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Inimigo ou aliado? Uma breve análise sobre o livro didático

4. O ENCONTRO ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA: A INTERVENÇÃO

4.2 ERA UMA VEZ UM PROJETO DE INTERVENÇÃO

4.2.5 Inimigo ou aliado? Uma breve análise sobre o livro didático

O livro didático pode ser um excelente colaborador no processo de aprendizagem, já que muitas vezes ele é o único instrumento de trabalho que o professor, na maior parte do país, possui em sala de aula. No entanto, muitas pesquisas o criticam com veemência, tratando-o como ‘inimigo’, uma vez que, em alguns casos, em sua estrutura são encontrados problemas de várias ordens, como por exemplo, usar o texto como pretexto para trabalhar com conteúdos gramaticais, não apresentar textos contextualizados de acordo com a grande diversidade nas regiões do Brasil, entre outros.

Além disso, o professor também tem recebido diversas críticas pelo uso que faz do livro didático em sala de aula. O autor Ezequiel Theodoro da Silva (2009,

p.41) cita como frase lapidar o que disse João Wanderley Geraldi: “os professores não adotam livros didáticos; eles são adotados pelos livros didáticos”, para produzir o ensino ou, quem sabe, apresentar algum instrumento de mediação para fingir que está ensinando.

Essa citação incomodou-me, pois nem todos os professores agem dessa forma. Geraldi não disse alguns ou muitos, ele afirmou os professores, dos quais faço parte. Magda Soares, em entrevista para Salto para o Futuro, 2008, trata de forma diferente a relação do professor e do livro didático, apresentando uma visão com a qual eu me alio. A autora afirma que

o papel ideal seria que o livro didático fosse apenas um apoio, mas não o roteiro do trabalho dele (do professor). Na verdade isso dificilmente se concretiza, não por culpa do professor, mas de novo vou insistir, por culpa das condições de trabalho que o professor tem hoje (SOARES, 2008, p.3).

Soares traz à tona a questão salarial dos professores, a qual os obriga a trabalhar em três turnos para ter uma boa condição de vida. Não estou aqui justificando as ações de alguns colegas que usam o livro didático como roteiro de trabalho, mas evidenciando que essa atitude não faz parte do cotidiano de todos os professores. São muitos fatores que interferem no uso do livro didático nas escolas, a começar pela sua escolha. Em minha escola, fazemos uma breve análise de todos os livros entregues pelas editoras, para depois optar por aqueles que consideramos o mais adequado.

No último PNLD, votei contra o livro ‘Português e Linguagens’, que acabou sendo adotado, por acreditar que não valorizava a literatura, como outras editoras. Depois do voto vencido, recebi o material para análise. Sempre que recebo um livro para trabalhar, a primeira coisa que faço é ler todos os textos e analisar de que forma vou utilizá-los, dificilmente trabalho na ordem apresentada pelos autores, vou caminhando pelos conteúdos apresentados, buscando atender às necessidades dos meus alunos(as).

Passei a analisar o conteúdo e o manual do professor para realizar dois trabalhos no âmbito do PROFLETRAS. Essas análises favoreceram um conhecimento profundo para que usasse o material a favor dos objetivos que desejava alcançar na intervenção e cumprir com os conteúdos propostos para o 6º ano. A respeito do manual do professor Ângela Paiva Dionísio, afirma

Os autores de livros didáticos costumam apresentar um Manual do professor, em que esclarecem sobre as correntes teóricas em que funda, suas obras, mas nem sempre há uma correlação entre tais teorias e as atividades propostas no livro do aluno. Algumas vezes, parece haver uma estratégia de marketing e não uma orientação teórico-metodológica (DIONÍSIO, 2016, p.85).

O livro em questão traz na introdução do manual do professor a informação de como ele tem sido acolhido com entusiasmo por um grande número de professores, com o objetivo de transformar sua prática no ensino de língua portuguesa. Os autores afirmam que aprofundaram a proposta de um trabalho consistente de leitura, utilizando uma seleção criteriosa de novos textos, comprometida com a formação de leitores competentes em todos os tipos de textos e gêneros em circulação social, observando a perspectiva enunciativa da língua.

No entanto, em muitas questões propostas no livro, somente o Descritor 1 – localizar informações explícitas em um texto – é explorado, poucas vezes são questionadas informações implícitas, indo de encontro às ideias sugeridas no manual do professor, onde a língua é apresentada como interação, texto, como processo e leitura, como prática social. Nesse aspecto, o livro não alcança a dimensão infratextual, que, segundo Bortone (2008), é tudo aquilo que está abaixo da superfície do texto, mas que é decisivo para sua coerência.

Em outros momentos, como na seção ‘Cruzando linguagens’, é solicitado aos alunos que assistam filmes, como O jardim secreto. Entretanto, em muitas escolas públicas em que o livro é adotado não há condições físicas para a exibição, prejudicando, dessa forma, a execução das atividades sugeridas. Ainda assim, importante é ressaltar que a proposta é muito interessante, pois pode levar o educando a analisar diferentes gêneros.

Na análise do manual do professor, busquei conceitos como já apresentados, sobre escrita, reescrita, leitura para aproximá-los das ideias do meu projeto de intervenção. Não poderia de forma alguma desprezar um material que estava ao alcance dos meus alunos.

Ao tratar a leitura de forma específica os autores demonstram um interesse na formação do leitor, lembrando que leitor competente é aquele que por iniciativa própria, seleciona de acordo com suas necessidades e interesses, o que ler entre os vários tipos de textos. Para tanto, sugerem que a escola promova uma prática

constante de leitura, salientando que o professor também seja um bom leitor, para proporcionar aos discentes um convívio estimulante com a leitura.

No que diz respeito à produção de texto, os autores afirmam que a obra leva em conta a proposta de ensino a partir dos gêneros do discurso ou gêneros textuais. Os autores trazem a concepção de gênero de acordo com Bakhtin(1997), além de Schneuwly(2004). Segundo Bakhtin(1997), todos os textos que produzimos, orais ou escritos, apresentam um conjunto de características estáveis, essas configuram diferentes textos ou gêneros textuais ou discursivos. Schneuwly(2004), por seu turno, compreende o gênero textual como uma ferramenta, isto é, como um instrumento que possibilita exercer uma ação linguística sobre a realidade.

Esses conceitos de produção textual foram utilizados durante a intervenção, visto que partimos da morfologia dos contos, apontada por Propp (2001), para que os alunos escrevessem textos que pudessem exercer uma ação linguística sobre a realidade, com a construção do livro. Ao tratar do gênero conto maravilhoso, que foi analisado anteriormente, os autores apresentam o domínio social como cultura literária ficcional. O aspecto tipológico é narrar, enquanto as capacidades de linguagem são vistas como: mimeses da ação através da criação da intriga no domínio do verossímil.

Sendo assim, o livro, se bem utilizado, pode apresentar-se como um importante aliado para o docente que deseja fazer com que o educando seja um leitor proficiente, com capacidade de ler além das palavras, nas entrelinhas. Nesse sentido, o aluno deixa de ser um decodificador, passando a gerar sentido. Faz-se necessário que o professor, para tanto, disponha de um tempo para analisar o livro em sua totalidade, observando os textos, as questões propostas para fazer um melhor uso desse instrumento em sala de aula.

Mesmo considerando o livro Português e linguagens como um poderoso aliado na intervenção, confesso que, a princípio, enxerguei-o como um inimigo. Eu sabia que havia uma unidade que tratava dos contos de fadas, só não imaginava o quanto. Portanto, imaginem, caros(as) leitores(as), minha perplexidade ao perceber o quanto a Unidade 01 era parecida com meu projeto, cujo tema é: “No mundo da fantasia”. A semelhança era tamanha que até algumas frases as quais havia utilizado na escrita da intervenção estavam no livro.

O sentimento que tive foi de frustração, pois mesmo tendo consciência que meu tema não era inédito, nunca pensei em encontrar a proposta em um livro

didático. Pensava: é como estar aplicando um projeto de Cereja e Cochar (autores do livro). Mas o que fazer quando o projeto já tinha sido apresentado aos pais e aos alunos que o receberam tão bem? Pensei até mesmo em desistir, em começar do zero. No entanto, decidi rever o livro e pensar em alternativas para que a escrita do livro pelos meus alunos(as) fosse algo diferente da proposta apresentada no livro didático.

O primeiro texto apresentado no livro didático é o conto “As três penas”, dos irmãos Grimm; logo após vem a recriação “ O patinho bonito”, de Marcelo Coelho e em seguida um cartum de Mordillo sobre Rapunzel. Fiquei feliz em não encontrar dois dos contos que escolhi para o projeto, e encontrar uma recriação do conto “O patinho feio”. Resolvi selecionar atividades e conteúdos teóricos sobre o tema, como: boxes sobre os irmãos Grimm e Andersen, explicações sobre o gênero conto, citações de Wladimir Propp, entre outros. Como exemplo, seguem os boxes das páginas 35, sobre Andersen e o da página 15, sobre os irmãos Grimm.

Figura 10 – Fragmento escaneado pela professora da página 35 do Livro Didático Português: linguagens, de William Cereja e Thereza Cochar – 6º ano, 2015.

Figura 11 - Fragmento escaneado pela professora da página 35 do Livro Didático Português: linguagens, de William Cereja e Thereza Cochar – 6º ano, 2015.

Fonte: acervo da professora pesquisadora

O livro didático sugere formas de recriar os contos, porém não utilizei essa sugestão, pois desejava que meus alunos se sentissem livres para criar, sem ter um modelo a seguir, exercendo sua autonomia. Algo muito significativo que também usei foi a parte que apresenta um roteiro de revisão e reescrita, como já apresentado no capítulo dois, que oferece uma direção para esse momento tão importante para uma escrita coerente e coesa.

Na seção Intervalo do livro é proposta a produção de um livro com os contos. Desse momento utilizei o roteiro “Como montar o livro de contos”, pois o mesmo apresenta uma orientação clara do que é necessário para uma boa organização do livro. Além disso, sugere uma atividade para desenvolver a oralidade, que apresenta a história dos contos de fadas, lembrando-nos da tradição oral.

Dessa forma, posso ratificar que o livro didático Português e Linguagens foi um importante aliado durante o projeto de intervenção. Além de colaborar com teorias a respeito do gênero literário contos de fadas, apresentando a morfologia dos contos de Propp, com boxes sobre os autores dos contos utilizados, também colaborou para que conseguisse aliar a literatura com conteúdos gramaticais a partir das seções, nas quais apresentava o uso das classes gramaticais na construção do texto.