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A intelecção das substâncias imateriais

2. A intelecção dos demais (sicut et alia)

2.2 A intelecção das substâncias imateriais

Os demais (sicut et alia) também se refere àquilo que é superior à alma humana91, isto é, a intelecção das substâncias imateriais.

Novamente, argumentando a partir da condição de nosso intelecto no estado da vida presente e de acordo com o que está mais próximo do que experimentamos, seguindo Aristóteles, Tomás explica que nosso intelecto tem uma referência natural às naturezas das coisas materiais e, portanto, não pode inteligir a não ser voltando-se às imagens. “Assim, é manifesto que não podemos, de acordo com o modo de conhecimento por nós experimentado,

90 “Et sic species intellectiva secundario est id quod intelligitur. Sed id quod intelligitur primo, est res

cuius species intelligibilis est similitudo”.

91 Disto trata a Q. 88: “Quomodo anima humana cognoscat ea quae supra se sunt”. Dividida em três

artigos: 1. Utrum anima humana, secundum statum vitae praesentis, possit intelligere substantias immateriales per seipsas; 2. Utrum intellectus noster per cognitionem rerum materialium possit pervenire ad intelligendum substantias immateriales; 3. Utrum Deus sit primum quod a mente humana cognoscitur. Notar as pequenas diferenças de redação em relação ao Prólogo.

inteligir primeiro e por si as substâncias imateriais que não caem sob o sentido e a imaginação” (Q. 88, a. 1, Resp.)92.

Tomás já havia dito que o objeto próprio do intelecto humano é a quididade existente na matéria corporal, “e pelas naturezas deste tipo, [nosso intelecto] também ascende das coisas visíveis a algum conhecimento das coisas invisíveis”(Q. 84, a. 7, Resp.)93. A Resposta ao argumento 2o da Q. 88

retoma o mesmo raciocínio:

Ao primeiro argumento, portanto, cumpre dizer que, a partir das coisas materiais podemos ascender a um certo conhecimento das coisas imateriais; não porém a um conhecimento perfeito, pois não há paralelo suficiente das coisas materiais para com as coisas imateriais, mas as semelhanças, qua acaso são tomadas das materiais para inteligir as imateriais, são muito dessemelhantes, como Dionísio diz no capítulo 2 da Hierarquia

celeste (Q. 88, a. 2, ad. 1)94.

92 “Sed secundum Aristotelis sententiam, quam magis experimur, intellectus noster, secundum statum

praesentis vitae, naturalem respectum habet ad naturas rerum materialium: unde nihil intelligit nisi convertendo se ad phantasmata, ut ex dictis patet. Et sic manifestum est quod substantias immateriales,

quae sub sensu et imaginatione non cadunt, primo et per se, secundum modum cognitionis nobis expertum, intelligere non possumus”.

93 “Intellectus autem humani, qui est coniunctus corpori, proprium obiectum est quidditas sive natura in

materia corporali existens; et per huiusmodi naturas visibilium rerum etiam in invisibilium rerum aliqualem cognitionem ascendit”.

94 “Ad primum ergo dicendum quod ex rebus materialibus ascendere possumus in aliqualem cognitionem

immaterialium rerum, non tamen in perfectam: quia non est sufficiens comparatio rerum materialium ad immateriales, sed similitudines si quae a materialibus accipiuntur ad immaterialia intelligenda, sunt multum dissimiles, ut Dionysius dicit, II cap. Cael. Hier”.

Isso significa que não podemos inteligir perfeitamente as substâncias imateriais, pelas substâncias materiais95. Anteriormente Tomás já apontara os

dois modos ou vias pelas quais podemos conhecer o que ultrapassa o mundo material: como causa que ultrapassa os efeitos, por ultrapassamento, isto é, postulando o infinito e perfeito, a partir do imperfeito e limitado e por remoção ou negação dos limites e imperfeições constatadas em nosso mundo96.

Nosso conhecimento das substâncias imateriais é apenas indireto. Sendo assim, o acesso ao conhecimento das substâncias imateriais não poderia vir justamente de nosso conhecimento de nós mesmos? Tal seria a afirmação de Agostinho de que a mente humana conhece as coisas incorpóreas por si mesma97.

No entanto, Tomás aceita o argumento com reserva e apontando imediatamente o limite de tal afirmação:

Ao primeiro argumento, portanto, cumpre dizer que desta autoridade de Agostinho pode se obter que aquilo que nossa mente pode captar do conhecimento das coisas incorporais, ela o pode conhecer por si mesma. Isto, tanto é verdade que mesmo entre os filósofos diz-se que a ciência da alma é um certo

95 “Et ideo per substantias materiales non possumus perfecte substantias immateriales intelligere”. 96 Q. 84, a. 7, ad 7.

97 “Dicit enim Augustinus, in IX de Trin., Mens ipsa, sicut corporearum rerum notitias per sensus

corporis colligit, sic incorporearum rerum per semetipsam. Huiusmodi autem sunt substantiae immateriales. Ergo mens substantias immateriales intelligit”.

princípio para conhecer as substâncias separadas. Com efeito, pelo fato de que nossa alma conhece-se a si mesma, chega a possuir um certo conhecimento acerca das substâncias incorpóreas, tal como lhe cabe ter; não que as conheça pura e simplesmente e perfeitamente, conhecendo-se a si mesma (Q.

88, a. 1, ad. 1)98.

De acordo com o próprio ponto de vista de Tomás, partimos sempre daquilo que nos é mais próximo para inteligirmos o que nos é mais afastado. Ora, o que nos é mais próximo que nossa própria alma? No entanto, uma das constantes de seu pensamento sobre o autoconhecimento é de que “há máxima dificuldade no conhecimento da alma” (maxima difficultas est in cognitione animae). Se no acesso a nós mesmo há “máxima dificuldade”, o conhecimento das substâncias imateriais mediante o autoconhecimento da alma é ainda menor. Isso em se tratando das substâncias imateriais criadas. No caso de Deus, substância incriada, nosso conhecimento de sua essência é, de fato, negativo99.

Então, nosso conhecimento daquilo que transcende a matéria seria tão somente negativo?

98 “Ad primum ergo dicendum quod ex illa auctoritate Augustini haberi potest quod illud quod mens

nostra de cognitione incorporalium rerum accipere potest, per seipsam cognoscere possit. Et hoc adeo verum est, ut etiam apud philosophos dicatur quod scientia de anima est principium quoddam ad cognoscendum substantias separatas. Per hoc enim quod anima nostra cognoscit seipsam, pertingit ad cognitionem aliquam habendam de substantiis incorporeis, qualem eam contingit habere: non quod simpliciter et perfecte eas cognoscat, cognoscendo seipsam”.

99 Na verdade, Deus não é o que por primeiro conhecemos, senão que O conhecemos mediante as

Na verdade, Tomás vai mais longe. Na Resposta do artigo 1o da Q. 10 do De Verit., ele afirma que até mesmo as essências das coisas nos são desconhecidas:

Mas porque, na verdade, as essências das coisas nos são desconhecidas, enquanto que suas virtudes nós distinguimos pelos atos, usamos frequentemente o nome das virtudes ou das potências para designar as essências (De Verit., Q. 10, a. 1,

Resp.)100.

3. A Resposta do artigo 1º da Questão 87 ao problema do

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