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A localização geográfica da freguesia da Cumieira contribuiu, decisivamente, para a abertura a influências de vivências de outros povos. Em primeiro lugar porque o povo Romano, desde os tempos remotos em que habitou o interior do território, deixou a Cumieira servida de uma via principal que ligava Lamaecus (Lamego) a Aquae Flaviae (Chaves), via que, ao longo dos séculos, foi usada como prioritária.

Esta via era um dos eixos de passagem obrigatória nas romagens a Santiago de Compostela, nesta altura considerada o centro da cultura medieval, onde:

eram expostas ao público, as criações dos trovadores, jograis e segréis: as cantigas As cantigas do Alto Douro chegaram a Santiago de Compostela nos tempos do galego-português e de D. Afonso Henriques. (Idem: 1328)

Mais tarde, designada de estrada real e com uma utilização intensiva pela mala-posta, com uma estação nesta freguesia, foi um itinerário estratégico nas comunicações entre Vila Real – Régua – Lamego. Em finais do Século XVIII, a Junta de Intendência de Estradas e Caminhos do Douro, “sob a direcção do engenheiro francês de pontes e calçadas José Auffdiener” considerou esta via essencial e procedeu “à construção/beneficiação de outras estradas no Alto Douro, nomeadamente Régua-Santa Marta-Cumieira-Vila Real” (Sousa, 2008: 23-24).

No início do século XIX , o «Roteiro Terrestre de Portugal» considerava esta estrada uma via preponderante no mapa de estradas português, pois “a ligação entre Lisboa e Vila Real era feita segundo a passagem nos seguintes locais: “Lamego ao Pêso da Régua, a Santa Martha, à Comieira a Villa Real” (C, 1814: 165).

No último quartel do século XIX, dada a importância atribuída a esta via, foi instalado o “caminho de ferro americano desde a Régua a Vila Real, pertencente à Companhia Transmontana, fundada em 1874, sendo uma das estações aqui nesta freguesia, no lugar da Estação. O seu motor eram mulas para os passageiros e bois para as mercadorias” (Fonseca, 1936: 1005).

Ilustração 6 - Ligação entre Vila Real e o Peso da Régua com passagem pela Cumieira(94)

Este caminho passou a ter pouca utilização após a construção da Estada Nacional nº2 que, também, atravessa a freguesia, mas que continua a ser a grande ligação entre a sede e o sul do distrito.

Estas vias possibilitaram a passagem de grandes fluxos populacionais, originando, por isso, contactos estreitos com outros povos.

Em segundo lugar, o facto de esta freguesia possuir uma grande vastidão de vinhas inseridas na Região Demarcada do Douro fez com que, durante as vindimas, recebesse rogas vindas de outras regiões para ajudar nos trabalhos. Desde as gentes da serra até aos vizinhos da Galiza, eram várias as pessoas que, neste período, acorriam ao Douro como forma de assegurarem trabalho durante dois meses do ano, numa altura em que os afazeres agrícolas nas suas terras eram escassos. Este intercâmbio cultural fez com que, através das rogas, os cantares, as tradições e os costumes, de cada povo, se transferissem do e para o Douro, como se de uma troca comercial se tratasse. Muita dessa gente que fazia parte dessas rogas acabou por ficar e constituir família na freguesia da Cumieira. São vários os casos conhecidos, destacando-se um que, pelos seus conhecimentos musicais, fundou a Banda Musical da

94Fotografia tirada na “Exposição Evocativa do Bicentenário da Guerra Peninsular” e constante do livro alusivo à exposição “Operações Militares no Norte de Portugal Durante As Invasões Francesas”, imagem 30 (Castro, 2009: 25).

Cumieira em 1830, ainda hoje em actividade, contribuindo, com os seus conhecimentos, para o enriquecimento cultural da terra.

Por outro lado, a Cumieira teve, ao longo de séculos, sempre grandes produtores de vinho de embarque(95) e muitos intelectuais (políticos, militares, juízes, professores, padres) que, pelas suas funções, eram sujeitos a sucessivas viagens. Os produtores de vinho eram obrigados a viajar regularmente até ao Porto para poderem escoar o seu produto, enquanto os restantes, para além da cidade do Porto, também viajavam frequentemente para Coimbra e Lisboa.

Outro grande factor, que contribui significativamente para o encontro com outros modos de vida, foi a emigração. Ela traduziu-se para vários países, nomeadamente para o Brasil, Alemanha, França, Bélgica, entre outros com menos relevância. O Brasil foi o destino que mais gente desta freguesia recebeu desde finais do século XIX até meados do século XX, num total de 618, como anteriormente referido. Por seu lado, os países europeus receberam grande número de imigrantes, oriundos desta freguesia, após o fim da II Guerra Mundial. A emigração para a Bélgica e Luxemburgo reflectiu-se mais após a Revolução de Abril de 1974. Muitos destes emigrantes regressaram e, talvez por esta razão, várias das composições por nós recolhidas apresentam sinais de influências externas, principalmente oriundas do Brasil.(96)

Este conjunto de factores contribuiu para que a Cumieira possuísse um vasto repertório musical. Os cantares que conseguiram sobreviver até aos dias de hoje, uns originários da freguesia, outros vindos de outras terras e que foram assimilados e modificados ao longo do tempo, são parte integrante e extremamente importante da literatura tradicional das gentes Cumieirenses. Este conjunto de cantares que conseguimos reunir traduz, em parte, as vivências do povo da freguesia: - o seu modo de vida, as suas relações no trabalho, os seus amores, os seus sentimentos, a sua alegria.

Lopes-Graça dizia:

a canção portuguesa faz parte do património cultural da nação portuguesa. Mais do que qualquer outra manifestação do nosso temperamento, da nossa cultura ou das nossas capacidades criadoras, ela nos define e integra na nossa realidade psicológica e social. Amá-la, é conhecermo-nos no que em nós existe de mais fundo e enraizado no solo natal. (1991: 51)

95Vinho do Porto para exportação.

Outrora, praticamente todos os trabalhos, desde o mais leve ao mais pesado, se realizavam acompanhados de cantares. Ao som das cantigas, o trabalho era executado num movimento ritmado, servindo a melodia para suavizar o cansaço do esforçado dia de trabalho.

Desde o berço se aprendia a cantar, quando ainda crianças de colo ouviam as lindas melodias de embalar que suas mães entoavam. Também na idade escolar aprendiam a cantar o Hino Nacional e, num soletrar ritmado, a cantar a tabuada, como forma de uma melhor memorização. De igual modo, grande parte das brincadeiras de recreio era feita ao som de cantilenas.

Ainda numa idade muito tenra, as crianças entravam no ritmo do trabalho. Ajudavam na lide dos terrenos da família, que era uma tarefa da responsabilidade das mães (na sacha, na vinha, nos olivais), já que os pais andavam a “ganhar os dias”(97) nas quintas dos grandes proprietários. Estas crianças executavam o trabalho ao ritmo das melodias das mães e, desta forma, iam interiorizando os tradicionais cantares.

No período da adolescência, quando os jovens entravam no mercado do trabalho, continuavam a ouvir os mais velhos cantar melodias. Cantava-se na vinha, no olival, na cava, nas colheitas. Cantava o ferreiro marcando o ritmo das pancadas na forja, cantava o pedreiro no erguer das pedras para levantar as paredes, cantava a lavadeira... todos cantavam.

A familiaridade com os cantares acompanhava o homem desde a tenra idade de criança até aos últimos dias de vida: nos últimos suspiros ainda ouvia os familiares e vizinhos cantarem o “Bendito”,(98)em salvação da sua alma:

Companheira da vida e trababalhos do povo português, a canção segue-o do berço ao túmulo, exprimindo-lhe as alegrias e as dores, as esperanças e as incertezas, o amor e a fé, retratando-lhe fielmente a fisionomia, o género de ocupações, o próprio ambiente geográfico, de tal maneira ela, a canção, o homem e a terra, onde uma florece e o outro labuta, e ama, e crê, e sonha, e a que entregar por fim o corpo, formam uma unidade, um todo indissolúvel. (Lopes-Graça, 1991: 22)

Nas últimas décadas, a evolução da mecanização da agricultura contribuiu, decisivamente, para tornar o trabalho mais individualizado e monótono. A perda do trabalho em grupo retirou o ambiente de alegria e entusiasmo que o colectivo oferecia, perdendo-se um

97Trabalhar.

dos factores que mais contribuía para a utilização dos cantares na lida do campo. Este factor associado ao afastamento do homem do trabalho rural fizeram com que grande parte deste património já se tenha perdido e caminha rapidamente para a sua extinção, restando-nos apenas os registo das recolhas por nós realizadas.

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