo capítulo dessa mesma parte. A designação é lançada para batizar o “vasto recinto” onde se davam as assembleias do “Coletivo”. Cf. RAMOS, 2004, vol. I, p. 214.

342 Rancière desautoriza a ideia de especialização da filosofia, como o exemplo da “filosofia política”. O

autor afirma que, na realidade, a filosofia tem “objetos singulares”, mantém “nós de pensamento” com outras atividades da razão como a “política, a ciência, a arte”. Cf. RANCIÈRE, 1995, p. 10-11.

343 RAMOS, 2004, vol. I, p. 207.

344 A crítica se encontra disseminada em mais de um ponto nessa parte da história. Desde a perplexidade

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porém, que essa crítica não se restringe ao ambiente político brasileiro, como o trecho acima pode sugerir.

Seguindo o raciocínio, se a ideia de “Praça Vermelha” nos reporta imediatamente ao contexto da União Soviética, por outro lado nos lembra do período antigo: a cidade de Atenas. O primeiro evidencia a disposição política daqueles (em sua maioria) que se encontravam na prisão do governo de Getúlio Vargas. Quanto à antiguidade, no centro do poder grego, era na “praça pública” que se realizavam as assembleias, através das quais se efetivava a política.345 Foi a Grécia antiga que, além de inventar a filosofia, viu nascer o novo regime político da democracia.346

O “organismo” do “Coletivo” é outra relevante ideia que sustenta esta leitura. Dou continuidade a essa seção de excertos com o intuito de apresentar a discussão que pretendo desenvolver.

Percebi entre os meus companheiros uma esquisita amabilidade: antes de pedir, ofereciam. Alguém me veio perguntar se necessitava qualquer coisa, dinheiro, cigarros. Nada me faltava, agradeci. A resposta era infalível: os meus escrúpulos me levariam a recusar assistência, ainda que me achasse em penúria. Bem. Tratava-se então de saber se me era possível contribuir para o Coletivo. Sem dúvida, mas que vinha a ser aquilo? Um organismo a funcionar, com excelente resultado, em prisão política. A oferta e o pedido me revelavam de pronto um dos seus fins, estabelecer o equilíbrio. À testa dele uma comissão de cinco membros, eleitos por alguns meses, zelava a ordem, a higiene. Entendia-se com o mundo lá de fora utilizando as visitas, levava à administração do estabelecimento exigências e protestos.347

A semelhança entre a estrutura política armada pela escrita de Graciliano e a descrição do sítio onde transcorriam as assembleias na cidade antiga é notável.

Talvez o mais estranho, na democracia antiga, fosse que nela mal havia eleição. Na verdade, não havia cargos fixos, ou eles eram poucos. Havia encargos. Uma assembleia tomava uma

ateus quando a revolução se tornasse realidade, à lembrança do militarismo nacionalista paspalhão de Capitão Mata, o narrador entremeia e ressalta as incongruências do discurso militante de esquerda que cooptava do trabalhador braçal aos membros de uma classe média incipiente, militares, intelectuais de toda ordem. Comento e esmiúço um pouco o assunto logo à frente. Cf. RAMOS, 2004, vol. I, p. 225-226 e p. 255-256.

345 RIBEIRO, 2005, p. 8. 346 RIBEIRO, 2005, p. 8-9. 347

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decisão; era preciso aplica-la; então se incumbia disso um grupo de pessoas. Mas estas não eram eleitas, e sim sorteadas.348

Percebe-se a divergência entre os termos “eleição”, proposto por Graciliano, e “sorteio”, lembrado por Renato Janine Ribeiro para descrever a dinâmica da assembleia grega. Contudo, as semelhanças parecem se sobressair. O “Coletivo”, zelando a “ordem, a higiene”, e entendendo-se com o “mundo de fora”, assume funções próximas às da assembleia antiga. Como bem lembra Renato Janine Ribeiro, Atenas não “conhece a complexidade da economia moderna”. Seus cidadãos se ocupavam com os “assuntos políticos” de seu tempo, ou seja, com aqueles assuntos concernentes à organização da cidade. Discutiam sobre “a paz, a guerra”, assim como deliberavam sobre as “festas”. Havia “uma assembleia a cada nove dias”.349

A escrita das Memórias, porém, ao mesmo tempo em que não intenta defender nenhuma tese, apresenta uma sucessão de quadros que problematizam a noção de política. Apreendo essa coleção de imagens sobre o tema, tendo como baliza a ideia de “desentendimento”. Ainda na companhia de Rancière, penso que a noção atende, com rigor, à apreensão da imagem de racionalidade da política realizada pela escrita. Na situação de desentendimento, não se trata do desconhecimento que demanda um saber suplementar, nem do mal-entendido que solicita o esclarecimento da palavra. A verdadeira política se desprende da “filosofia política”, que pretende “regular” sua racionalidade; da mesma forma, afasta-se e neutraliza o poder ligado a uma ideia de “valor”, como no contexto dos axiai (títulos), que prescreviam os papéis na antiguidade. “Os casos de desentendimento são aqueles em que a disputa sobre o que quer dizer falar constitui a própria racionalidade da situação de palavra”.350 A política, rara e intempestiva351, sustenta-se nessa aporia, que define sua racionalidade própria. Tendo o princípio da igualdade como fundamento, ela se debate num constante estabelecimento de partes e objetos comuns. Na busca pela justiça e no estabelecimento das leis, ela se depara com o incomensurável, O caso extremo de desentendimento, lembrado por Rancière, é aquele em que X não vê o objeto que Y lhe apresenta porque não entende que os sons emitidos por Y compõem palavras ou agenciamentos de palavras

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RIBEIRO, 2005, p. 10.

349 RIBEIRO, 2005, p. 11. 350 RANCIÈRE, 1995, p. 12.

351 Rancière e Badiou expressam opinião semelhante em contextos distintos. Cf. RANCIÈRE, 1995, p.

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semelhantes aos seus.352 Mais do que a discussão sobre a argumentação, trata-se da problematização a respeito do “argumentável”.353

Particularmente no contexto das Memórias, cabe examinar como se dá a apresentação dos eventos em que interlocutores dispõem seus argumentos, e, a partir disso, como se torna possível o diálogo.

Para dar continuidade à análise, proponho observarmos as imagens que o texto nos oferece. Nesse exercício, enredar-se-á, como no próprio tecido da narração, cenas que captam personagens designadas por significantes políticos. Tendo como suporte a apresentação da série de retratos pintados por Graciliano, entremeio eventos marcados pela tensão da política.