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3. Fatores internacionais (2): a teoria dos regimes internacionais e o Regime Financeiro

3.3. Teorias e o regime financeiro internacional

3.3.2. Institucionalismo neoliberal

Seguindo a proposta de Hasenclever de classificar as escolas teóricas segundo seu grau de institucionalismo, pode-se dizer que o institucionalismo neoliberal está um patamar acima do realismo. As diferenças entre as duas correntes são menores, contudo, do que seus nomes sugerem. Ambas coincidem, sobretudo, em relação às premissas de orientação racionalista e sistêmica. Os Estados, nesse contexto, são os principais atores no sistema internacional, cujas preferências são estabelecidas a priori e de fora para dentro, pela lógica da competição internacional, e que atuam num sistema anárquico para maximizar os seus interesses. Ruggie chama essas semelhanças de “convergência dos neos” ou de “neoutilitarismo”,224 mas vale lembrar que se trata de uma síntese consciente, como se depreende do seguinte trecho de Keohane:

For these reasosns, the analysis of this book begins at the systemic level. I focus on the effects of system characteristics because I believe that the behaviour of states, as well as other actors, is strongly affected by the constraints and incentives provided by the international environment. When the international system changes, so will incentives and and behaviour. My ‘outside-in’ perspective is therefore similar to

that of systemic forms of Realist theory, or ‘structural Realism.’ 225

O institucionalismo neoliberal mantém, ainda, uma relação ambígua226 com a teoria da estabilidade hegemônica. Ao mesmo tempo que representa uma resposta à assertiva realista de que os padrões de cooperação declinam com a erosão do poder da potência hegemônica, o institucionalismo neoliberal se apóia na hegemonia para explicar, se não a continuidade, pelo menos a formação dos regimes, antes que eles adquiram dinamismo próprio para subsistir em

223

Fonte: Federal Reserve (em www.federalreserve.gov/releases/h15/data/m/fedfund.txt, consultado em maio de

2004).

224 Ruggie, Constructing the World Polity…, 1998, págs. 4-11.

225

Robert O. Keohane. After Hegemony: Cooperation and Discord in the World Political Economy. Princeton: Princeton University Press, 1984, pág. 26 (grifo meu).

226

bases mais simétricas de cooperação. Parafraseando Keohane, para entender o institucionalismo neoliberal, é preciso ir além do realismo, não descartá-lo.227

As duas escolas apresentam, contudo, diferenças analíticas importantes em relação àquelas premissas comuns. Embora tanto uma como outra escola caracterizem o Estado como um ator que maximiza sua utilidade, os institucionalistas neoliberais ressaltam a importância dos ganhos absolutos, não só dos ganhos relativos, ao contrário dos neorealistas. Segundo Krasner,228 neorealistas e neoliberais tendem a privilegiar efeitos diferentes da anarquia. Os primeiros realçam o “estado de guerra” e os conflitos distributivos, enquanto os últimos se concentram nas “falhas de mercado” decorrentes da anarquia. Para os neoliberais, podem existir interesses comuns num contexto de anarquia e o desenvolvimento de padrões de cooperação e instituições viabilizaria um aproveitamento ótimo desses interesses. Em resumo, os regimes diminuem os custos de transação e as distorções de percepção sobre o comportamento dos outros Estados, mediante a difusão de informações, o monitoramento da implementação e outras soluções. Num ambiente em que prevalecesse apenas a competição, os Estados poderiam até realizar, cada um por si, aqueles interesses comuns, só que de modo menos eficiente.

A depressão da década de 1930 teria sido a grande falha de mercado que estimulou os Governos a se engajarem na negociação do regime financeiro internacional de Bretton Woods.229 Para os neoliberais, a hegemonia americana foi uma condição importante, porém sequer necessária ou suficiente para justificar o surgimento do regime, que se beneficiou igualmente da existência de um conjunto de interesses comuns entre os Estados em torno da preservação de uma ordenamento econômico aberto e capitalista (depois, os construtivistas indagarão sobre as causas da formação dessa preferência por um ordenamento econômico dessa natureza).

Durante a década de 30, cada país que desvalorizava sua moeda ou erguia barreiras ao comércio com terceiros acreditava estar agindo em benefício próprio, antecipando possíveis ações da mesma natureza por parte dos outros Estados. Era uma atitude totalmente racional,

227

Keohane, op. cit., pág. 16.

228

Apud Ruggie, op. cit., 1998, pág. 9.

229

Vale notar, contudo, que parece ser equivocado atribuir a Depressão dos anos 30 a um excesso de liberalismo, como fazem alguns autores. Em excerto reproduzido na página 139 deste texto, Williamson (1988), por exemplo, se refere à “liberdade generalizada dos anos 30”. Mais apropriado seria utilizar a expressão “anarquia”, uma vez que, embora o regime cambial praticado pelos países fosse flutuante, os propósitos de suas medidas de desvalorização não eram liberais. A avaliação majoritária nos anos 30, contudo, parece ter sido, de fato, que mais governo era necessário, não menos, embora tenham sido suas ações as responsáveis pelo agravamento da crise.

segundo uma ótica realista, pois o país que deixasse de adotar uma política de nacionalismo econômico, do tipo “beggar thy neighbour”, poderia ter perdas ainda maiores do que as de seus vizinhos. Não se tratava de desconhecimento por parte desses Estados dos benefícios do livre comércio, mas de um problema de “ação coletiva”, em que nenhum Estado queria assumir o risco de fornecer um bem público como o livre comércio, que seria desfrutado gratuitamente pelos demais Estados, sem garantia de reciprocidade. De uma perspectiva institucionalista, contudo, todos os atores eram prejudicados em termos absolutos nesse sistema de pura auto-ajuda, pois nenhum deles auferia os benefícios da abertura comercial; a vantagem do mecanismo de câmbio fixo de Bretton Woods, associado ao regime de comércio multilateral do GATT, foi conferir previsibilidade ao comportamento dos Estados, que poderiam, no novo sistema, abrir suas economias e extrair ganhos absolutos da expansão do comércio internacional, sem serem surpreendidos e punidos com o fechamento das economias rivais ou com a desvalorização competitiva de suas moedas.

A discussão sobre ganhos relativos ou absolutos pode ser aplicada também às relações dos Estados Unidos com a Europa e o Japão no imediato pós-guerra,230 embora essa questão seja inseparável da política de segurança da Guerra Fria. Se apenas os ganhos relativos tivessem importância, diriam os institucionalistas neoliberais, os Estados Unidos não se teriam empenhado em recuperar as economias dos países europeus e do Japão devastadas pela guerra, pois os amigos de hoje podem ser os inimigos de amanhã. É provável que uma tal política de omissão teria efeitos graves sobre a economia americana, mas é igualmente provável que um colapso daqueles países teria ajudado a manter ou até aumentar a distância entre a economia americana e as demais. Em lugar disso, os Estados Unidos preferiram enriquecer-se e promover condições para que os outros países também enriquecessem, mesmo que às custas da redução de sua participação no produto bruto mundial.

A continuidade das instituições e do regime de finanças internacionais, apesar das evidências de declínio relativo dos Estados Unidos e após o colapso do mecanismo de câmbio fixo, é invocada pelos autores neoliberais como prova da durabilidade dos regimes quando existem interesses comuns.

O regime de Bretton Woods, na verdade, enfrentou problemas de implementação desde o seu início, tendo sofrido modificações ao longo das décadas de 50 e 60 que visavam, na prática, tornar o dólar inconversível em ouro bem antes da decretação formal dessa

230

É necessário confrontar essas considerações com as ressalvas apresentadas pelos próprios autores realistas à questão dos ganhos relativos, mencionadas antes neste capítulo.

medida, em 1971. Aqueles ajustes não se relacionavam, entretanto, apenas com a incapacidade dos Estados Unidos de manter reservas em ouro compatíveis com a quantidade de dólares em circulação no exterior. Sua adoção foi motivada também pela necessidade de aperfeiçoamento do sistema, a partir da avaliação de que a conversibilidade do dólar em ouro não só era prejudicial ao papel do FMI de proporcionar liqüidez à economia internacional, mas também favorecia especuladores, que apostavam contra a solidez das moedas nacionais.

O mecanismo de câmbio fixo, antes a regra central do regime, passou a representar um fator de instabilidade para o sistema, ao tornar os países – os Estados Unidos inclusive - vulneráveis a ataques especulativos diante de qualquer sinal de desequilíbrio nas contas externas. A adoção do câmbio flutuante tornou-se uma condição para que não fosse comprometido o interesse comum na eficiência e nos benefícios para o bem-estar do intercâmbio econômico-financeiro internacional. Com o desaparecimento da regra explícita do câmbio fixo, outros elementos do regime continuaram a desempenhar sua função de tranqüilizar cada Estado sobre as práticas e intenções dos outros, como mecanismos de monitoramento, os financiamentos do FMI e a imposição de condicionalidades na concessão de empréstimos, evitando, de modo geral, desvalorizações competitivas em resposta a dilemas de ação coletiva.231

Dizer que o regime sobreviveu ao declínio da hegemonia americana não significa, contudo, negar seu enfraquecimento. O próprio Keohane admite que os padrões de cooperação colocados em prática pelos países industrializados na década de 70 funcionaram imperfeitamente e que interesses compartilhados e instituições existentes tornam possível a cooperação, mas a erosão do poder americano impõe que isso seja feito de modo diferente232.

Algumas das falhas de mercado do sistema financeiro contemporâneo, em torno das quais se poderia reformular a noção de “interesse comum” da comunidade internacional em matéria financeira, foram descritas no capítulo anterior - notadamente as distorções e assimetrias de informação que levam os agentes econômicos a investirem “demais” numa economia emergente ou a se retraírem de modo exagerado a partir de uma avaliação superficial do risco por ela representado, bem como os problemas de coordenação entre a multiplicidade de credores que, nos dias atuais, investem nos mercados emergentes. As crises financeiras ocorridas desde os anos 1990 evidenciam que comportamentos individuais perfeitamente racionais dos agentes econômicos, que investem nos países emergentes em

231

Keohane, After Hegemony…, 1984, págs. 209-210.

232

busca de maior rentabilidade e recolhem seus recursos em busca de segurança, produzem resultados coletivos subótimos, muitas vezes sem correspondência no risco macroeconômico real do país que sofre um ataque especulativo.

Para Joseph Stiglitz, o FMI deverá articular uma teoria coerente sobre as falhas de mercado causadoras da instabilidade contemporânea das finanças internacionais, que justifique sua própria existência e suas intervenções no mercado, assim como Keynes e outros haviam formulado uma teoria para fundamentar o sistema de Bretton Woods, com base na experiência da década de 1930.233

Stiglitz se filia à tese do moral hazard, ao afirmar que os programas de ajuda do FMI tornariam desnecessária a adoção, pelos investidores e tomadores de empréstimos, de medidas precautórias - ou seja, a adoção de mecanismos de “seguro” - contra o risco de desvalorização cambial e depreciação de ativos.234 A falha de mercado a ser combatida estaria, portanto, sendo induzida pelas próprias instituições do regime financeiro internacional. O autor defende que a função de financiamento ou de provisão de liqüidez do Fundo ceda espaço a um papel de natureza mais regulatória. Stiglitz chega a apoiar propostas muito semelhantes às da vice diretora-gerente do FMI, Anne Krueger, de estabelecimento de um mecanismo de moratória ou concordata soberana. Destituídos da garantia de recebimento integral de seus créditos, os credores seriam levados a adotar o tipo de comportamento cauteloso preconizado pelo autor e a “privatizar” a proteção contra o risco inerente a qualquer investimento. A orientação vigente no FMI, em contraste, “socializa” os prejuízos dos especuladores e permite a continuidade dos seus negócios.

Para Jean Tirole, a falha de mercado consiste em que os credores não podem se cercar, junto a seus devedores soberanos, ou aos devedores privados em terceiros países, das mesmas garantias – a segurança de intervenção judicial para assegurar o pagamento, mediante medidas como o arresto de bens, por exemplo - que acompanham a concessão de empréstimos em seus próprios países.235 Em conseqüência disso, o sistema incentiva os agentes econômicos a privilegiarem investimentos de curto prazo em países emergentes, de mais fácil recuperação, e, em contrapartida, a cobrarem um prêmio mais elevado de seus devedores, pela garantia limitada de repagamento.

233

Globalization and Its Discontents, 2002, pág. 197.

234

Ibid., pág. 203.

235

Existem, por conseguinte, novos desafios e falhas de mercado visíveis nas finanças internacionais contemporâneas, que tornam vantajosa a cooperação entre os países. A presença de um Estado hegemônico, engajado na promoção de interesses comuns, tornaria mais freqüente o cumprimento das normas, princípios e regras do regime pelas demais unidades integrantes do sistema. Mesmo na ausência desse ator hegemônico, a existência de alguma cooperação seria, entretanto, mais desejável e benéfica para todos do que nenhuma cooperação.