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2 MARCADORES DAS AFRICANIDADES NA REZA

2.4 Iniciação/senhoridade

Dona de seus segredos Eis a doce senhora a rezar Cura com as mãos os males Tira com reza o quebranto a orar

Inicia sua linhagem com devoção a encaminhar Zela pera a tradição não acabar.

As rezadeiras mantêm uma relação de tradição oral tal qual na África, no que diz respeito aos princípios de senhoridade e iniciação. Geralmente essas senhoras são pessoas idosas, com pouca escolaridade, mas que possuem intimidade com a palavra e têm larga vivência, algo bastante valorizado na cosmovisão africana, como ressalta Hampaté Bâ, ao comparar com a educação ocidental:

“Pode‑se dizer que o ofício, ou a atividade tradicional, esculpe o ser do homem. Toda a diferença entre a educação moderna e a tradição oral encontra‑se aí. Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil que seja, nem sempre é vivido, enquanto o conhecimento herdado da tradição oral encarna‑se na totalidade do ser”. (BÂ 1982, p.199)

Na família o mais velho repassa seus ensinamentos para o mais novo, assim a rezadeira ensina à filha que e vivencia na prática, o repasse de sua ancestralidade. Na África tradicional, os mais velhos são os doutores dos saberes e conhecimentos. São eles os detentores desses saberes e como mestres são respeitados, levam consigo a identidade africana e são os idosos também considerados sábios por serem repassadores dos saberes e construírem assim uma identidade em sua linhagem.

O aprendizado vem da experimentação, como ocorre com a reza, o repasse para o mais jovem da linhagem e isso aconteceu através das entrevistas. Eu levei o conhecimento com a experiência das leituras e seus teóricas, mas nada foi tão cheio de aprofundamento como estar com as senhoras da reza, aprendendo e entendendo suas práticas e a relação através dos marcadores com a África. “Desde a infância, éramos treinados a observar, olhar e escutar com tanta atenção que todo acontecimento se escrevia em nossa memória como cera virgem” (Hampaté Bâ, 1982)

Para A Filosofia africana, o aprendizado se dar pela experiência, escrevi sobre essa experiência com Claudia Oliveira e Rafael Ferreira, no livro organizado pelo professor

Gerardo Vasconcelos e duas alunas dele (Bruna e Cristiane) , oriundo de uma disciplina de filosofia no mestrado, momento em que houve abertura de falarmos de Filosofia africana no livro ‘Filosofia, Cultura e Educação.

Além dos conhecimentos realizados mediante escolas e ritos de iniciação, a educação tradicional acontece no intimo de cada família. O pai, a mãe e as pessoas mais idosas da casa são Os mestres/as, educadores/as que formam a primeira célula. Eles repassam os primeiros ensinamentos através de experiências de histórias, fábulas, lendas, jogos, provérbios e outros, porque acredita que esses ensinamentos ficam gravados nas mentes e que se aprende com mais força as lições repassadas. (SILVA,SILVA E SILVA, 2014, P. 35)

Essa tradição de repasse mostra a relação com a ancestralidade africana. O elo entre o presente, passado e futuro, ascendência e descendência, há uma circularidade nos repasses. Na África a sabedoria dos ancestrais é considerada a mais rica biblioteca. É na cultura africana que encontramos o respeito aos mais velhos e aos mortos por representarem a tradição através do conhecimento que carregam ao longo da vida, representando a ancestralidade.

Na África, os anciões têm o seu valor. Eles representam uma biblioteca viva porque são detentores de saberes, e nessa fase da vida se tornam multiplicadores de tudo que observaram e aprenderam. Bâ comenta: ‘[...] ancião, no sentido africano da palavra, isto é, aquele que sabe [...] poderia ter conhecimentos profundos sobre religião ou história, como também ciências naturais ou humanas de todo tipo. [...] uma espécie de ciência da vida (BÂ, 1982, p,190).

As rezadeiras mais velhas tendem a serem mais respeitadas pela experiência e sabedorias adquiridas, como na África tradicional: “(...) Ao contrário do nosso país, onde há certa obsessão pela juventude, na África Ocidental as pessoas disputam para ver quem é o mais velho” (BERNAT, 2013, pág. 32).

Assim, o mestre ou a mestra é quem inicia e cria as condições para esse aprendizado, em que a palavra e os gestos materializam um patrimônio de saberes e gestualidades, algo que não têm um ensino sistemático mas que é feito de observação, da mesma forma como a rezadeiras aprendem, pois não há livro e sim transmissão de uma força, como ressalta Rosa:

A cultura negra é uma cultura de iniciação e o saber iniciático, ao transmitir-se pelos mais velhos, difere da abstração de um conceito porque é plenamente uma força viva, associada ao Muntu, ao axé, ao patrimônio comunitário. O conhecimento afetivo, pois, depende da absorção de Axé. O mestre não ensina, ele inicia, cria condições para aprendizagem que inclui o indeterminado, apresenta repertórios gestuais e materiais às vezes até mesmo limitados, mas que se formam em combinatórias absolutamente abertas, infinitas variáveis. (ROSA, 2013, p. 65).

Outro dado importante no repasse pela iniciação, é que no caso da reza é mais comum serem as mulheres as detentoras dessa prática, lembrando a importância da figura da mulher na África, representada pelas candances que orientavam seus filhos faraós nas dinastias negras originadas pelo reino da Núbia. Hoje apesar do patriarcalismo, essa tendência se mantem na predominância das mulheres na Afroreza:

As histórias de vida das mulheres benzedeiras indicam a formulação de um discurso de identidade das mulheres e a demarcação de um espaço de poder feminino a despeito dos valores patriarcais que ainda atravessam a sociedade brasileira. (SANTOS, 2004, p. 131).

As rezas, são chamadas dos antigos, palavras transmitidas pela ancestralidade no dia e hora certo, quando as mais velhas sentem que a mais nova pode se apropriar ou a própria iniciante percebe que já desenvolveu o dom com alguma segurança:

Eu comecei .a pessoa tem que esperar o dia certo...um sobrinho meu, estava com o pé machucado e me pediu, ai rezei, depois ele disse que o pé desinchou e eu fiquei tão alegre, pedi então pra ele vir. Assim comecei, Deus me ensinou. (Rezadeira Tereza, 70 anos, Porteiras, 2015).

E a iniciação depende não somente de observação e memorização, mas também da capacidade de ler fenômenos sobrenaturais ou captar energias intuitivas ou de sonho:

O poder de curar procede da fonte divina e chega ao iniciado por meio dos entes exemplares, em condições especiais como, por exemplo, através dos sonhos ou das visões. A esse processo denominamos iniciação por revelação. (Santos, p.116, 2004).