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2.1 O INTELECTO ANGÉLICO COMO EXPERIMENTO DE PENSAMENTO: UM PANORAMA GERAL

No segundo livro do seu Comentário às Sentenças Durandus toma o intelecto angélico como estudo de caso da cognição. Este estudo é realizado no sentido de possibilitar um experimento de pensamento que revele a estrutura da cognição de modo geral. O objetivo de Durandus não é compreender o intelecto angélico especificamente, ele deixa claro que “nós conhecemos pouco sobre o anjo e sobre sua cognição. E este pouco devemos conjecturar a partir das condições da nossa alma”. 133 Seu objetivo é circunscrever a questão trabalhada da melhor maneira possível. Como o anjo é puramente intelectual, completamente separado da matéria individual, para tratar de seu processo de conhecimento não é necessário mapear e tratar de funções relacionadas ao corpo, como os sentidos externos e internos, por exemplo.

Evidentemente, Durandus não é o primeiro ou o único a realizar experimentos de pensamento utilizando o intelecto angélico. Iribarren destaca o papel que a substância separada ocupava no cenário da filosofia medieval:

Os anjos também podem ser compreendidos como protagonistas dos experimentos de pensamentos nos quais as questões metafísicas, epistemológicas ou éticas são analisadas sob condições ideias (,..) discussões medievais sobre a natureza da linguística do pensamento, por exemplo, muitas vezes invocaram comparações com o pensamento angélico134.

Os anjos eram utilizados para a produção de experimentos de pensamento por traduzirem condições ideias para a análise de questões das mais variadas naturezas. No que diz respeito à questão epistemológica, é possível circunscrever o ato intelectivo e analisá-lo a despeito de qualquer restrição corpórea que seria inevitável quando se procura tratar sobre a cognição humana.

Discussões sobre os anjos muitas vezes tinham o status de experimentos de pensamentos nos quais problemas básicos eram colocados e discutidos sobre condições idealizadas. Quando se perguntavam se os anjos podem ter cognição ou como eles são capazes de se comunicarem uns com os outros, filósofos medievais

133

In II Sent [C] d. 3, q. 5, n. 4: “Nos pauca nouimus de angelis et eorum cognition. Et illa pauca

debemus coniecturare ex conditione anime nostre”. 134

pretendiam analisar como a cognição e a comunicação funcionam no geral. A melhor maneira de começar a investigação era especificar as condições necessárias em uma situação ideal para uma cognição e processos comunicativos bem sucedidos. 135

Além de Durandus, Tomás de Aquino, Henrique de Gant, Duns Scotus e Guilherme de Ockham foram alguns dos filósofos do período que defendiam interpretações próprias sobre o processo cognitivo e utilizavam o intelecto angélico como experimento de pensamento. A característica intelectual dos anjos136 possibilita que sua análise contribua não só em discussões teológicas, mas também em questões eminentemente filosóficas, como a questão do conhecimento.

No que diz respeito a Tomás de Aquino, a forma angélica e a forma humana são ambas intelectuais, mas como o homem é composto de intelecto e corpo137, tem seu ato intelectual determinado pelo corpo que é seu princípio de conhecimento. Ambos possuem a mesma natureza intelectual, porém em condições diferentes: o anjo é separado de qualquer matéria individual, enquanto o homem é composto por ela. Assim, enquanto a análise do intelecto angélico possibilita a determinação do conhecimento intuitivo138, a análise do intelecto humano culmina no exame do conhecimento abstrativo. Por um lado, o processo cognitivo angélico determinado por Tomás não pressupõe afecções sensíveis, abstrações ou formação de universais. Segundo Lens “com a infusão das espécies nos anjos não é necessário raciocinar e o propósito já é alcançado ao intuir as espécies – tudo já está lá, inato, como sempre foi”. 139 Isto porque Tomás defende uma hierarquia de seres na qual os anjos são superiores ao homem.

Como criaturas imateriais de uma ordem superior, eles são dotados de um grau superior de perfeição e, portanto, estão mais próximos da simplicidade divina. Para Tomás, no primeiro momento da criação dos anjos Deus influi as espécies inteligíveis contendo todo seu conhecimento: por isso eles não precisam raciocinar do conhecido

135

PERLER, 2008, p. 144.

136

PERLER, 2008, p. 144: “Analisar os anjos como criaturas reais que transcendem o mundo material nos habilita a examinar as atividades cognitivas em sua forma mais pura e ideal, que não é sujeita à restrições materiais”.

137

Summa Theologiae, Ia, q. 75, a. 4: “O homem não é alma, mas um composto de alma e corpo”. “homo non sit anima, sed compositum ex anima et corpore.”

138

LENZ, 2008, p. 155: “Tomás de Aquino (...) desenvolveu o pensamento angélico como simples intuições dentro de uma rede inata de conhecimento”.

139

para o não conhecido e, como resultado disso, eles não precisam de um pensamento estruturado. 140

Para Tomás o raciocínio é um processo eminentemente humano devido à sua natureza composta, os anjos, como são simples, não precisam realizar tal procedimento para constituir conhecimento. No ato da criação, Deus concede o conhecimento aos anjos através de espécies inteligíveis. Além do mais, pela sua natureza puramente intelectual um anjo pode iluminar a outro com suas espécies inteligíveis, o que não ocorre nos homens, pois um não pode transmitir seu conhecimento a outro. O processo cognitivo humano determinado por Tomás, é descrito por Ladim como um complexo processo que se inicia pela afecção recebida pelos sentidos externos e necessita de uma abstração intectual para ser atualizado.

Em razão da alma humana, princípio e sujeito do ato intelectivo, ser a forma substancial do corpo humano, o conhecimento humano é dependente das operações corporais. A formação das representações se inicia através da receptividade dos sentidos externos. Mediante os sentidos internos e, graças à memória e à imaginação, é formada uma imagem sensível do singular. Essa imagem é uma species expressa sensível, isto é, uma similitude ou uma representação sensível do singular. O singular, composto na sua essência por matéria e forma, não é inteligível em ato. A imagem sensível do singular, que sintetiza e unifica, juntamente com a memória, os dados recebidos pelos sentidos externos, por ser uma similitude ou uma representação do singular, não é, nela mesma, inteligível. Assim, a função prioritária da abstração intelectual é a de tornar inteligível em ato aquilo que, representado pela imagem sensível, é apenas potencialmente inteligível. 141

Para Tomás142 o intelecto humano possui uma função agente de abstrair o inteligível justamente porque o homem é composto de intelecto e corpo. O corpo poderia ser entendido como impedimento para o conhecimento intuitivo, mas Tomás enfatiza sua função de ser princípio do conhecimento humano. A função de abstrair é atribuída ao intelecto humano enquanto unido à alma do homem. Tomás de Aquino se opõe radicalmente à teoria de que existe um intelecto separado com a função de inteligir

140 LENZ, 2008, p. 159-160. 141 LANDIM, 2008, p. 15-16. 142

e informar a alma do homem143. Este processo diz respeito à operação do intelecto humano, mas não às substâncias separadas que não abstraem, pois não são determinadas pela matéria singular. O ato intelectual angélico prescinde da abstração do inteligível em potência nas coisas e da formação de um universal correspondente, seu conhecimento não é mediado, é intuitivo. É possível compreender que os pressupostos de Tomás não são apenas epistemológicos, mas também metafísicos. A cognição humana é determinada como abstrativa devido aos pressupostos relativos a uma estrutura metafísica que compreende tanto as coisas extramentais quanto o próprio intelecto. Para Tomás, portanto, (1) os objetos particulares são dotados de essências universais e (2) existe um poder de inteligir que atualiza o que já existe na coisa singular formando um conceito universal correspondente. Este processo (3) é mediado pelos sentidos externos que apreendem as espécies sensíveis, pelos sentidos internos que produzem e armazenam um fantasma e necessitam de um intelecto agente capaz de abstrair do fantasma144.

Elaborada por Tomás de Aquino, presente em Henrique de Gand e sob uma roupagem toda própria em Duns Scotus, a tese da intelecção indireta do singular se estabelece como alternativa a um aristotelismo supostamente ortodoxo que, apoiado na ideia de que o intelecto apreende apenas de modo abstrato, considerava de todo impossível a apreensão intelectual do singular material. 145

Henrique de Gant partilhava do pressuposto defendido por Tomás146 de que a cognição humana é mediada pelos sentidos. Para Henrique, os sentidos são capazes de apreender as coisas extramentais que são “instâncias de conceitos gerais, a saber, dos tradicionalmente chamados transcendentais (ens, bonum, unum, etc)”. 147 Assim, também aceita o pressuposto de Tomás de que (1) existem universais, ou

143

Sobre a crítica de Tomás à teoria do intelecto separado e sobre a denominação desta teoria como averroísta ver: MARTINS, 2009, p. 7-35.

144

LANDIM, 2008, p. 13: “(...) em Aquino, o universal na mente tem fundamento na coisa singular e isso seria suficiente para diferenciar, nessa questão, a concepção tomásica do conceitualismo de Ockham. O que justifica a concepção de Tomás sobre a relação do universal com o singular é a sua teoria da abstração”.

145

GUERIZOLI, 2011, p. 139.

146

Contudo, a partir destes pressupostos, Henrique de Gant defende conteúdos que Tomás nunca defendeu: dentre eles que o homem pode conhecer a Deus. Sobre este tópico Guerizoli afirma: “Em sentido rigoroso, porém, continua Henrique, conhecer significa conhecer a quididade de algo, donde ser lícito dizer que o ser humano está naturalmente ordenado a um conhecimento quididativo de Deus. (...) Segundo Henrique, é possível conhecer, por meio de um saber fundado no contato com objetos sensorialmente perceptíveis, não apenas que Deus existe, mas também o que ele é”. GUERIZOLI, 2010, p. 221-222.

147

transcendentais, nos particulares148 e (2) existe um poder cognitivo capaz de conhecê- los. No que diz respeito ao conhecimento humano, Henrique defende que ele deve ser mediado, pois, para ele:

Apenas por intermédio da espécie percebida da coisa, a coisa é verdadeiramente conhecida. Como a pedra que é verdadeiramente vista pela sua espécie sensível recebida no olho e verdadeiramente inteligida pela sua espécie inteligível recebida no intelecto. 149

Henrique compreende o intelecto humano como uma tábula rasa150, portanto o processo cognitivo humano é estabelecido tendo como princípio a aquisição de universais contidos potencialmente nos objetos cognoscíveis particulares. Para ele, a percepção e a intelecção ocorrem paralelamente no homem, ambas, entretanto, não ocorrem diretamente, mas por intermédio de mediadores. As espécies sensíveis teriam como função tornar o objeto acessível ao sentido e, além delas, ele afirma que os fantasmas e as espécies inteligíveis seriam responsáveis por tornar o objeto acessível ao intelecto. O intelecto, por sua vez, é constituído por dois poderes: o intelecto possível e o intelecto agente.

O fantasma na imaginação pode ser compreendido como um universal-em-potência, mas nunca como um universal-em-ato, a não ser que algo o atualize da potência ao ato. A alma intelectiva, portanto, deve ter um duplo poder. Em primeiro lugar, deve ser capaz de receber, talvez até se tornar, o universal-em-ato; em segundo lugar, deve ser capaz de atualizar do inteligível-em-potência no fantasma para o inteligível-em-ato em si. O primeiro destes poderes é chamado intelecto possível; o segundo é chamado intelecto agente. 151

Não há, para ele, um intelecto agente separado com a função de abstrair dos fantasmas produzidos pela imaginação152. No caso do homem, o intelecto agente compre a função de atualizar o universal que está em potência nos fantasmas e informá-

148

GUERIZOLI, 2010, p. 219: “Henrique aceita as teses tomasianas de que a noção de ente é o primeiro conceito apreendido pelo intelecto (primum cognitum) e de que tal apreensão dá-se com base no acesso epistêmico que, mediados pelos sentidos, temos às coisas do mundo”. Ver também AERTSEN, 1996.

149

Summa Quaestionum Ordinarium, I, 1, ad 7: “Per solam enim speciem perceptam de re

cognoscitur vere res ut lápis vere videtur per solam speciem suam sensibilem receptam in óculo et vere intelligitur per solam speciem suam intelligibilem receptam in intellectu”.

150

Summa Quaestionum Ordinarium, I, 10, sed contra: “no que diz respeito ao conheciemtno, nosso intelecto é como uma tábula rasa”. “(...) intellectus noster ante addiscere est sicut tabula rasa”.

151

BROWN, 1975, 499.

152

lo ao intelecto possível. O anjo, no entanto, não é constituído por um corpo, portanto, não possui órgãos internos que produzam fantasmas. Para Tomás de Aquino, a falta de aparato físico não se configura como um impedimento para que os anjos possam conhecer os objetos extramentais, pois há um inteligível em potência nas coisas, uma quididade, um universal. O anjo é capaz de intuir as essências das coisas correspondentes às espécies que possui em seu intelecto. Henrique de Gant, no entanto, rejeita tal interpretação. Para ele, os anjos não possuem todas as ideias eternamente em suas mentes, como Deus, de modo que possam conhecer tudo desde sempre, ou como se pudessem reconhecer os particulares. Por isso, estabelece que eles necessitem de algum aparato cognitivo que cumpra a função de apresentar seu objeto de conhecimento. Neste sentido, Perler afirma sobre o tratamento dos anjos feito por Henrique de Gant:

[Os anjos] necessitam de algum dispositivo cognitivo que torne as coisas cognitivamente presentes a eles. Mas quais são estes dispositivos? Henrique de Gant tentou responder a esta pergunta ao postular que os anjos conhecem as coisas do mundo por intermédio de uma disposição cognitiva que abrange tudo, o chamado hábito científico (habitus scientialis). Este hábito, que de algum modo é constituído em suas mentes no momento de sua criação, concede a eles acesso a todas as coisas, sem nenhuma necessidade de informações específicas sobre itens particulares. Henrique enfatiza que só há um único hábito para cada anjo e ao atualizá-lo cada anjo apreende todas as coisas imediatamente, ou, para ser mais preciso: ele apreende a essência de todas as coisas de uma vez. Não é necessário para o anjo passar pelo processo laborioso de adquir informações sobre esta ou aquela coisa particular. Todas as essências são imediata e completamente presentes a ele uma vez que o hábito é atualizado. 153 Para Henrique, no ato de criação os anjos recebem um habitus scientialis que teria como função, quando atualizado, tornar os objetos extramentais cognoscivamente presentes ao seu poder cognitivo. Este hábito seria tal que forneceria todas as essências imediatamente ao intelecto angélico. Nenhum impedimento material poderia interferir neste hábito, uma vez que foi criado por Deus e o intelecto angélico tem a capacidade de atualizá-lo. Para ele, portanto, (1) existe um inteligível no particular e (2) existe um hábito de ciência que, quando atualizado, apresenta todas as essências das coisas ao poder de cognitivo. Esta interpretação, porém, foi recusada e criticada por Scotus.

153

Scotus rejeita a tese de que um único dispositivo seja suficiente para tornar todas as essências cognitivamente presentes. Ao contrário, um anjo necessita de múltiplos dispositivos cognitivos. Cada qual torna a essência distinta cognitivamente presente ao representar suas características específicas. Na visão de Scotus, estes dispositivos cognitivos não são nada mais que espécies inteligíveis (species

intelligibiles) que existem na mente angélica e são usadas todas as

vezes que um anjo realiza um ato cognitivo. 154

A crítica que Scotus direciona a Henrique de Gant não diz respeito à possibilidade do anjo conhecer os objetos particulares, mas à noção de hábito científico fundamentado por Deus no ato da criação. Para Scotus não é correto afirmar tal hábito porque não é correto afirmar que um único hábito poderia satisfazer a apreensão de infinitas essências155. Scotus nega a existência de tal noção e defende a noção de espécie inteligível. As espécies inteligíveis seriam necessárias no processo cognitivo, pois cumpririam a função de tornar as essências cognitivamente presentes ao intelecto156. Estas espécies não são compreendidas por Scotus como produtos da intelecção, elas precedem os atos mentais157 e possibilitam que estes atos ocorram e possuam conteúdos distintos.

Espécies não são nada mais do que rationes cognoscendi, i.e., os dispositivos pelos quais cada objeto se torna cognitivamente acessível, não os próprios objetos. Como tais dispositivos, são indispensáveis porque tornam o intelecto angélico capaz de alcançar os vários objetos e assimilá-los. 158

É importante notar que Scotus não comete o erro de defender que as espécies inteligíveis seriam os objetos do conhecimento. A função das espécies é tornar os objetos cognoscíveis acessíveis ao poder cognitivo, elas não são os objetos mesmos. Destaco que ele não faz apenas a defesa da utilidade de espécies inteligíveis em operações de conhecimento abstrativo, mas também reconhece sua função na operação

154

PERLER, 2008, p. 146.

155

Ordinatio II, d. 3, part. 2, q. 3, n. 369: “nenhuma razão criada pode ser a razão de conhecimento distinto de muitas quididades”. “(...) nulla una ratio create potest esse ratio distincte cognoscendi

plures quiditates”. 156

Ordinatio II, d. 3, part. 2, q. 3, n. 390: “Porque a espécie do primeiro objeto (que não é naturalmente presente pela essência) precede naturalmente o ato de seu conhecimento”. “Tum quia

species primi obiecti (quod non est praesens naturaliter per essentiam) praecedit naturaliter actum cognoscendi illud”.

157

PINI, 2015, p. 81-103.

158

intuitiva de conhecimento. Assim, através de uma espécie inteligível o intelecto angélico pode acessar uma essência específica e constituir conhecimento.

Um apelo às espécies pressupõe uma certa tese ontológica, a saber, que há essências universais (ou naturezas, quididades) no mundo e que estas essências podem ser apreendidas pelo intelecto. Manifetamente, Scotus concede que estas essências ou naturezas são sempre individualizadas no mundo material e que elas não existem em „pura‟ universalidade (...) Ele, no entanto, defende uma visão mais realista dos universais, afirmando que existem naturezas universais no mundo extramental, não apenas no intelecto, e que estas naturezas são acessíveis ao intelecto angélico por meio de espécies inteligíveis. Esta é precisamente a função das espécies, tornar estas naturezas acessíveis e descartar todas as características individuais. 159

A análise do intelecto angélico e de seu processo de conhecimento revelam pressupostos epistemológicos que dizem respeito não apenas aos anjos, mas à cognição de modo geral. Além disso, tal análise revela alguns pressupostos metafísicos fundamentais, para Scotus: (1) existem essências universais nos objetos extramentais, (2) existem intelectos capazes de acessá-las, (3) o acesso é intermediado por espécies inteligíveis que não são os próprios objetos do intelecto, mas possibilitam o acesso aos objetos do intelecto. A interpretação de Scotus encontra um contraponto, entretanto, em Ockham:

Em sua visão, anjos apreendem diretamente vários objetos e, assim, fixam diretamente o conteúdo de seus atos intelectuais. Espécies são entidades supérfluas que não desempenham papel nenhum no processo cognitivo. 160

A crítica de Ockham é direcionada às espécies inteligíveis que, para ele, são supérfluas e, por isso, não devem ser afirmadas no processo cognitivo. Assim como um hábito científico não é capaz de explicar como ocorre a cognição de um item específico, as espécies inteligíveis são incapazes de esclarecer o processo cognitivo. Elas são afirmadas pos Scotus no intuito de explicar como o intelecto imaterial pode conhecer o objeto material, entretanto, não é claro como ocorre a relação entre o objeto material e as espécies inteligíveis. Além disso, não se elucida como as espécies podem ser

159

PERLER, 2008, p. 150.

160

PERLER, 2008, p. 148: “Ockham discorda amplamente de Scotus. De fato, ele rejeita a afirmação básica de Scotus de que as espécies inteligíveis são requeridas como dispositivos cognitivos”.

inteligíveis sem anteceder o ato cognitivo e como elas podem possuir a capacidade de promovê-lo. Enfim, a capacidade da espécie de apresentar o objeto ao poder cognitivo não é elucidada, a operação continua sem possuir explicações suficientes, pois a adição destas outras etapas não elucida o processo. Ockham opta, portanto, por negar a existência das espécies inteligíveis e propõe um processo cognitivo sem tais intermediários.

Mas quando uma coisa se faz presente a um intelecto angélico ou ao nosso intelecto, sem nenhuma coisa prévia, seja um hábito ou uma espécie, o intelecto pode conhecer a coisa intuitivamente. Portanto, tal coisa é a causa desta cognição. 161

Para Ockham não havia necessidade de postular um intermediário entre um objeto capaz de ser conhecido e um intelecto capaz de conhecer. Por isso, rejeita as espécies inteligíveis162, o hábito científico ou qualquer outro tipo de intermediário como necessário para a cognição. A intelecção do singular é compreendida como direta e intuitiva, entretanto ele continua utilizando o vocabulário da abstração. Para ele, intuição e abstração não são incompatíveis.

A cognição intuitiva é aquela pela qual conheço que uma coisa existe quando existe, e que não existe quando não existe. Entretanto, a cognição abstrativa é aquela pela qual não julgamos que uma coisa existe quando existe, nem que não existe quando não existe. 163 Ockham tem como objetivo diferenciar momentos ou etapas da cognição. No que diz respeito a conhecer algo, este conhecimento é direto e chamado intuitivo164. Em um segundo momento ocorre a operação judicativa pela qual se pode julgar sobre o que foi conhecido. Esta última operação é estabelecida como abstrativa. Para Ockham,