• Nenhum resultado encontrado

O instituto da deslegalização na seara do direito tributário e sua correlação com os princípios constitucionais estudados.

Define-se deslegalização como uma forma legislativa da lei rebaixar formalmente seu grau normativo, afim de permitir que sua matéria possa ser modificada por regulamentos, ou, em outras palavras, deslegalizar consiste na possibilidade de o Poder Legislativo transferir, por meio de lei, sua competência constitucional a outro órgão, para esse tratar da matéria por meio de ato administrativo.

Assim leciona José dos Santos Carvalho Filho (1997 p. 39):

Originariamente na França, o fenômeno da deslegalização, pelo qual a competência para regulamentar certas matérias se transfere da lei (ou ato análogo) para outras fontes normativas por autorização do próprio legislador: a normatização sai do domínio da lei (...) para o domínio do ato regulamentar (...). O fundamento não é difícil de conceber: incapaz de criar regulamentação sobre algumas matérias de alta complexidade técnica, o próprio Legislativo delega ao órgão ou à pessoa administrativa a função específica de instituí-la, valendo-se dos especialistas e técnicos que melhor podem dispor sobre tais assuntos (...) referida delegação não é completa e integral. Ao contrário, se sujeita a limites. Ao exercê-la, o legislador reserva para si a competência para o regulamento básico, calcado nos critérios políticos e administrativos, transferindo tão somente a competência para regulamentação técnica mediante parâmetros previamente enunciados na lei.

Logo, tal medida é um instituto que visa fazer uma releitura ao princípio da legalidade, assim como o da reserva legal, entregando maior flexibilidade à atuação administrativa, por meio de alterações céleres do conteúdo normativo, sem necessidade de se percorrer o demorado processo legislativo ordinário.

Nesse viés, importante relembrar que a legalidade tributária, que se apresenta como regra constitucional soberana, constitui garantia fundamental do cidadão, portanto, cláusula pétrea. E, nem o Poder Constituinte Reformador poderia ampliar suas exceções. Assim, percebe-se evidente controvérsia quanto à possibilidade do uso da deslegalização tributária sem autorização constitucional, ou, quanto a possibilidade de a lei ordinária derrogar norma constitucional.

Embora carregue uma incompatibilidade teórica com os princípios básicos tributários, a medida de delegar a competência a órgão inferior vem sendo usada de forma corriqueira no Brasil, na qual previsões legais concedem a dispositivos infralegais – portarias ou decretos – permissão para dispor sobre aspectos da tributação.

29 Assim, o tema foi levado diversas vezes à justiça tupiniquim, como exemplo por meio do Resp. 1586950/RS, nele discutindo-se a possibilidade de o Executivo reduzir e restabelecer, mediante decreto, as alíquotas da contribuição para o PIS (Programa de Integração Social) e da COFINS (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social) sobre combustíveis. Em que as leis fixaram, originalmente, percentuais altos, que foram largamente reduzidos mediante decreto e que, sempre que o Poder Executivo considera necessário, aumenta mais alguns pontos percentuais.

Na análise do caso, decidiu-se pela legitimidade do decreto em relação à lei, cabendo destaque a parte do voto do Ministro Gurgel de Faria:

Embora entenda que esta não é a melhor técnica, como já expressei anteriormente – pois a alteração de alíquotas através de Decreto deveria ficar restrita às hipóteses previstas na Carta Política –, uma vez considerada constitucional a Lei, permite-se ao Poder Executivo tanto reduzir quando restabelecer alíquotas do PIS/COFINS sobre as receitas financeiras das pessoas jurídicas. Então, tanto os Decretos que reduziram a alíquota para zero quanto o Decreto n. 8.426/2015, que as restabeleceu em patamar inferior ao permitido pelas Leis n. 10.637/2002 e 10.833/03, agiram dentro do limite previsto na legislação, não havendo que se falar em ilegalidade.

As decisões de tribunais seguiram a mesma linha quanto a deslegalização, estabelecendo que embora seja a lei o único instrumento adequado e competente para inovar o ordenamento jurídico, cabe a deslegalização atuar no plano da efetividade/aplicabilidade, estando presente somente na complementação de lacunas deixadas pela própria lei, sendo impossível sua aplicabilidade quanto a suspensão, supressão ou revogação de novas disposições.

Robertônio Santos Pessoa (2003, p.101) segue esse raciocínio destacando que;

Opera efeitos, tão somente, no campo de aplicabilidade, que se trata da delimitação do campo de efeitos da norma jurídica.[...] Todavia, no que se refere à aplicabilidade da norma, está será delimitada, no que se refere a seus aspectos técnicos e não políticos, por meio da edição de um ato normativo derivado do Poder Constituído Executivo, nos termos e limites previstos na delegação que a lei traz.

Dessa maneira, o respeito a legalidade, assim como outros limites legais, destacados na própria Constituição Federal em seu artigo 5º, são supremos, e, portanto, a complementação da lei não pode ser livre ao ponto de inovar a própria ordem jurídica, com novas disposições que transcendem as próprias barreiras legais.

Assim, reitera J.J. Canotilho (2000, p. 837) quantos aos limites que o tema deve encarar:

Este princípio não impede, rigorosamente, a possibilidade de deslegalização ou de degradação do grau hierárquico. Neste caso, uma lei, sem entrar na regulamentação da matéria, rebaixa formalmente o seu grau normativo, permitindo que essa matéria possa vir a ser modificada por regulamentos. A deslegalização encontra limites constitucionais nas matérias constitucionalmente reservadas à lei. Sempre que exista uma reserva material-constitucional de lei, a lei ou decreto-lei (e eventualmente, também, decreto legislativo) não poderão limitar-se a entregar aos regulamentos a disciplina jurídica da matéria constitucionalmente reservada à lei.

Embora sofra resistência de princípios basilares tributários, o instituto da deslegalização tem pretextos íntegros, esse de transferir a competência normativa técnica para a seara infralegal, por ausência de expertise técnica de certos assuntos pelo Poder Legislativo.

Dessa forma, precisa-se de formação especializada para a regulação de certas matérias, não havendo como se exigir na seara infralegal tamanho saber, sendo que a setorização normativa do ordenamento jurídico tende a se tornar cada vez mais especialista, a fim de melhor atender as exigências da sociedade.

A essa corrente o STF vem filiando-se quanto a deslegalização no âmbito tributário, como demonstra decisão a seguir.

Tributário. IPI. Artigo 66 da Lei n. 7.450/1985, que autorizou o Ministro da Fazenda a fixar prazo de recolhimento do IPI, e Portaria n. 266/1988/MF, pela qual dito prazo foi fixado pela mencionada autoridade. Acórdão que teve os referidos atos inconstitucionais. Elemento do tributo em apreço que, conquanto não submetido pela constituição ao princípio da reserva legal, fora legalizado pela Lei n. 4.502/1964 e assim permaneceu até a edição da Lei n. 7.450/1985, que, no artigo 66, o deslegalizou, permitindo que sua fixação ou alteração se processasse por meio da legislação tributária (CTN, art. 160), expressão que compreende não apenas as leis, mas também os decretos e as normas complementares. (...) (STF. RE n. 140669/PE. Rel. Min. Ilmar Galvão, Tribunal Pleno, 02/12/98).

Embora a instituto da deslegalização demonstre ser de grande utilidade, oferece simultaneamente inúmeros perigos no âmbito do direito tributário, assim como a direitos individuais básicos do cidadão, podendo-se elucidar através da Portaria 33/2018 da PGFN, que “regulamenta” o bloqueio de bens sem autorização judicial.

31 A portaria permite que a administração pública realize restrição de bens de forma administrativa, sem necessidade de processo judicial, ofendendo gravemente direitos individuais, como a ausência de contraditório e ampla defesa.

Logo, o instituto da deslegalização, embora ávido de muita utilidade, oferece riscos a entraves legais garantidores ao cidadão, tendo uma atenção ainda maior no âmbito tributário, onde tem-se uma extrema preocupação quanto aos princípios da reserva legal e da estrita legalidade como forma de defesa do cidadão perante o fisco.

E, embora tenha o STF filiado-se à corrente da deslegalização no âmbito tributário, a mesma parece apresentar ao regime tributário um caráter contraditório, talvez incompatível com os preceitos básicos de legalidade.

CONCLUSÃO

Pelo presente trabalho, foi possível perceber que o princípio da legalidade, o qual determina ser a lei a única forma do Estado coercitivamente exigir condutas de seus cidadãos, tem no âmbito tributário um espaço amplo e de grande relevância, em demonstrar e garantir as formas de defesa ao cidadão perante o fisco, por meio de princípios como a reserva legal e da estrita legalidade.

O princípio estudado no presente trabalho, embora apresente em sua essência um caráter absoluto da defesa do indivíduo frente a discricionariedade do Estado, não pode mais ser visto dessa maneira, uma vez que, a própria Constituição apresenta a possibilidade de inobservância parcial do princípio, comportando assim, atenuação, mitigação, ou simplesmente exceção a sua regra.

Entretanto, a pesquisa demonstrou que, embora seja possível entregar maior liberdade a administração púbica em impostos específicos, não significa que seja deferido o poder ilimitado ao Estado, ou seja, até mesmo nos momentos de mitigação ao princípio, o respeito a legalidade ainda se faz necessário.

Ainda, foi possível perceber que as limitações ao princípio, inicialmente, exclusivamente constitucional, vêm recebendo novas formas de inobservância a garantia fundamental, sob uma perspectiva de avanço social e melhor satisfação administrativa do Estado, e que embora contraditória a origem do princípio, está sendo juridicamente aceita pelos tribunais.

Concluí-se, então, que esses novos institutos que mitigam o princípio, embora ávido de muita utilidade à administração, oferece riscos a entraves legais e as garantias do cidadão. E oferecem um risco ainda maior quando tratam de enfraquecimento aos princípios basilares do direito tributário, como da reserva legal e da estrita legalidade.

E, embora tenha o STF filiado-se a essas novas correntes inovadoras no âmbito tributário, as mesmas parecem apresentar ao um caráter contraditório, talvez incompatível com os preceitos básicos de legalidade e da defesa absoluta do cidadão e de seu patrimônio.

33

REFERÊNCIAS

AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2009 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891. Disponível

em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao91.htm> Acesso em 26/10/2018.

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao34.htm> Acesso em 26/10/2018.

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm> Acesso em 26/10/2018.

Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao37.htm> Acesso em 26/10/2018.

Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao46.htm> Acesso em 26/10/2018.

Emenda Constitucional 32 de 2001. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc32.htm> Acesso em 26/10/2018.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000.

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 30 ed. – São Paulo: Malheiros, 2015

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 9 ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2008.

COELHO, Sacha C. Navarro. Curso direito tributário brasileiro: Comentários à Constituição Federal e ao Códigos Tributário Nacional. 6. ed. Rio de Janeiro: editora forense 2011.

JARACH, Dino. Curso superior de derecho tributário. Buenos Aires. 1. Ed. 1969. P.24. GALIANO, Leonardo de Faria. As medidas provisórias como veículo introdutor de normas

tributárias. 1 ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2006.

MELO, José Eduardo Soares De. Curso de Direito Constitucional tributário. 6 ed. São Paulo. Dialetica, 2005.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito

Constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24 Ed. São Paulo. Atlas. 2009.

NIEBHR, Joel de Menezes. O novo regime constitucional da medida provisória. Primeira edição, Editoria Dialética, 2001

PESSOA, Robertônio Santos. Administração e regulação. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. SABBAG, Eduardo. Manual Direito Tributário. 6 ed. São Paulo, Editora Saraiva, 2014 STRAPASSON, Maria da Graça. Princípio constitucional da legalidade tributaria. Curitiba; Juruá, 2009.

TORRES, Ricardo Lobo. O princípio da tipicidade no direito tributário. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo, 2004.

Documentos relacionados