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6. SIGNIFICADOS PARA OS TEMAS EMERGENTES DO PROCESSO

6.1. A dicotomia entre discurso e prática docente provocando

6.1.3. A insubmissão e o compromisso

Também ficou evidente que as alunas esperam, das docentes, um “exemplo” de sujeito/cidadão autônomo, e frustram-se quando observam comportamentos que consideram como indícios de submissão e ausência de compromisso:

A15: “Os professores falam tanto em compromisso, solidariedade, transformação da realidade, mas que exemplo eles nos passaram quando teve aquele caso dos flagelados da chuva de pedra? Puxa vida, era uma calamidade pública, os alunos, os auxiliares de enfermagem, até as escolas de primeiro grau estavam lá. E as docentes de enfermagem? Só

umas quatro ou cinco, de vinte e tantas! ”

A12: “Eu custei a valorizar a enfermagem, porque o modo como os professores vêem as coisas erradas (no Hospital Universitário) e não fazem nada eu acho horrível. Isso não é ser um bom profissional. Os professores criticam, criticam, mas aceitam o que acontece, não fazem nada, pelo menos que a gente saiba...”

A l3: “Estamos cansadas de ver os professores baixarem a cabeça quando se chega no hospital!”. Esta aluna não se referia apenas a submissão em relação à área médica, mas principalmente à “coisas erradas que encontramos na enfermagem mesmo ”.

Azul-crítico: “A professora dizia que quando a gente se formasse devia cuidar dos pacientes assim, mas por enquanto no hospital nós vamos ver cuidando assado. Tá mas e o que os professores estão fazendo pra melhorar esta assistência? Afinal é um hospital universitário, é o nosso hospital. Será que nós somos visitas lá? Bom, teve uma outra professora que até disse isso, que era pra gente não falar nada porque alí a gente era só visita. ”

Sobre esta questão, o professor Vasconcelos (1999) questiona: “Entre o assim proposto e o assado feito, com o que é que o aluno fica ? ”

Uma das principais queixas das alunas é em relação às evoluções e prescrições de enfermagem que fazem durante os estágios. Sentem-se profundamente desrespeitadas pelo fato das mesmas não serem cumpridas ou checadas, chegando a, em alguns casos, nem irem para o prontuário ou até mesmo a serem “riscadas” pelos alunos da medicina. Consideram que as professoras só tomaram providências nos casos mais “graves”, onde “não tinham como não fazer nada”. É importante salientar que na maioria das unidades do Hospital Universitário as enfermeiras não fazem, de rotina, evolução nem prescrição de enfermagem.

Esta postura das docentes, assim percebida pelas alunas, também denota um descompromisso com a qualidade da assistência, e consequentemente uma forma de desrespeito ao cliente como ser humano/cidadão. Em alguns momentos, o grupo refere, também, o descompromisso da professora para com as alunas, deixando mais uma vez de atuar como ‘exemplo’:

Marrom-persistência: “ No último dia, que fo i o da avaliação, uma aluna disse: eu vou falar com sinceridade, a professora ... nunca vêm a aula, fa z quatorze períodos que agente não tem aula.

A í ela (a outra professora da disciplina) fechou o caderno e disse: Ah! Eu não acredito que isso está acontecendo!

Quer dizer, ela fo i se dar conta disso por um aluno, no último dia de estágio, no final da disciplina? Então quer dizer, conversa não existe, eles nem sabem? Não fazem reuniões? Não avaliam os alunos juntos? E o compromisso com a gente como é que fica?”

A14: “A gente só fa z os procedimentos e pronto, sem discutir. A prova é que sempre deixaram a gente preparar quimioterápicos na clínica médica, sem nenhuma medida de biosegurança. A gente nem sabia que podia trazer efeitos graves para nós, que eram perigosos! E além disso, ninguém se preocupa com a saúde daqueles auxiliares que preparam?”

Foram muitos os momentos em que as alunas pareciam pedir o “exemplo” das docentes, identificando a postura das mesmas como importante fator condicionante do perfil profissional da futura enfermeira. Assim, lembraram a enorme contradição entre suas posturas, quanto ao compromisso com o curso. Percebem, em um extremo, professoras que demonstram desinteresse, que faltam às aulas, não cumprem a carga horária prevista para as aulas e, principalmente, para os estágios, não participam dos

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eventos culturais, não realizam pesquisa nem extensão, não participam de reuniões para a solução de problemas do curso, não procuram avaliar a própria prática nem saber a opinião das alunas sobre a mesma, não se atualizam, nem atualizam suas aulas, dando a impressão de encarar a docência como “um bico”.

Verde-esperança: “Para nós já era horrível vir as aulas no verão por causa da greve, e ficava pior quando sentíamos a falta de vontade, o desânimo das professoras. Começavam o conteúdo e meia hora depois já acabavam, isso quando vinham né! E em alguns estágios não se recuperou nem metade do tempo perdido na greve. ”

No outro extremo, observam professoras que parecem “doar-se de corpo e alma”, não gozam férias, trabalham durante a noite e nos finais de semana, assumem responsabilidades além de sua capacidade, descuidando-se de sua saúde física e mental, do cuidado de si tão necessário para o cuidado do outro.

Embora reconheçam, neste último grupo, a intenção positiva da ação, suspeitam que possam também estar condicionando negativamente a formação do futuro profissional, por transmitirem uma concepção da profissão como “missão, vocação, abnegação e até submissão”, traços estes não condizentes com o perfil da enfermeira que professoras e alunas almejam; e principalmente pelo fato de “aparentemente” aceitarem o descompromisso do outro grupo, não articulando-se para exigir deles outra postura, para reivindicar mais compromisso e distribuição igualitária de funções e atividades. Não demonstrando, enfim, competência política para organizar a divisão do trabalho de forma mais justa e produtiva.

O exemplo positivo também foi lembrado, principalmente nos casos em que as alunas percebem a motivação da docente, quando sentem que gosta do que faz, que gosta de dar aula, que gosta de cuidar, de estar com os clientes.

Marrom-persistência: “Eu adorava ver a (...) conversando com os pacientes, o jeito como ela falava, o olhar dela, a voz, firme porém delicada, o jeito como segurava a mão do paciente. E quando era preciso ela era super segura para realizar procedimentos, dava pra ver que ela tinha experiência. ”

Mais uma vez Vasconcellos, traz um curioso exemplo de uma menina que disse que a professora não gostava de 1er porque mandava as alunas lerem e ficava fazendo outra coisa. Da mesma forma as alunas entendem a postura das docentes que “mandam as estudantes cuidarem dos pacientes” e ficam no vestiário, no posto ou na sala de lanche, pedem para a enfermeira da unidade realizar os procedimentos, dizem que é para deixar o banho para o auxiliar fazer. A aluna precisa ver o contato da professora com o cliente,

precisa vê-la no exercício do cuidado humano!

Para Freire (1998, p.38), ensinar exige a corporeiflcação das palavras pelo exemplo: “O professor que realmente ensina, quer dizer, que trabalha os conteúdos no quadro da rigorosidade do pensar certo, nega, como falsa, a fórmula farisaica do faça o que eu mando e não o que eu fa ç o ’. Quem pensa certo está cansado de saber que as palavras a que falta a corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem. Pensar certo é fazer certo. (...) Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o re-diz em lugar de desdizê-lo. ”

Serafini et al (1999, p. 15), alunas deste mesmo curso, ao realizarem importante estudo junto às colegas preocupam-se:

“Como os momentos de resistência e reivindicação dos estudantes parecem alcançar resultados pouco satisfatórios, o uso da sua liberdade e da autonomia parece tornar-se mais restrito facilitando o exercício de práticas de negação e rechaço do próprio aluno. A nossa preocupação se fortalece quando, a partir da análise dos discursos, começamos a repensar sobre o futuro desses sujeitos que já se negam como alunos; para nós, a postura profissional pode ser um reflexo da vida acadêmica. Como esperar que esses alunos, no futuro exercício profissional mostrem-se reivindicadores, posicionando-se frente ao estabelecido do qual divergem, se, durante o curso, o que ainda parece ser valorizado e buscado é a sua submissão e a aceitação de ordens sem divergir?”

Nossas docentes, com freqüência, também queixam-se de que as alunas não se comprometem com as atividades propostas em sala de aula e com a assistência prestada nos campos de estágio. Freire (1979) considera que o compromisso nasce do assumir-se enquanto sujeito, deixando de ser mero espectador, e que a primeira condição para que alguém possa exercer um ato comprometido é sua capacidade de atuar e refletir. Quanto mais a aluna for estimulada a refletir sobre sua realidade e a posicionar-se dentro dela enquanto sujeito, mais se conscientizará, mais se comprometerá, e poderá intervir nesta mesma realidade. O compromisso não pode ser fruto da passividade, da submissão. A

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liberdade de escolha é essencial para que possamos nos comprometer com aquilo que escolhemos.

A atuação-reflexão é própria da existência humana. Quando se impede um indivíduo comprometido de atuar ele sente-se frustrado e por isso procura superar a situação de frustração. A aluna que não desenvolveu a ação-reflexão, que não conseguiu ser sujeito comprometido, não se frustra frente aos obstáculos da prática, logo como profissional possivelmente também não vai reagir à estes obstáculos. Sem os sentimentos de frustração e compromisso, não vai atuar na transformação da realidade.