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Instruir com as mãos: comunicação gestual-visual e os surdos-mudos

2 SOBRE A HISTÓRIA DOS SURDOS : ENTRE ASPECTOS BASILARES E A

2.2 Instruir com as mãos: comunicação gestual-visual e os surdos-mudos

Um modo de soletrar no ar formando letras com os dedos58 – essa é uma das descrições sobre as maneiras de se instruir surdos-mudos59 no século XVI. Tal referência alude a atividades do monge

beneditino Pedro Ponce de León (1520 – 1584), que consolidou seu trabalho com filhos da aristocracia espanhola. A referência a tal personagem compõe o quadro de práticas que são frequentemente consideradas centrais para a gênese da educação relativa à surdez (Reily, 2007) e

58 Reily (2007) aponta o relato de testemunhas oculares sobre a utilização de um alfabeto manual (apud Plann, 1997, p.30).

para a constituição das línguas de sinais. Tal religioso católico teria ensinado surdos-mudos a escreverem e a falarem. O acesso a tais possibilidades comunicativas permitiria apreenderem a fé católica e, no caso de nobres60, também estavam em questão os direitos às heranças materiais e

de status.

Os poucos registros históricos sobre o trabalho de Ponce de Léon indicam que ele utilizava uma metodologia que abrangia uma forma de comunicação apropriada de mosteiros beneditinos61, onde o voto do silêncio instituído como prática cotidiana teria levado à

comunicação por sinais. Conforme dedução de Plann (1997), essa comunicação de mosteiros talvez tenha sido complementada pela forma de comunicação composta por gestos caseiros que o monge aprendeu com seus educandos: os irmãos Velasco. A publicação Refugium Infirmorum por

el Padre Fray Melchior de Yebra (1593) apresenta uma sistematização de configurações manuais que

teriam circulado em mosteiros beneditinos na época de Ponce de Leon.

Sabe-se, conforme esses dois exemplos, que a Igreja católica guarda relações de longa duração com a surdez. Reily (2007), em sua investigação sobre o papel dessa Igreja nos primórdios da educação de surdos, argumenta que, diferentemente da educação dos deficientes

mentais62 originada na Europa e posteriormente disseminada na América sob o viés da medicina, a educação do surdo constituiu-se dentro do contexto religioso (p. 308).

60 O monge beneditino teria se envolvido com a educação de surdos depois que foram enviados ao mosteiro de São Salvador os irmãos Francisco e Pedro Fernández de Velasco y Tovar, filhos de um casamento consanguíneo.

61 Pesquisadores como Daniels (1997, apud Reily 2007) suspeitam que o beneditino Pedro Ponce de León tenha se encontrado com o franciscano Yebra, que já havia sistematizado configurações manuais utilizadas em mosteiros durante votos de silêncio. A desconfiança desse encontro se dá também porque ambos se relacionavam com a nobreza da corte espanhola.

Ao procurar elucidar questões sobre a origem da língua de sinais e o papel da Igreja monástica na invenção do alfabeto manual, Reily afirma que usuários da libras seguramente devem ao movimento monástico a invenção desse valioso instrumento de escrita no ar – o alfabeto manual (p. 324). Contudo, a origem de sinais dos surdos não se encontra nos sinais monásticos (Stokoe apud Reily, 2007).

Segundo também argumenta Reily (idem), a contribuição do movimento monástico consolidou, ainda, uma concepção de silêncio que seguramente mobilizou pioneiros a entenderem que a comunicação pelos gestos constituía uma forma válida e muito eficaz de significação (Reily, p. 324).

Assim, nos registros das iniciativas de personagens como Pedro Ponce de Léon, aparecem alguns dos referenciais da comunicação com surdos-mudos. Ponde de Léon, que teria conhecido os sinais beneditinos dos mosteiros, trabalhou também com rótulos – nomes escritos pregados em tudo; indicava as palavras escritas aos seus pupilos, associando a escrita à pronúncia da palavra (Reily, 2007, p. 321). Apesar de não serem muitos os registros históricos acerca da metodologia desse monge, considera-se que ele ensinou surdos-mudos a lerem, a escreverem e a falarem (Salgueiro, 2010). Dessa maneira, tais sujeitos, considerados frequentemente sob a égide da animalidade, da selvageria ou da monstruosidade, teriam podido ascender a uma das condições normativas fundamentais de humanidade – a linguagem – por meio de treinos que posteriormente serviram de base para formas de disciplinamento específicas.

Outras padronizações acerca das maneiras de lidar com a problemática da surdo-mudez aparecem através de outros personagens. A obra de Juan Pablo Bonet Reducción de las letras y arte

para enseñar a hablar los mudos (1620) descreve o papel de órgãos fonoarticulatórios para o ensino

de fala e da leitura; o alfabeto manual publicado por esse autor em 1620 – vinte e sete anos depois da publicação relativa à Yebra – é enquadrado em uma metodologia fonética de alfabetização. O conjunto de letras é reduzido para 21 sons, valorizando a representação sonora de cada elemento gráfico (Reily, 2007). Conforme Moura (2000), além da alfabetização e do ensino da gramática, a fala era ensinada pela manipulação dos órgãos fonoarticulatórios e pelo ensino das diferentes posições de mão para a emissão das “letras reduzidas” correspondentes do alfabeto.

A ênfase no aspecto fonológico da comunicação é ainda mais notável na figura de Johann Konrad Amman (1698-1774). O esforço em fazer os alunos sentirem as vibrações da voz ao colocar as mãos na garganta, bem como a associação do som das palavras aprendidas com a imagem escrita é atribuído a esse personagem.

Vários outros registros indicam, enfim, referenciais relativos à surdo-mudez, através de personagens tais como: Girolamo Cardano (1501-1576), John Wallis (1616-1703), George Dalgarno (1628 - 1687), Daniel Georg Morhof (1639-1691) – tutores, religiosos, cientistas, considerando apenas os séculos XVI e XVII. Padronizações e metodologias que conformam a surdo-mudez aparecem referidas e esses nomes, alguns se assemelhando mais, outros menos, às descrições que enunciei anteriormente.

Apesar de personagens dessa época (século XVI ou início do século XVII) já serem referidos como base para aquilo que se tornou a educação oral (Moura, 2000) em oposição à educação gestual-visual, é necessário enfatizar que nesse momento não estão em jogo concepções gestuais-visuais propriamente consideradas como sistemas linguísticos, pois ainda

que haja registros de época dessa última forma de comunicação, esta estava sempre subordinada à oralidade.

Do quadro que compõe maneiras de lidar com a problemática da surdo-mudez, em geral, é comum a preocupação com a alfabetização dos surdos-mudos, frequentemente com fins à cristianização e/ou à concessão de alguns direitos. Como pano de fundo de tais práticas, frequentemente são colocadas em questão as possibilidades do acesso à linguagem e/ou ao pensamento63. De qualquer maneira, nos termos dos procedimentos acima descritos, trata-se de

estabelecer, por exemplo: qual a melhor maneira de alfabetizar ou qual a melhor maneira de se fazer desenvolver as possibilidades de comunicação (gestual-visual e/ou oral-auditiva) sem mencionar a ideia de língua atrelada à comunicação gestual-visual.

Assim, essa última forma de comunicação frequentemente aparece como um suporte, ora defendido ora rejeitado, para o acesso à escrita, à leitura e/ou à fala. As posições de mão características da comunicação gestual-visual, descritas anteriormente

fossem estas correspondentes a letras, a fonemas ou a palavras

eram descritas como suporte para as práticas de instrução: ferramentas de correspondência para o aprendizado da escrita ou da fala.

As referências acerca do tema indicam que as padronizações de comunicação consideradas “plenas” são orais/auditivas e/ou escritas, a não ser talvez em círculos muito restritos e/ou privados. Sobre esse ponto, vale ressaltar a dificuldade em registrar de maneira mais duradoura formas de comunicação gestuais-visuais. Conforme argumenta Reily (2007), a

63 Tais discussões referem-se a controvérsias acerca das relações entre linguagem e pensamento, algo que não pretendo abordar aqui, dada a complexidade do tema. Apenas a título de exemplo, é comum a menção à Aristóteles, que duvidou da capacidade de reflexão dos surdos pois, para ele, pensamento seria necessariamente vinculado à oralidade.

dificuldade de captar a tridimensionalidade, o movimento, a expressividade dos sinais e sujeitá- los a um sistema de representação gráfica possível é um dos fatores que favorecem a perda destes com o tempo (p. 311).

Em síntese, apesar de observada certa continuidade histórica em termos das formas de comunicação utilizadas por surdos-mudos, não é possível deduzir as línguas de sinais diretamente destas ou atribuir o mesmo status às línguas de sinais conformadas atualmente a territórios em relação a certas formas de comunicação pouco sistematizadas.

Além disso, a própria categoria surdos-mudos em relação à categoria atualmente legitimada pelos discursos que afirmam a surdez como particularidade linguística e cultural – a saber, surdos – contém descontinuidades históricas. Surdo-mudo e surdo podem ser compreendidos como categorias classificatórias que implicam determinadas formas disciplinares [cada uma com suas peculiaridades] de regulação da surdez (Assis Silva, 2010).

Ademais, como veremos nos próximos tópicos, as línguas de sinais somente ganharam o status de sistema linguístico a partir da década de 1960, com as pesquisas inauguradas por Stokoe (1960). Trata-se, enfim, de relações históricas complexas e, por vezes, não lineares.