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CAPÍTULO II: Geografias do pós-vida

2.1 Os reinos do pós-vida na Divina Comédia

2.1.2 O purgatório

Ao contrário do inferno, onde o sofrimento das almas é fixo e inescapável, o purgatório como observa Eduardo Sterzi, é um lugar de almas em transição e, portanto, é:

o reino em que a historicidade – isto é, o tempo como processo, como possibilidade de transformação, continua vigente, como se aqui houvesse uma espécie de sobrevivência para além da morte (ou, mais precisamente, dentro da morte), e o destino dos indivíduos continuasse aberto, ainda por decidir. (STERZI, 2005, p. 114)

Esse caráter dinâmico do purgatório é manifesto em sua própria estrutura, pois, ao contrário dos destinos fixos das almas no inferno, as almas do purgatório estão em movimento contínuo, ascendendo uma montanha espiral que foi criada pela queda de Lúcifer. Ao cair do céu, ele simultaneamente causou a vasta cratera do inferno e empurrou a terra do local de seu impacto ao outro lado do planeta, criando o Monte Purgatório.22Nos primeiros penhascos desta montanha, as almas dos excomungados arrependidos e dos negligentes que não zelaram por sua salvação por toda a vida, aguardam até que lhes seja permitido subir a montanha.

Passando pelos portões de São Pedro, onde elas são marcadas na testa com sete P's, representando os sete pecados mortais, as almas devem ser purificadas desses pecados, um em cada córnice da montanha. Primeiro, as almas precisam ser purificadas dos pecados causados por amor pervertido: o orgulho, a inveja e a ira. Depois, do pecado causado por amor insuficiente: a preguiça. Finalmente, nos últimos três córnices da montanha, as almas são purificadas dos pecados de amor imoderado: a avareza, a glutonaria, e a luxúria.

Em cada uma das córnices, a alma deve praticar penitência, ou por meio do sofrimento

22 Isto, segundo Mazzotta (2009), está em acordo com um tema constante na teologia cristã e na

Comédia: que Deus pode usar a obra de Satanás para o bem, por pior que seja. Assim, o próprio corpo de Satanás, congelado no fundo do inferno, é que possibilita a passagem de Dante e Virgílio até o outro lado da terra, e o mesmo ato maligno que criou o inferno levantou o purgatório, o lugar onde a salvação das almas é concretizada.

das consequências de cada pecado ou ainda pela prática da virtude oposta. As almas devem meditar sobre exemplos da virtude oposta à de cada pecado, exemplos esses sempre tirados da vida da Virgem Maria, e, então, alternadamente da história sagrada e profana; e meditar sobre exemplos catastróficos da prática do pecado do qual estão se purificando. As almas devem constantemente fazer orações, tiradas da Bíblia ou dos hinários e, finalmente, as almas devem receber a benção do anjo que supervisiona cada córnice, e apaga o P de suas testas quando estes estão purificados daquele pecado e prontos para ir à próxima cornija. No cume da montanha, está o Éden, de onde as almas restauradas podem ser traduzidas ao paraíso.

Esse movimento contínuo das almas rumo ao paraíso terrestre e, então, ao Paraíso eterno, torna a esperança um dos temas centrais do Purgatório. Enquanto no inferno os danados existem apenas em remorso e ressentimento, e no paraíso as almas regozijam em êxtase eterno, as almas do purgatório, existindo num estado intermediário (embora de modo algum equidistante) entre estes dois reinos, existem num estado de penitência. A penitência, como Tomás de Aquino a define, não é um mero sentimento de tristeza por erros passados, mas algo que também olha para o futuro.

Seria, é verdade, tolice lamentar por algo que já foi feito, com a intenção de desfazê-lo. Mas esta não é a intenção do penitente: pois sua tristeza é desprazer ou desaprovação para com um ato passado com a intenção de remover seu resultado, isto é, a ira de Deus e a dívida do castigo: e isto não é tolice. (TOMÁS DE AQUINO, 2008, tradução nossa.)

Sendo a penitência um ato esperançoso, as almas do purgatório são felizes, apesar de seu sofrimento. Ao contrário dos tormentos punitivos do inferno, as dores do purgatório são purificadoras, restaurativas e abraçadas por aqueles que as suportam. A diferença entre as duas dores pode não ser quantitativa, mas certamente é qualitativa. A diferença entre os sofrimentos do inferno e do purgatório é perfeitamente ilustrada na tristeza de Virgílio por toda a ascensão do Monte Purgatório. Apesar de as almas no limbo não sofrerem torturas como as almas do purgatório, elas não possuem a esperança de ver a Deus.

“Já viste porfiar sem resultado Os que, cevar podendo o seu desejo, Em perpétua aflição o tem tornado.

De Aristóteles falo neste ensejo,

De Platão, de outros mais.” - Baixando a fronte,

Calou; mostrava tornação e pejo.” (ALIGHIERI, 2007, p. 199)

Consequentemente, as almas do purgatório são as personagens mais reconhecivelmente humanas de Dante, pois seu progresso ao cume da montanha é uma extensão do processo de santificação que elas começaram na terra. Como pessoas encarnadas, permanecem suspensas entre aquilo que são e o que desejam um dia ser. O senso de continuidade entre a vida terrena e a ascensão purificadora do Monte Purgatório é acentuado pela comunidade que existe entre as almas do purgatório. De Sanctis toma os coros das almas no purgatório como exemplo deste contraste entre o isolamento das almas no inferno e a comunidade das almas ascendendo o monte:

Mais do que nos indivíduos, é nos grupos que a vida se manifesta. A vida, aqui, é menos indivíduo do que gênero. E a alma comum expressa-se pelo canto. Não há coros no Inferno, porque ali inexiste unidade de amor. O ódio é solitário. O amor, simpatia e harmonia. A música e o canto logram seus efeitos na controlada variedade de vozes e dos instrumentos. Aqui, as almas são seres musicais que transcendem sua consciência individual, absortas num mesmo espírito de caridade. (DE SANCTIS, 1993, p. 160)

O que faz a diferença entre o purgatório e o inferno, possibilitando a penitência e a comunidade entre as almas, é a presença da graça divina, representada pela luz do sol. No Canto VII de Purgatorio, aludindo a Cristo, que nasceu após sua morte, Virgílio lamenta que “ver o sol, que desejas, me é vedado:/ conheci-o já tarde – ai miserando!” No mesmo Canto, Sordello explica aos viajantes que as almas do purgatório não conseguem subir a montanha de noite, revelando o que comentaristas posteriores chamam de “a regra da montanha” ou “a lei da ascensão”:

Com seu dedo Sordel linha fazia

No chão e disse: - Além ninguém passará Se, ausente o sol, a noite principia Mas óbice qualquer não deparara Quem caminhar, subindo, pretendesse: Para tolhê-lo a noite já bastara Bem pudera baixar, se lhe aprouvesse Pelo declive em volta da montanha:

Enquanto o sol sob o horizonte desce. (ALIGHIERI, 2007, p. 220)

penitência e a purificação é impossível, mas uma vez que a graça divina se distancia, pode-se descer a montanha e voltar atrás do caminho ao paraíso. O contrário também é verdadeiro: nas linhas 85-87, Sordello pede que Dante e Virgílio não peçam que ele desça com eles ao vale onde estão os governantes negligentes enquanto o sol ainda está no céu (ALIGHIERI, 2003, p 341). Assim como a alma sem a graça de Deus perde o ânimo de avançar e pode até retroceder, a alma sobre quem a graça ainda brilha não consegue retroceder, mesmo que queira. Fica claro que é a graça que dita o ritmo da ascensão das almas.