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1 PERCURSO ETNOGRÁFICO: NOS MEANDROS DA COMUNIDADE

1.4 A Reatech

A REATECH é uma feira internacional sobre deficiência, realizada no Centro de Exposições Imigrantes (localizado no bairro do Jabaquara, zona sul de São Paulo), onde desde pelo menos 2009 acontece tal evento. Nesta feira geralmente estão presentes entidades representativas relativas à surdez, empresas que fabricam produtos para tal público, (tais como aparelhos auditivos, implantes cocleares36), materiais sobre línguas de sinais, aplicativos e

dispositivos para tradução libras/português, associações de caráter desportivo ou ligadas a instituições religiosas, empresas e ONGs com projetos artísticos, instâncias do Estado ocupadas com políticas públicas relativas a pessoas com deficiência, indivíduos que trabalham autonomamente, de maneira direta ou indireta, com o tema “deficiência”: produzindo artesanato, divulgando livros sobre o tema, entre outros; vale pontuar que, no ano de 2011, foram reservados dois

35 Trata-se de uma festa temática cuja proposta é a dança mediada pela percepção não auditiva, mas por meio de sua vibração nos corpos percebida através dos sons (por exemplo, as “batidas” de uma música), sendo os surdos os protagonistas dessa festa. Em outros anos a festa aconteceu em outros meses e pude participar ainda da balada “Vibração”, uma festa com formato bem parecido, apenas organizada por pessoas diferentes.

36 O implante coclear consiste na colocação de uma prótese auditiva, por meio de cirurgia, em pessoas com surdez bilateral (em ambos os ouvidos), severa ou profunda (nível de audição). No capítulo 3 discuto alguns aspectos desta prótese.

corredores por expositores que eram praticamente todos relativos à surdez e esse setor foi denominado informalmente como ilha dos surdos, configurando um espaço próprio para a presença desses sujeitos.

As edições dessa feira têm promovido uma diversidade significativa de expositores. Estiveram presentes, em todas as edições a que compareci, instituições governamentais, grandes montadoras (vendendo veículos adaptados), agências de emprego, instituições financeiras, empresas divulgando e vendendo produtos vinculados à adaptação (próteses, órteses, cadeiras de rodas, animais treinados, equipamentos hospitalares, entre outros itens), escolas especiais, instituições associativas, agências de turismo e lazer, editoras, sindicatos, organizações relativas a esportes adaptados, autoescolas, entre outros segmentos.

Além de instituições financeiras e estandes de montadoras que ocupam geralmente parte ampla e central do Centro de Exposições, também há geralmente estandes de maiores dimensões tais como: do Governo do Estado de São Paulo, a Prefeitura de São Paulo, a Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa com Deficiência (CORDE), entre outros.

Nas ruas marginais do centro de exposições Imigrantes, marcam presença centenas de outras instituições. Há ainda um palco para performances artísticas, auditórios para seminários, fóruns e debates, uma área para competições esportivas ou atividades físicas orientadas (por exemplo, equoterapia) e uma praça de alimentação. Em geral, os expositores que mais me interessaram nesses últimos anos estiveram nesses pequenos estandes, promoveram palestras em um dos espaços para tal atividade ou apresentaram-se na seção denominada “Reashow” que tem acontecido em um dos diferentes auditórios ou no palco mencionado. Em uma das seções que

compareci da “Reashow”, por exemplo, foi ministrado uma espécie de workshop de libras, por membros da JW37.

Entre a maioria dos estandes aos quais compareci, as exposições/ofertas foram sempre muito variadas: vendiam-se livros relativos à surdez, artesanato produzido por surdos; expunham- se informativos sobre serviços especializados para surdos, tais como atendimento por psicólogos que se comunicavam em libras, serviços de interpretação por meio de tecnologias audiovisuais. Nos auditórios foram ministradas palestras sobre a surdez em seus variados pontos de vista. As palestras sobre aparelhos auditivos e implantes cocleares não se confundiram com as palestras em que a surdez era afirmada e performatizada como uma particularidade linguística e cultural.

Em uma das poucas palestras a que assisti, dentre as que defendiam a opção por implantes cocleares, a menção à libras apareceu quando uma pessoa na plateia perguntou qual o posicionamento do(a) expositor(a) em relação a tal língua. O (a) palestrante disse que não aconselhava proibir tal forma de comunicação, mas que também não a incentivava, pois cabia lembrar-se da possibilidade do(a) usuário(a) se acomodar à libras e desinteressar-se da comunicação oral-auditiva. Associou-se a modalidade gestual-visual à dimensão concreta (em oposição à abstração permitida pela modalidade oral-auditiva) e às barreiras diante da hegemonia da comunicação oral-auditiva. Defendeu-se, por fim, que, independentemente dessas condições adversas, naquele momento, a decisão deveria caber aos pais.

A REATECH mostrou-se, enfim, como um lugar que era diferente daqueles círculos aos quais eu estava mais habituada. Além da ilha dos surdos, havia expositores que apresentavam falas

37 Denominação cuja sigla significa Jehovah’s Witnesses (Testemunhas de Jeová) e foi apresentada no evento por essa instituição religiosa. Apesar do âmbito religioso não ser o foco dessa pesquisa, vale ressaltar que esse dado confirma a continuidade entre agentes religiosos e comunidade surda, como menciono também no segundo capítulo.

muito diferentes dos discursos dos meus principais interlocutores. A surdez mostrava-se como um universo ainda mais amplo e complexo. Meus principais interlocutores me levaram a lugares de afirmação da libras, da cultura surda, mas também me levaram a espaços de tensões e disputas, as quais eu não podia perder completamente de vista.

Das palestras que destacaram a importância da libras e apresentam os surdos sob um olhar que eu há algum tempo já conhecia, foi muito comum reconhecer meus principais interlocutores. Palestrantes dos seminários a que assisti comumente eram vinculados a instituições associativas. A Feneis, por sua vez, ao menos nos últimos cinco anos esteve presente, não somente por meio de seu estande, mas com a divulgação de suas diretrizes políticas, de seus serviços, oferecimento de consultoria e cursos de libras em seminários. Nas últimas edições da feira, seus representantes ministraram palestras sobre a Federação e sobre questões relativas aos surdos no âmbito da deficiência. Discutiram a integração do surdo no mercado de trabalho, os direitos e as reivindicações da comunidade surda brasileira:

Neivaldo Zovico e Sylvia Lia revezaram-se nas falas durante a palestra da Feneis realizada em um dos auditórios da REATECH. Dezenas de pessoas no auditório. Entre os tópicos abordados na palestra, defendeu-se a importância de surdos, familiares, instituições, ONGs e professores. Explicaram a relevância da cultura surda e da libras. Contou-se um pouco do histórico da Feneis e de suas atividades atuais. Chamou minha atenção terem mencionado um evento ocorrido já no ano de 1991: o Congresso Latino Americano de bilinguismo, que já discutia questões centrais na atualidade. Sugeriu-se uma historicidade relativa a eventos. Defendeu-se, por fim, a importância de o surdo “não ficar calado”. (Caderno de campo, 2013).

Segui, assim, acompanhando os representantes da Feneis e continuei a acompanhar outros eventos relativos também às pessoas com deficiência, sobretudo quando estes representantes da Feneis estiveram presentes. Continuei também a acompanhar atividades específicas relativas aos surdos, como vinha fazendo antes.