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CAPÍTULO IV – A MATERIALIZAÇÃO DA ÉTICA

4.1 AS RAZÕES DA AÇÃO NA VOZ DOS MILITARES

4.1.3 Intérpretes da vontade nacional

Outro argumento apresentado pelo militares que justificaria a ação de 64 é o papel de intérpretes da vontade nacional, que é defendida, tanto no Projeto ORVIL como nos depoimentos de 2003. A sociedade brasileira encontrava-se atemorizada pelas convulsões que se instalavam a cada dia nos principais pontos do país. Reinava um clima de temor e intranqüilidade, era preciso que uma força salvadora viesse devolver a calma e garantir a continuidade das instituições que se encontravam em risco de implodirem. É assim que o governo João Goulart é narrado pelos militares, e a reação das Forças Armadas, portanto, deu-se no sentido de acolher os reclamos da sociedade,

[...] sobretudo, da classe média, que se preocupava e se desesperava com a desordem que estava generalizando no País, atingindo até a cúpula do Governo central. Isso estava exigindo uma providência que, em última análise, traduzia uma vontade nacional. Nesse sentido, a intervenção das Forças Armadas, a que não quero chamar de revolução, foi um Movimento para impedir e deter aquela avalanche de indisciplina que, em todos os níveis, era exigido pela sociedade brasileira [...]86 (MOTTA, 2003, p. 278).

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Político, natural da cidade de Fortaleza-CE, foi presidente do Partido Social Democrático (Seção do Ceará). Ministro de Estado da Justiça, Ministro de Estado (Interino) das Relações Exteriores, Ministro de Estado (Interino) da Saúde, no governo do Presidente Juscelino Kubitschek; Ministro de Estado da Justiça do governo do Presidente Geisel. Em 1964, engajou-se numa intensa atividade, proferindo discursos anticomunistas.

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Depoimento do coronel Américo Raposo que em 64 comandava o 4º Grupo de Artilharia 75 a Cavalo, em Uruguaiana, RS. Após 31 de março de 1964, passou a servir no Serviço Nacional de Informação (SNI) (MOTTA, 2003, p. 278).

O Coronel Sérgio Mário Pasquali87 não só concorda com a idéia de que os militares foram intérpretes da vontade nacional quando depõe João Goulart, no dia 31 de março, como também afirma que eles tardaram em agir, pois a sociedade brasileira já havia se organizado no sentido de opor uma resistência à comunização do país. Para validar sua colocação, o coronel cita a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” que, segundo ele, era a clara demonstração de que o povo brasileiro não suportava mais a situação. Os militares se levantaram para dar início a uma escolha que a sociedade brasileira já havia feito (MOTTA, 2003, p. 210).

Um depoimento que desentoa dos demais, e que sugere uma reflexão mais crítica a respeito dos militares como intérpretes da vontade nacional, é dado pelo General Octavio Costa, militar já citado anteriormente. Para ele, é relativo colocar os militares como intérpretes da vontade nacional, isto porque precisamos antes responder o que é a vontade nacional; como entendê-la? Faz-se necessário defini-la, porque “[...] Vontade nacional é uma expressão de globalidade impressionante. Não há uma vontade nacional, existem muitas vontades nacionais [...]” (MOTTA, 2003, tomo 2, p. 66).

Para o General Octavio, é até razoável dizer que os militares foram intérpretes da classe média, que se sentia à margem, pelas idéias políticas de João Goulart, e queria vê-lo “pelas costas”. É também aceitável dizer que os militares foram intérpretes do empresariado, que estava preocupado com os movimentos que pediam as reformas de base, o que poderia atrapalhar os seus negócios. No entanto, não se pode dizer que foram intérpretes de toda sociedade, pois

[...] é fora de propósito pensar que elas (Forças Armadas) possam ter interpretado o que se passava na vida estudantil. Pensar que pudessem interpretar o que se passava na vida universitária, nem de longe, ainda menos na vida cultural [...] (MOTTA, 2003, tomo 2, p. 66 e 67).

Para Octavio, é um erro pensarmos que haja uma vontade nacional propriamente dita, “[...] há vontades nacionais e há vontades majoritárias, em cada área de circulação. A sabedoria está em saber conviver com essas vontades [...]”. Esse, na

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Em 1964, o Coronel Sérgio Mário Pasquali era aluno da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, com sede na cidade do Rio de Janeiro.

interpretação do general, foi o grande mal dos militares que não souberam conviver em harmonia com a pluralidade, por exemplo, com a cultura.

[...] Lembremo-nos de que nessas ocasiões, a vida cultural ascende. Seu protesto é extremamente criativo. Nunca houve, na vida do País, um período de floração teatral tão expressivo, como nesse momento de protesto. A mesma coisa ocorria no mundo da música popular dos nossos dias – a famosíssima Elis Regina, que não aceitava, em hipótese nenhuma, ser convidada para cantar em ambiente militar – essa gente toda tinha horror a tudo o que significasse Força Armada [...] (MOTTA, 2003, tomo 2, p. 67).

Conclui seu pensamento a respeito do assunto, argumentando que os militares não conseguiram seguir o exemplo de Vargas, um ditador terrível, implacável, capaz de entregar Olga Benário, grávida, à Gestapo, mas que, no entanto “[...] conviveu com a cultura, conviveu com os pensadores, teve [...] um Ministério da Educação de grandes nomes [...]. Fez-se presente, foi querido, foi aceito pelos universitários [...]” (MOTTA, 2003, tomo 2, p. 67). O resultado é que, embora tenha implantado um regime ditatorial no Brasil como jamais visto, tornou-se um mito e, após encerrado seu governo em 1946, voltou nos braços do povo, em 1951, como o pai dos pobres.

Para o General Octavio, usar a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” como termômetro para medir a vontade nacional é outro argumento bastante perigoso, isto porque ele não acredita na isenção dos movimentos de massa.

[...] Penso que esses movimentos são fabricados. Há uma parte espontânea e uma outra de acionamento. Quando os ‘sem terra’, ou ‘sem teto’, chegam ao Rio Sul (Shopping Center do Rio de Janeiro), alguém pagou o ônibus e os levou até lá. Todos os movimentos, tudo o que acontece é preparado. São ativistas, são militantes, que esquematizaram tudo isso [...] (MOTTA, 2003, tomo 2, p. 66).

Assim, a “Marcha da Família com Deus”, tão citada pelos depoentes, é vista pelo General Octavio como mais um movimento fabricado por interesses de grupos, neste caso a classe média e o empresariado, e não um acontecimento que representava a vontade majoritária da sociedade brasileira. Porém, para ele, o fato de ter sido previamente organizada não significa dizer que tenha sido um movimento reacionário. Lutar contra alguma coisa que se julgue pior não significa, necessariamente, ser retrógrado.