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Infraestrutura: “Nem todo lugar é um pouso”

TERRITORIALIDADES E COSMOLOGIA CIGANA

2.4 Infraestrutura: “Nem todo lugar é um pouso”

Os ciganos denominam como pouso o local onde escolhem e são permitidos ficar, e para a ação de estar no pouso empregam o verbo pousar ou embarracar ou ranchar. O emprego do verbo ranchar é mais incomum e é uma herança de quando viajavam pelo interior do estado à cavalo, pois procuravam ranchos para se estabelecerem. Quando perguntei à Bruna se o acampamento em Tucano era um pouso, ela respondeu: “Pouso é isso aqui tudo. É um acampamento, mas só que aqui é um pouso, eu to em cima dele, lá é outro, da tia Maria é outro”. Nota-se que o pouso pode se referir tanto ao acampamento como um todo (junção de todas as barracas vizinhas), como a um dos terrenos do acampamento (um mesmo acampamento pode conter terrenos de diferentes proprietários) ou ao local ocupado por uma barraca.

Quando um proprietário concede a permissão para acamparem, os ciganos dizem que ele deu pouso.

Uma das condições necessárias para o surgimento de um novo acampamento cigano é a permissão do proprietário para acamparem no terre- no. Assim, os ciganos só irão pousar, embarracar ou ranchar em um terreno quando o proprietário der pouso para eles, como disse Rosi sobre o terreno onde estava sua barraca: “o homem deixou a gente ficar aqui”.

O pouso cigano só é concebido mediante a autorização do proprie- tário do terreno, mas isso não quer dizer que qualquer lugar supra a condição do que consideram um pouso satisfatório. Ao perguntar para um cigano o que acha do pouso onde ele está, poderá dizer que está bem apoiado se estiver satisfeito. Se as condições do pouso não estão boas, podem ficar desapoiados, por exemplo, quando um cigano indesejado decide vir pousar no mesmo pou-

so que outros ciganos. Isso aconteceu em Andorinhas, quando havia rumores

de que um cigano que se envolvia em confusão viria pousar onde estavam, e comentavam que ficariam desapoiados já que não queriam permanecer no mesmo pouso que ele e precisariam se mudar.

Ao prezarem estar entre parentes, os ciganos estabelecem condições necessárias que os possibilitem morar agrupados em barracas. Essas condi- ções funcionam como os pilares necessários para estarem apoiados, e quando se desestabilizam, ficam desapoiados, o que pode provocar uma reorganiza- ção da espacialização interna dos acampamentos, ou os deslocamentos entre a rede de acampamentos.

A frase do cigano Ed sintetiza bem essa noção de que nem todo lugar lhes convêm: “Nem todo lugar é um pouso; tem lugar que não presta não”. Existem condições necessárias para a escolha do terreno, como descreve Noá: “Terreno não é da gente, então tem que caçar um, olhar se cabe todo mundo, caçar o dono ou alguém da prefeitura; ter água no terreno está em primeiro lugar e depois cada um caça o seu lugar para colocar a barraca”. Procurar por um terreno onde “caiba todo mundo”, remete ao modo como valorizam estar junto. Se um terreno não é suficientemente extenso para abrigar uma turma de parentes, não funcionará como um pouso. Na Figura 13 e 14 podemos ver a amplitude dos pousos. Em agosto de 2016 haviam 15 barracas em Araras (Figura 13) e em Tucano (Figura 14), em maio de 2017, haviam 17 barracas e mais um casa abandonada que foi apropriada por um cigano.

Inclusive, a noção de terreno para os ciganos não equivale a 1 lote, mas a um conjunto de lotes ou a um terreno extenso onde possa abrigar pelo menos todas as barracas de uma turma. Kátia diz que sonhava em ter uma chácara bem grande, e poder cuidar da sua horta e das galinhas. Noá também expressou o desejo de ter um terreno grande: “Queria um terreno de 1000 me- tros quadrados só, não precisava de mais não, pra ficar com a família e fazer uma horta”. E Marconi disse que se tivesse um terreno: “teria uns 3 lotes ou 1 lote grande, uns 80 mil. Faria galpão, pode chover que não sai e nem levanta, 100% melhor. É aberto do lado, e cercado de lona” e Romero ia “dividir entre os irmãos 150 mil reais para comprar um terreno, separa e compra”.

Figura 13: Barracas em Araras, 2016

Figura 14: Barracas em Tucano, 2017 Fonte: Google Earth com intervenções da autora, 2017.

Os atributos físicos apontados como pré-requisito para um pouso in- cluem o terreno ser plano, extenso o suficiente para as barracas, e sem possi- bilidade de enchente. Como foi apontado pelo Romero “o terreno tem que ser plano, senão não ficamos não”. Há um certo planejamento antes da mudança, e por isso, podem ir com antecedência no terreno para limpar a vegetação com enxada ou caso ela esteja muito alta contratam alguém com máquina de cortar grama. Quando há muita vegetação alta no terreno, dizem que ele está

sujo e precisa ser limpo.

Adoniran já acampou em vários lugares de Minas Gerais e Espírito Santo, porém o único lugar que diz não ter gostado foi um município no norte do estado do Espírito Santo, onde após um período de chuva intensa e enchente, prejudicou o abastecimento de alimentos na cidade. Em perío- dos de chuva intensa, os ciganos em Tucano temem uma enchente, porque o acampamento fica ao lado de um rio (Figura 15), mas isso não os impediu de ficarem lá porque segundo alguns vizinhos aquele rio só inunda a cada 10 anos. Bruna reuniu em sua fala o que seria um pouso bom para os ciganos:

Ah é que nem aqui [Tucano], aqui é bom, o ruim aqui é o rio só, porque se chover muito pode inundar. Lugar ruim pros ciganos é onde que não tem água pra eles poderem engatar, puxar água; não tem energia, lugar de colocar energia; não tem o pouso assim que nem aqui, é barranco, aí é ruim. Não tem como a gente acampar.

A presença de abastecimento de água encanada no terreno é um fator de grande relevância, junto com a presença da rede de energia. Apesar de pre- ferirem terrenos com água encanada, não irão descartar a possibilidade de fi- car em terrenos onde se possa buscar água manualmente em nascentes, como aconteceu em um bairro da Serra onde um grupo de ciganos permaneceu por aproximadamente 8 meses em um terreno sem água encanada, coletada da nascente.

Em Canário (município da Serra) também não havia água encanada, porém aqueles que estavam acampados em terrenos próprios abriram poços artesanais onde permaneceram durante alguns anos e só saíram em razão de um assassinato de um dos ciganos que morava lá. Só não ficaram em Canário aqueles que não tinham terrenos próprios e, por isso, não podiam abrir poços artesanais, mas tiveram que ir para lá após terem de se mudar com urgência de Araras, onde permaneceram apenas alguns dias.

Figura 15: Vista aérea Barracas em Tucano, 2018 Fonte: Google Earth com intervenções da autora, 2018.

Além dos atributos físicos e de infraestrutura dos terrenos, os ciga- nos podem ter predileção por alguns bairros e municípios. Quando Bruna es- tava no pouso em Araras (município da Serra), ela dizia preferir o município de Cariacica porque os vizinhos interagiam mais com eles. Mas reconhece que “Araras é o lugar que os ciganos mais ficavam, porque o dono deixava, tinha tudo certo, era perto da Serra-Sede”. Kátia também compartilha essa opinião: “melhor lugar da “Vitória” (referia-se à Região Metropolitana de Vitória e não ao município de Vitória) é a Serra, tem conforto”.

O bairro Araras e o município da Serra eram considerados como um bom lugar para pousar porque tinham a autorização dos proprietários, os terrenos contavam com infraestrutura de água encanada e abastecimento de energia, e o bairro era perto de postos de saúde com atendimento considerado satisfatório. Porém, depois da morte de dois ciganos em 2017 nesse municí- pio, nenhum cigano quis pousar lá. Enquanto para Bruna, Araras era conside- rado o lugar onde os proprietários permitiam os ciganos acampar, para Kátia, Tucano (Cariacica) era esse lugar: “os proprietários aqui (Tucano) são tudo gente boa”.

Alguns dos critérios considerados como positivos para um bairro ou município, se dão em comparação ao pouso anterior. Depois que alguns ciga- nos de Araras se mudaram para Tucano, no município de Cariacica, muitos reclamaram do atendimento do posto de saúde e alegam preferir o que era oferecido na Serra. A Bruna foi uma das ciganas que trouxe opinião, apesar de que, antes de se mudar para Tucano, quando morava em Araras, alegava preferir Tucano. Já aqueles ciganos que não vieram de Araras, possuíam uma opinião diferente, como a Kátia, ao dizer que “as condições aqui (Tucano) são boas, só o posto médico que é longe, mas tem médico bom lá”. Assim, a variação do pouso anterior como referencial de qualidade pode justificar a opinião divergente dos ciganos sobre o pouso atual.

Kátia diz gostar de morar em Tucano pois “temos costumes já de morar aqui e bastantes conhecidos, todo mundo já ranchou aqui antes”. Isa- dora identifica o município da Serra como um lugar de predileção dos ciga- nos: “Lugar melhor que cigano gosta é na Serra, é mais conhecido, não dá enchente”. Para Periquito, o lugar que mais gostou de morar foi em Gover- nador Valadares, onde nasceu, justificando que “Minas é meu estado, estou

acostumado, e tenho mais amizade”. Tanto Isadora como Creuza e Alcides

mencionam como um atributo positivo ao bairro/município onde pouso está localizado o fato de terem conhecidos no lugar, estarem acostumados com o lugar ou serem lugares conhecidos pelos ciganos.

Conhecer o lugar ou ter conhecidos no lugar remete à frase citada acima do Ed: “lugar que a gente não conhece, a gente não vai não” e expri-

me o modo como preferem não se deparar com o desconhecido, e saber de antemão, das condições dos locais e ter a garantia de que se trata de um lugar onde são aceitos pelos proprietários e pela vizinhança. Essa noção também engloba a categoria de estar entre parentes, pois quando se mudam em dire- ção a outro lugar, procuram a garantia de outros parentes para recebê-los, ou proprietários já conhecidos, ou vizinhança já conhecida por eles para fins de interação social e trocas comerciais.

Apesar dos ciganos considerarem importante a infraestrutura do ter- reno e do bairro/município, não escolhem municípios e bairros centrais onde a infraestrutura é mais consolidada. Em toda a Região Metropolitana de Vitó- ria, que inclui os municípios de Vitória, Serra, Cariacica, Fundão, Guarapari, Vila Velha e Viana, apenas na capital Vitória foi onde os ciganos não acampa- ram porque procuram áreas onde acreditam “que não seja perto de muitos co- mércios, longe de lugar tumultuado e ao mesmo tempo longe de traficantes” (Adoniran). Além disso, vários apontam que Vitória “já tem muitas casas” e por isso não teria terrenos disponíveis para os ciganos pousarem.

Os acampamentos ciganos geralmente se localizam em bairros peri- féricos de ocupação recente (Figura 17; Figura 18). Tanto o acampamento em Araras, quanto em Tucano (Figura 16) e em Gavião eram próximos do ponto final de uma linha ônibus intermunicipal, o que eles alegam ser apenas uma coincidência. O acampamento em Sabiá, Canário e Carcará também são lo- calizados em bairros periféricos do município da Serra. Além de escolherem municípios periféricos da Região Metropolitana de Vitória, os acampamentos ficam nos bairros periféricos desses municípios, mas ao mesmo tempo procu- ram não ficar tão distantes de áreas centrai, pois são onde obtém renda através da venda e revenda de produtos.

Na primeira vez que fui para o acampamento em Tucano, depois que os ciganos acampados em Araras se mudaram para lá, a Margarida e o Romeo me perguntaram como eu os havia encontrado lá. Ao fazerem tal pergunta, não sabiam que a Bruna e a Ester haviam me explicado como chegar lá, mas essa curiosidade mostra como reconhecem que os lugares onde estão acam- pados não são tão fácies de serem encontrados. O Adoniran já havia dito em outra conversa que prefere acampar em locais mais reservados onde não seja tão perto de comércio e tumulto. De forma proposital ou não, devido aos lugares escolhidos para os acampamentos, os ciganos podem ficar invisibili- zados pelas prefeituras que não fazem buscativa por grupos ciganos. Em Ca- riacica, representantes da prefeitura desconheciam a presença de ciganos no município pois as áreas onde os ciganos já acamparam não são áreas centrais. Nota-se que, além da localização, dos atributos físicos e da infra- estrutura prévia do terreno e da autorização do proprietário ou da prefeitura, a

convivência estável entre os ciganos e entre ciganos e garrons funciona como um dos pilares de sustentação dessa lógica de apoio. Quando essa convivên- cia se reorganiza ou se desestabiliza, as terriorialidades ciganas também se reorganizam ou se desestabilizam.

Figura 16: Inserção urbana de Tucano

Figura 17: Inserção urbana de Araras

Fonte: Google Earth com intervenções da autora, 2018. Figura 18: Inserção urbana de Araras

CAPÍTULO 03