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CAPÍTULO II: Geografias do pós-vida

2.3 O pós-vida de O Grande Abismo

2.3.1 O inferno centrifugal

anteriores a O Grande Abismo, Lewis marotamente sugere que ele é apenas o transmissor de uma história real. No último capítulo de Out of the Silent Planet, Lewis se apresenta como o mero narrador dos acontecimentos relatados a ele por Ransom, e o mesmo acontece em Perelandra, cuja história inicia na sala de estar do autor/narrador. Lewis inicia As Cartas do Inferno avisando que não iria revelar a forma em que as cartas dos demônios chegaram às suas mãos, e que teve a consideração de alterar os nomes de seus personagens para proteger sua privacidade. Estas divertidas auto- inserções de Lewis nas histórias cessam no momento em que há o perigo de que pessoas interpretem suas descrições do porvir como relatos literais do pós-vida.

O inferno de Lewis é, à primeira vista, idêntico ao de Thisted: uma vasta cidade imaterial, na qual fantasmas podem conjurar qualquer coisa à existência apenas pensando nela. Os fantasmas podem criar casas, comércios, armazéns, tudo o que desejarem, mas nada substancial ou real: as casas da Cidade Cinza de Lewis não protegem seus moradores da chuva, assim como as roupas dos danados de Thisted não os protegem do frio. Porém, em vez de apenas copiar o inferno de Thisted, Lewis incorpora algumas importantes mudanças à sua cidade infernal, criando uma visão original da pós-vida. Uma das maiores diferenças entre os fantasmas de Lewis e os danados de Dante e Thisted está no constante movimento dos habitantes da Cidade Cinza. Longe de estarem presas a uma seção específica do inferno como os danados de Dante, ou impedidas de sair pelos portões do inferno como as almas de Thisted, os fantasmas de Lewis nunca param de se mover, completamente desimpedidos, pela vastidão do inferno.

Dante e Thisted criaram infernos cuja densidade populacional é menor nas suas margens, e maior em seu centro: os níveis do inferno de Dante vão do vasto espaço em que rodopiam os carnais aos bolsões superlotados do Malebolge, nos quais os danados tropeçam uns sobre os outros, até o menor e último círculo que contém Satanás e os traidores. As almas de Thisted despertam em espaços vazios do inferno e são atraídas a locais em que outras almas já estão assentadas, formando assim cidades onde, na companhia uma das outras, elas podem reassumir as posições sociais que tinham em vida.

O inferno proposto por Lewis é exatamente o oposto: almas chegam ao inferno por meio de um “centro cívico”31e se assentam nas casas vazias que o cercam. Na medida em que o tempo passa, elas brigam entre si e se mudam para outras casas na próxima rua, onde brigam novamente com seus vizinhos, e novamente se mudam para a próxima rua. Este processo se repete continuamente, fazendo com que as almas se afastem para regiões mais e mais remotas da Cidade Cinza, isolando-se completamente umas das outras. Como o fantasma Ikey explica ao protagonista, falando das almas que chegaram ao inferno em épocas anteriores:

31 A idéia do inferno como um ambiente burocrático e semi-político, encontrado principalmente em As

Cartas do Inferno, pode ser visto aqui também. Embora na primeira obra a imagem seja bem mais evidente, com sua organização das hostes infernais em departamentos, secretariados e instituições oficiais, há algo do mesmo espírito em O Grande Abismo, com sua substituição dos icônicos portões do inferno por um órgão municipal.

Elas foram se movendo mais e mais. Se afastando cada vez mais umas das outras. Elas estão tão distantes agora que não poderiam nem pensar de vir à parada do ônibus. Estão a distâncias astronômicas. Há uma elevação perto de onde moro, e lá mora um camarada que tem um telescópio. É possível ver as luzes das casas habitadas, onde aqueles antigos vivem, a milhões de milhas de distância. Milhões de milhas entre eles e nós, e entre cada um deles. De vez em quando, eles se movem para ainda mais longe. Essa é uma das decepções. Eu pensei que encontraria personagens históricas interessantes. Mas não dá; eles estão distantes demais. (LEWIS, 2001a, p. 11, tradução nossa.)

As motivações por trás desse movimento centrifugal das almas podem ser comparadas com a “filosofia do inferno”, seguida pelos demônios de As Cartas do Inferno. Se, no inferno, o amor é (por fim) uma impossibilidade, o egoísmo absoluto só permite duas opções: a rejeição e o afastamento dos outros, ou a dominação e a absorção de outros seres a si próprio. (LEWIS, 2002b, p. 94) Ou um ser é rejeitado por ser um rival, ou é consumido por ser inferior: os demônios de As Cartas do Inferno se odeiam pelo fato de que cada um compete contra todos os outros, mas os seres humanos são vistos apenas como comida.

Esta atitude se manifesta, no nível humano, no comportamento dos fantasmas. Os únicos relacionamentos com qualquer duração significativa são predatoriais, dominadores; mães e cônjuges que tratam filhos e parceiros como sua propriedade. Os fantasmas que existem em pé de igualdade entre si não conseguem co-existir pacificamente; até no pouco tempo que o protagonista passa esperando pelo ônibus e viajando ao Vale da Sombra da Vida, abundam ameaças, xingamentos, trapaças e violência física - ou pelo menos o equivalente a fantasma da violência física. Por fim, eles acabam se distanciando por serem incapazes de aceitar uns aos outros.

Em vez de possibilitar a recriação da sociedade humana no inferno, como é o caso na obra de Thisted, o poder criativo dos fantasmas de Lewis só facilita o afastamento entre eles, impossibilitando qualquer tipo de sociedade permanente. Se os danados de Dante e Thisted continuam eternamente presos ao pecado que os condenou, os fantasmas de Lewis, danados pelo orgulho e pelo egoísmo que os levou a rejeitar a Deus, não só existem eternamente num estado de orgulho e de egoísmo, mas também evoluem em sua danação, rejeitando seus vizinhos um por um e perdendo aos poucos todo traço de humanidade à medida em que se isolam.