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Capítulo III – Memória de Intelectuais Negros (as): Patrimônio da Comunidade

3.2 Intelectuais negros (as): Patrimônio Vivo da Comunidade Negra

Partindo do pressuposto que ao contarem sua trajetória de vida os/as intelectuais negros/as dão a conhecer sua experiência de vida e também seus valores relacionados a vida familiar, social e profissional, afirmo serem eles/as patrimônios vivos da comunidade negra. Ao dizer patrimônio vivo refiro-me ao entendimento de um dos programas da UNESCO, implantado em 1989 que tinha como objetivo a preservação e valorização das culturais tradicionais. Esse programa Tesouros Humanos Vivos incentivou a criação de sistemas nacionais de identificação e reconhecimento oficial de indivíduos considerados por suas comunidades como depositários e praticantes da tradição (GALLOIS, 2006, p. 16) Mas não apenas por valorizarem e preservarem a cultura afro-brasileira podem ser considerados patrimônios, mas principalmente pelo trabalho que prestam em favor da comunidade. Para ser considerado patrimônio da comunidade negra, o/a intelectual negro/a deve estar unido à sua comunidade e também consciente dos problemas que envolvem a questão dos/as negros/as na sociedade brasileira assim como os desafios da luta negra contra a discriminação racial. O/a intelectual negro/a precisa encontrar ressonância na sua comunidade, reconhecimento de seu valor enquanto representante negro/a na sociedade.

Para explicar melhor a necessidade do reconhecimento da comunidade para que um objeto seja ele material ou imaterial, adquira valor de patrimônio, cito os estudos de Gonçalves (2004, p.22) que fala das dimensões sociais e simbólicas do patrimônio. O autor destaca três aspectos dessas dimensões, expressos nas categorias ressonância, materialidade e subjetividade. Vejamos como se destaca o aspecto ressonância. Gonçalves (2004, p.18) argumenta que em algumas situações:

[…] determinados bens culturais, classificados por uma determinada agência do Estado como patrimônio, não chegam a encontrar respaldo ou reconhecimento junto a setores da população. O que essa experiência de rejeição parece colocar em foco é [...] o fato de que um patrimônio não depende apenas da vontade e decisão políticas de uma agência de Estado. Nem depende exclusivamente de uma atividade consciente e deliberada de indivíduos ou grupos. Os objetos que compõem um patrimônio precisam encontrar ressonância junto a seu público.

Interessante citar a reflexão do autor sobre o uso do termo, ressonância, relacionado ao patrimônio, vejamos:

Por ressonância eu quero me referir ao poder de um objeto exposto atingir um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais, o poder de evocar o expectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu e das quais ele é, para o expectador, o representante. (GREENBLATT: 1991 apud GONÇALVES: 2004, p.19)

Greenblatt (1991), conforme Gonçalves (2004), fala sobre o poder que um objeto patrimonial tem de evocar forças culturais o que requer o trabalho da memória para trazer à lembrança tais forças culturais, as quais, por sua vez contam a história. Mas para evocar forças culturais, os objetos precisam encontrar ressonância e assim sendo, adquirirem significado de patrimônio. Ao contrário, “no processo de construção de patrimônio, coleções, museus, monumentos e arquivos, realiza-se um trabalho de eliminação de ambigüidades, ou seja, substituem-se categorias sensíveis, ambíguas e precárias por categorias abstratas com a função de representar memórias e identidades” (GONÇALVES, 2004, p.19)

O autor argumenta que a eliminação da ambigüidade e da precariedade dos patrimônios culturais compromete o poder da ressonância, o poder de trazer à lembrança das pessoas as forças culturais de onde eles, os objetos, surgiram. Gonçalves (2004) discorda desta eliminação de ambigüidades e precariedades dos patrimônios culturais e,

chama a atenção para o fato de que o patrimônio possibilita acesso ao passado não dependendo do trabalho consciente de construção do presente, pois se de um lado, continua o autor, construímos o passado, esse se mostra em nossas práticas e representações. Seja como for, é notável na reflexão do autor, que o papel desempenhado pelo objeto, aquilo que é palpável contribui para despertar nas pessoas, as lembranças que dizem respeito a sua cultura, a sua vida social, a sua história. Por isso, o autor destaca o aspecto materialidade também presente nos estudos sobre patrimônio.

Gonçalves (2004) chama atenção para o fato de que ao falar patrimônio logo pensamos tratar-se do que é material. Por esse motivo, “foi necessário, nos discursos contemporâneos, criar a categoria do „imaterial‟ [...] para designar aquelas modalidades que escapariam de uma definição convencional limitada a monumentos, prédios, espaços urbanos, objetos, etc.” (Gonçalves, 2004, p.21)

Gonçalves explica que não tem como falar em patrimônio sem falar de sua dimensão material, porém, destaca que se trata de uma categoria ambígua que transita entre o material e o imaterial.

A obra de Cascudo, 1983, conforme Gonçalves (2004), organiza uma concepção particular do patrimônio cultural onde busca especificar o que Cascudo chama de “elementos humildes e de uso cotidiano”. Na obra, discuti-se a importância do objeto em sua materialidade assim como sua forma e seus usos sociais e simbólicos. Gonçalves (2004, p.22) explica que “muitos desses objetos podem ser certamente entendidos como „patrimônios‟, na medida em que, pela sua ressonância junto a grande parte da população brasileira, realizam mediações importantes entre o passado e o presente, entre o material e o imaterial, entre a alma e o corpo, entre outras”. Para entender melhor como se dá esta

relação, vejamos o seguinte exemplo que compara a relação da pessoa com a rede-de- dormir e com a cama:

O leito obriga-nos a tomar seu costume, ajeitando-nos nele, numa sucessão de posições. A rede toma o nosso feitio, contamina-se com os nossos hábitos, repete, dócil e macia, a forma de nosso corpo. A cama é hirta, parada, definitiva. A rede é acolhedora, compreensiva, coleante, acompanhando tépida e brandamente, todos os caprichos de nossa fadiga. Desloca-se, incessantemente renovada, à solicitação física do cansaço. Entre ela e a cama há a distância da solidariedade à resignação. (CASCUDO: 1983 apud Gonçalves: 2004, p.26)

Gonçalves (2004) analisa na descrição feita por Cascudo (1983) que é possível surpreender o objeto, rede-de-dormir, em sua materialidade como também em sua forma e em seus usos sociais e simbólicos. Explica ainda que, o uso desse objeto (rede-de-dormir) faz uma importante ligação entre o que é material e o que é simbólico resultando numa considerável valorização da subjetividade. Antes de entrar na reflexão sobre o aspecto subjetividade, é importante destacar que o objeto (o leito de dormir), precisa encontrar ressonância da pessoa. Não pode ser algo estático, acabado, como no caso da „cama‟. Se faz necessário uma identificação da pessoa com o objeto. O uso que se faz deste objeto é chamado por Gonçalves (2004) de subjetividade que é um dos aspectos do patrimônio. Segundo o autor não se trata de uma subjetividade caracterizada por ação disciplinada que se impõe sobre o mundo, a qual chama de subjetividade ocidental, mas sim uma subjetividade caracterizada por sua plasticidade e adaptação a esse mundo.

No entender de Fiori (1986), a subjetividade não se compara com a epseidade de um eu fechado em seu próprio mundo, mesmo porque, de acordo com o autor, se cada consciência fosse apenas à consciência de seu mundo, isolada dos outros mundos, a subjetividade não sobreviveria dentro de mônadas incomunicáveis. Ernani Fiori, explica

ainda que o ser humano não é um sujeito dentro de um mundo de objetos, mas sim uma subjetividade encarnada numa objetividade. Conforme o autor:

A subjetividade encarnada não submerge o eu na imanência de uma objetividade que o absorve e dissolve. Ao contrário, o mundo se incorpora ao eu corpóreo, quanto mais este

presentifica àquele, numa presença que ultrapassa todas as estreitezas situacionais. Como luz interior que, quanto mais apaga seus limites exteriores, difundido-se em todos os sentidos. Quanto mais profundamente se encarna a subjetividade, tanto menos limitante se faz a objetividade de seu mundo. (FIORI, 1986, p.5)

No exemplo dado por Gonçalves (2004), a rede-de-dormir toma a nossa forma, obedece ao movimento do nosso corpo, assim como o corpo se obriga ao costume do leito, no caso, a rede-de-dormir. Importante observar nessa reflexão que a subjetividade encarnada, qual seja a condição física do cansaço, impõe limite a objetividade do mundo parado, estático que seria a cama de dormir. Esse limite imposto pela subjetividade fica claro no encontro do corpo com rede-de-dormir, não apenas no encontro, mas no que resulta desse encontro, isto é, a significação que damos ao objeto, que naquele momento faz parte do mundo que nos rodeia, qual seja, a necessidade de descansar ou dormir, que são modos de sobreviver. Fiori (1986, p.4) diz que “o significar ativo em que o mundo é significado, não se efetua como atividade de uma consciência pura, pura subjetividade. Este significar, ao contrário, é um comportamento corpóreo-mundano e existencial, no qual se constitui e reconstitui o mundo significado”.

A trajetória de vida de uma pessoa, para ser considerada patrimônio da sua comunidade deve conter os aspectos: ressonância, materialidade e subjetividade. A ressonância é o reconhecimento da comunidade em relação à pessoa como representante desta na sociedade. A materialidade é o ser pessoa que carrega a experiência de vida

relacionada ao pertencimento a sua comunidade, também de luta em favor da mesma pode fazer desta pessoa patrimônio vivo, assim como seus guardados, escritos, objetos relacionados a sua cultura de origem. A subjetividade desta pessoa é importante para que seja considerada patrimônio vivo, pois que, o uso que ela faz da sua cultura, o assumir sua identidade racial, o compromisso com a comunidade é que vai lhe atribuir o significado de patrimônio.

Na presente pesquisa, a subjetividade dos entrevistados é importante para a investigação e ajudará a responder ou não a questão de pesquisa: Que processos educativos presentes na trajetória de vida de pessoas negras as formam intelectuais negros/as? Espera- se que os relatos orais dos entrevistados desvelem as suas significações de vida com as quais construíram e reconstruíram sua história, pois é importante resgatar a pessoa como sujeito ativo do seu próprio processo histórico.

Os/as intelectuais negros/as, colaboradores/as da pesquisa tornam-se sujeitos ativos no processo de lutar para construir e reconstruir a sua história e a história da sua comunidade negra, uma vez que esta história foi deteriorada pela discriminação racial. Esta prática social do/a intelectual negro/a, integra não apenas o patrimônio cultural afro- brasileiro, mas também o patrimônio cultural brasileiro. A luta de combate à discriminação racial empreendida pela comunidade negra como processo de valorização e preservação da cultura afro-brasileira, é assunto do próximo capítulo.

Capítulo IV - A luta contra a discriminação racial: práticas sociais e

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