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A intelecção dos corpos

2. A intelecção dos demais (sicut et alia)

2.1 A intelecção dos corpos

Segundo Tomás, “O conhecimento se dá quando o conhecido está no cognoscente, e o conhecido está no cognoscente segundo o modo do cognoscente” (ST Ia, Q. 12, a. 4, Resp.)60.

Essa afirmação concisa é o resultado de uma reflexão cuja gênese se deixa entrever nas Questões 84-86. Perguntando-se pela condição de possibilidade da intelecção dos corpos, Tomás explica que o intelecto conhece o corporal e material mediante formas ou determinações inteligíveis. O intelecto

59 As Questões 84-86 examinam o conhecimento do que é corporal e também estão ordenadas de maneira

tripartida: pelo que a alma conhece (Q. 84), como e em que ordem (Q.85) e o que (Q.86). ST Iª, Q. 84,

Proem.: “Circa cognitionem vero corporalium, tria consideranda occurrunt: primo quidem, per quid ea cognoscit; secundo, quomodo et quo ordine; tertio, quid in eis cognoscit”.

60 “Cognitio enim contingit secundum quod cognitum est in cognoscente. Cognitum autem est in

recebe a forma61 do conhecido a seu modo62, isto é, no ato de intelecção o que é material existe, no cognoscente, imaterialmente63. Entretanto, mesmo sendo

imaterial, a intelecção ocorre a partir de um dado material64. O que não significa que a causa total da operação intelectual provenha das imagens dos corpos sensíveis – imagens que são as semelhanças das coisas particulares, desprovidas das condições materiais65 – pois, seguindo Aristóteles, Tomás adverte que a operação intelectual requer algo mais nobre que o sentido66, a

saber, o intelecto agente, pois é ele que “torna as imagens recebidas dos sentidos inteligíveis em ato, à maneira de certa abstração” (ST Iª, Q. 84, a. 6, Resp.)67. Deste modo, nosso intelecto intelige o que é material abstraindo68 das

imagens as espécies inteligíveis.

61 Trata-se da forma do todo. A presença da forma do todo no intelecto é a espécie que permite ao

intelecto (possível) formar o conceito, que é expresso pela definição. Sobre o termo forma do todo, ver NASCIMENTO, 2004, p. 28, n. 39. Ver também DE LIBERA, 1996, p. 278.

62 Conforme o princípio “o recebido está no recipiente ao modo do recipiente” (Q. 84, a. 1, Resp., in fine) 63 Q. 84, a. 1-2.

64 Q. 85, a. 1, Resp. 65 Q. 84, a. 7, ad. 2.

66 É a consequência dos princípios assumidos: embora semelhanças desprovidas das condições materiais

das coisas particulares, os fantasmas não têm o mesmo modo de existir que o intelecto; como o que é menos elevado não pode imprimir-se no que é mais elevado (Q. 84, a. 6, ad. 2), e tudo o que é recebido, é recebido ao modo do recipiente, os fantasmas não podem por sua própria força imprimir-se no intelecto.

Fantasma designa as imagens conservadas na imaginação.

67 “Non tamen ita quod intellectualis operatio causetur in nobis ex sola impressione aliquarum rerum

superiorum, ut Plato posuit: sed illud superius et nobilius agens quod vocat intellectum agentem, de quo iam supra diximus, facit phantasmata a sensibus accepta intelligibilia in actu, per modum abstractionis cuiusdam”.

68 Literalmente abstrahere quer dizer retirar, extrair. Cf. Schütz. Thomas-Lexikon, p. 03 ad verbum

Em linhas gerais, tal é a teoria da abstração da forma ou espécie inteligível contida nas QQ. 84-86. Tomás aprofunda os demais aspectos e implicações do conhecimento abstrativo ao longo destas Questões. Mas interessam-nos, em referência ao nosso trabalho, três enfoques.

1) Uma vez abstraída a espécie inteligível e estando ela no intelecto, isso ainda não é suficiente para o conhecimento. A espécie inteligível – depois de abstraída – está no intelecto possível a modo de uma habilitação69, mas não possibilita qualquer conhecimento atual70. O motivo é que no estado da vida presente, unido ao corpo, nosso intelecto não pode inteligir algo em ato senão voltando-se às imagens71. Tomás utiliza dois argumentos empíricos para justificar tal condição: (a) a lesão de algum órgão corporal prejudica o inteligir. O ente humano fica impedido de inteligir em ato mesmo naquilo de que adquiriu ciência previamente72; (b) para entender alguma coisa, as imagens são sempre utilizadas como exemplos e, quando queremos fazer alguém entender algo, usamos exemplos a partir dos quais possa formar para si imagens para inteligir73.

69 Tradução de habitus sugerida pelo Prof. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. 70 Q. 84, a. 7, ad. 1.

71 Q. 84, a. 7, Resp.: “Respondeo dicendum quod impossibile est intellectum nostrum, secundum

praesentis vitae statum, quo passibili corpori coniungitur, aliquid intelligere in actu, nisi convertendo se ad phantasmata”.

72 O artigo 8 da Q. 84, intitulado Utrum iudicium intellectus impediatur per ligamentum sensus, aborda

justamente isso e a conclusão é que a suspensão do sentido impede o juízo do intelecto.

2) Essa compreensão antropológica – a condição de nosso intelecto unido ao corpo – repercute diretamente na compreensão do objeto próprio de nossa capacidade cognoscitiva: o intelecto humano não é ato de algum órgão, mas capacidade da alma, que é forma do corpo. Por isso, seu objeto próprio é a forma existente individualmente na matéria corporal, não porém na medida em que está em tal matéria, adverte Tomás 74. Eis o sentido do abstrair: “Ora,

conhecer o que está na matéria individual, não na medida em que está em tal matéria, é abstrair a forma da matéria individual, que os fantasmas representam” (Q. 85, a. 1)75. Assim, o objeto próprio do intelecto humano não é nem o puro inteligível como no caso do anjo (ou como afirma Platão acerca da alma humana, pois compreende o corpo como mero instrumento desta), nem o puro sensível como no caso dos animais (ou como afirma Demócrito, para o

74 Segundo Tomás, há triplíce grau de capacidade cognoscitiva: (a) aquela que é ato de um órgão

corporal, o sentido, cujo objeto é a forma na medida em que existe na matéria corporal e, por isso, é cognoscitiva apenas dos particulares; (b) aquela que nem é ato de um órgão corporal nem está unida à matéria corporal, o anjo, cujo objeto é a forma subsistente sem a matéria e, por isso, conhecem o material considerando o imaterial; (c) o intelecto humano, que comporta-se como intermediário. Cf. Q. 85, a. 1,

Resp.: “Respondeo dicendum quod, sicut supra dictum est, obiectum cognoscibile proportionatur virtuti cognoscitivae. Est autem triplex gradus cognoscitivae virtutis. Quaedam enim cognoscitiva virtus est actus organi corporalis, scilicet sensus. Et ideo obiectum cuiuslibet sensitivae potentiae est foma prout in materia corporali existit. Et quia huiusmodi materia est individuationis principium, ideo omnis potentia sensitivae partis est cognoscitiva particularium tantum. Quaedam autem virtus cognoscitiva est quae neque est actus organi corporalis, neque est aliquo modo corporali materiae coniuncta, sicut intellectus angelicus. Et ideo huius virtutis cognoscitivae obiectum est forma sine materia subsistens: etsi enim materialia cognoscant, non tamen nisi in immaterialibus ea intuentur, scilicet vel in seipsis vel in Deo. In tellectus autem humanus medio modo se habet: non enim est actus alicuius organi, sed tamen est quaedam virtus animae quae est forma corporis, ut ex supra dictis patet. Et ideo proprium eius est cognoscere formam in materia quidem corporali individualiter existentem non tamen prout est in tali materia”. Tomás situa o intelecto humano localizando-o numa escala (hierarquia) entre o sentido e o intelecto puro (angélico).

75 “Cognoscere vero id quod est in materia individuali, non prout est in tali materia, est abstrahere formam

a materia individuali, quam repraesentant phantasmata”. Sobre o sentido de abstração ver Q. 85, a. 1, ad.

qual só há corpos e faculdades sensoriais)76, mas “a quididade ou natureza existente na matéria corporal” (Q. 84, a. 7)77.

3) Deste modo, a intelecção humana das coisas materiais se dá pela recepção da imagem que o intelecto agente, próprio de cada homem78,

“ilumina” para tornar “visível” o inteligível e extraí-lo imprimindo-o (a espécie inteligível) no intelecto possível79. O papel do intelecto agente é extrair a

natureza das espécies (naturezas específicas) de uma realidade particular – a natureza individualizada. Informado por estas formas inteligíveis, o intelecto possível produz o conceito (species intellecta) universal. Mas isso não significa que o objeto de nosso intelecto seja o abstrato à parte do particular, pois se assim fosse, não seria um conhecimento completo e verdadeiro. “Nesse caso, o intelecto é falso quando intelige que a coisa é diferentemente do que é. Daí, o intelecto seria falso se abstraísse a espécie da pedra da matéria, de tal modo que inteligisse que ela não está na matéria, como Platão sustentou” (Q. 85, a.

76 Q. 84, a. 6, Resp.

77 “Intellectus autem humani, qui est coniunctus corpori, proprium obiectum est quidditas sive natura in

materia corporali existens...”.

78 Q. 84, a. 4, Resp.

79 Q. 85, a. 1, ad. 4: “Ad quartum dicendum quod phantasmata et illuminantur ab intellectu agente; et

iterum ab eis, per virtutem intellectus agentis, species intelligibiles abstrahuntur. Illuminantur quidem, quia, sicut pars sensitiva ex coniunctione ad intellectivam efficitur virtuosior, ita phantasmata ex virtute intellectus agentis redduntur habilia ut ab eis intentiones intelligibiles abstrahantur. Abstrahit autem intellectus agens species intelligibiles a phantasmatibus, inquantum per virtutem intellectus agentis accipere possumus in nostra consideratione naturas specierum sine individualibus conditionibus, secundum quarum similitudines intellectus possibilis informatur”.

1, ad 1)80. Como explica Tomás, a natureza ou quididade existe em algum indivíduo, assim como faz parte da noção da natureza da pedra que esteja nesta pedra. Daí a natureza da pedra – ou de qualquer coisa material – não poder ser conhecida completa e verdadeiramente, senão na medida em que é conhecida como existente no particular81. Tal é a circularidade da intelecção

humana: parte do material particular (dados materiais), abstrai o universal do particular (realiza operação imaterial), volta ao material (juízo acerca do material e particular).

Além disso, duas implicações estão diretamente relacionadas ao problema do autoconhecimento e reaparecem na Q. 87, a. 1.

A primeira delas é sobre o conhecimento nas razões (ou constitutivos nocionais82) eternas83. Conforme o próprio Tomás, citando e seguindo Agostinho, as razões (consitutivos nocionais) de todas as criaturas existem na

80 “Tunc enim intellectus est falsus, quando intelligit rem esse aliter quam sit. Unde falsus esset intelectus,

si sic abstraheret speciem lapidis a materia, ut intelligeret eam non esse in materia, ut Plato posuit”.

81 Q. 84, a. 7, Resp.: “De ratione autem huius naturae est, quod in aliquo individuo existat, quod non est

absque materia corporali; sicut de ratione naturae lapidis est quod sit quod sit in hoc lapide, et de ratione naturae equi quod sit in hoc equo, et sic de aliis. Unde natura lapidis, vel cuiuscumque materialis rei, cognosci non potest complete et vere, nisi secundum quod cognoscitur ut in particulari existens. Particulare autem apprehendimus per sensum et imaginationem. Et ideo necesse est ad hoc quod intellectus actu intelligat suum obiectum proprium, quod convertat se ad phantasmata, ut speculetur naturam universalem in particulari existentem”.

82 É difícil traduzir o sentido de ratio aqui, pois não significa simplesmente razão. Uma possível tradução

seria “constitutivo nocional” ou “nocional constitutivo”.

83 É o que investiga a Q. 84, a. 5: “Utrum anima intellectiva cognoscat res materiales in rationibus

mente divina, de acordo com as quais tudo é formado e, de acordo com as quais a alma conhece tudo84. A teoria da abstração parece indicar a negação

deste tipo de conhecimento. Mas a resposta de Tomás precisa como algo é conhecido em algo: (a) como no objeto conhecido: alguém vê no espelho aquilo cuja imagem reflete-se no espelho. Ora, deste modo a alma não pode ver tudo nas razões eternas, no estado de vida presente; (b) como princípio de conhecimento: é visto no sol, o que é visto pelo sol, isto é, como princípio de conhecimento. Deste modo a alma conhece tudo nas razões eternas, por cuja participação conhecemos tudo85, inclusive a nós mesmos conforme a citação de Agostinho feita por Tomás quando trata do autoconhecimento universal na Q. 87, a. 1, Resp.86.

A segunda é sobre o objeto de nosso conhecimento. A espécie é o quê ou o pelo quê nosso intelecto intelige? Não seria a própria espécie inteligível o objeto de nosso conhecimento, uma vez que nada está no intelecto que intelige em ato, a não ser a espécie inteligível abstraída?87 Em outros termos, conhecemos a coisa externa ou a modificação interna de nosso intelecto? Tal o problema investigado na Q. 85, a. 2: “Se as espécies inteligíveis, abstraídas das fantasias, estão para o nosso intelecto como o que é inteligido ou como o

84 Q. 84, a. 5, Resp. 85 Q. 84, a. 5, Resp.

86 Q. 87, a. 1, Resp.: “Unde et Augustinus dicit, in IX de Trin., Intuemur inviolabilem veritatem, ex qua

perfecte, quantum possumus, definimus non qualis sit uniuscuiusque hominis mens, sed qualis esse sempiternis rationibus debeat, vel sicut id quo intelligitur”. De acordo com o Prólogo da questão.

pelo que se intelige”88. Dois argumentos mostram o perigo da primeira posição: (a) ela destroi a ciência, pois se só inteligimos as espécies que estão na alma, a ciência não seria sobre o que está fora da alma; (b) o juízo será sempre subjetivo, isto é, teríamos a doutrina de Protágoras: “tudo que parece, é verdadeiro”. O mel é doce ou amargo porque parece ser; isso significa que o juízo será sempre a respeito daquilo que se julga ser.

A resposta de Tomás será demonstrar que em um ato de intelecção a espécie inteligível é apenas a forma pela qual o intelecto intelige. Em analogia com o sentido, a forma é uma semelhança do objeto, assim como a semelhança da coisa visível é o de acordo com o que a vista vê. Quer dizer: não vemos a forma sensível do giz, vemos o giz do qual a espécie sensível é semelhança. Assim também no caso da espécie inteligível: ela é o pelo quê nosso intelecto intelige. Mas Tomás reconhece que a espécie pode, sim, ser objeto de conhecimento: “Mas, visto que o intelecto se dobra sobre si mesmo, de acordo com a mesma reflexão, intelige tanto o seu inteligir como a espécie pela qual intelige” (Q. 85, a. 2, Resp.)89. Assim, num mesmo ato o intelecto

intelige seu próprio inteligir e a espécie pela qual intelige. Tomás não se detém neste ponto, mas logo em seguida explica que mesmo a espécie inteligível podendo ser objeto de conhecimento, isso não altera a natureza dos atos primários de intelecção, em que os objetos são as coisas externas: “Assim, a

88 Q. 85, a. 2: “Utrum species intelligibiles abstractae a phantasmatibus, se habeant ad intellectum

nostrum sicut id quod intelligitur”.

89 “Sed quia intellectus supra seipsum reflectitur, secundum eandem reflexionem intelligit et suum

espécie intelectiva é secundariamente o que é inteligido. Mas, o que é inteligido primeiro é a coisa da qual a espécie inteligível é semelhança” (Ibid.)90. Essa

compreensão de que os atos primários da intelecção são as coisas externas constitui um dos pontos fundamentais na problemática acerca do duplo autoconhecimento da alma em Tomás de Aquino. Retornaremos a ela mais adiante.

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