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Do intelectual engajado

No documento Participação Política e Web 2.0 (páginas 45-48)

Notas sobre a construção do acontecimento jornalístico: do intelectual engajado ao advento da web 2

1. Do intelectual engajado

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ENDO TAMBÉM O ACONTECIMENTOum fato de sociedade, ele surge co- mo um espelho das paixões de grupos sociais. O acontecimento jorna- lístico, além de ser um fato social, ele implica o funcionamento dos meios de comunicação e em cada época, o acontecimento traz a tona os medos, as intolerâncias, as expectativas de uma determinada época e o funcionamento dos meios de comunicação que possibilita a sociedade.

A construção do acontecimento jornalístico e no seu bojo a busca por cidadania pode ser vista desde muito tempo. Dois dos casos mais célebres foram o affaire Calas, ainda no século XVIII (1761-1765)1, e outro, no seculo XIX, o affaire Dreyfus (1894-1906)2. Em ambos os casos, destaca-se o papel de dois renomados escritores sendo implicados, como uma força motriz, no desenvolvimento do acontecimento, que lança as raízes do intellectuel engagé tão presente no cenário francês durante o século XX.

Os affaires Calas e Dreyfus poderiam ocorrer hoje, sob os nossos olhos, dois casos marcadamente nutridos pela intolerância. Poderiam ser duas ocor- rências, se não fosse, entre outras, a ingerência de Voltaire e Zola, respectiva- mente. A mediatização coloca a luz do dia a intolerância reinante na França, no primeiro caso (Calas), ocorrido na cidade de Toulouse, o mal estar com a minoria protestante (os novos convertidos) e a condução do processo mar- cada pela pressão popular, levando à execução de Jean Calas em 1762, como responsável pelo enforcamento do filho em razão de sua conversão ao catoli- cismo, sendo o pai um protestante.

“Eis porque o affaire Calas continua exemplar e não conhece um fim. Cada época, cada indivíduo o olha e se enxerga através dele,

1Ver Garrison, J. (2004). L’Affaire Calas – miroir des passions françaises. Paris. Fayard. 2Ver Zola, É. (1969). La vérité em marche – l’affaire Dreyfus. Paris. Flammarion.

espelho que se desloca através dos séculos. Neste espelho, a ima- gem não é nunca a mesma. Até os nossos dias, a controvérsia corre e atinge as gerações, carregada pelas paixões do momento, renascendo crimes e tormentas da história vivida por cada um.”3 Voltaire se implica no caso, a partir de sua propriedade de Ferney, ao perceber que o affaire Calas representava um daqueles momentos que em que todos os elementos são reunidos e justificam a raiva da França que leva ao pior ou ao melhor. A injustiça do caso Calas o leva a “mover céu e terra” para agitar mentes. Ferney se torna uma central de informação, um foco de agitação, uma redação de Gazette, de onde Voltaire dizia: “estou escrevendo para agir”.

No meio da turbulência (1763), ele publica, sob o manto do pseudônimo, mas ninguém duvida de onde surge o livro intitulado “Tratado sobre a Tole- rância”4, uma obra que ataca o fanatismo religioso, a partir do affaire Calas. O caso torna-se, então, uma “causa célebre” que ilustra a injustiça da corte de então e uma justiça subjugada aos desvaneios religiosos.

Depois de idas e vindas, em 12 de março de 1765, apesar da hostilidade do Parlamento de Toulouse, Calas foi reabilitado por unanimidade e sua família compensada pelo Conselho do rei, sendo esta a primeira vez na história da monarquia francesa a admissão de um erro e sua correção. Em abril de 1778, a notícia se espalha acerca do retorno de Voltaire a Paris, após um banimento de 20 anos e ele é saudado pela multidão com a lembrança sonora: “ Homem... Calas, Calas, Calas”.

No século seguinte, surge um outro acontecimento que vai envolver e di- vidir a França mais uma vez. É o caso de um oficial de origem judaica, Alfred Dreyfus, condenado por alta traição, num julgamento fraudento, baseado na sua cooperação com os alemães. As evidências de inocência possibilitam, em 1898, um segundo julgamento, sendo, no entanto, confirmado a condenação de Dreyfus.

O resultado de tal julgamento, levou a indignação de Émile Zola e outros intelectuais, entre eles, Anatole France. O escritor A. France toma a defesa abertamente de Dreyfus e dos judeus no seu livro “O Anel de Ametista”, no qual são descritos os manifestos populares e as perseguições daqueles que

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Garrison, J. Op. Cit., p. 09.

discordavam da sentença. O caso já tomava a dimensão de “grande erro”, seguido sempre da crítica à confiança cega dos franceses em relação às insti- tuições exército e o clero.

O caso ocupa a cena pública em dimensões superlativas, em 13 de janeiro de 1898, quando o escritor Émile Zola publica no jornal L’Aurore uma carta aberta ao Presidente da República, intitulada J’accuse! (Eu acuso!). O jor- nal L’Aurore com uma tiragem de 30.000 exemplares, esgotou-se em algumas horas, mesmo sendo a tiragem deste dia multiplicada por 10, ou seja, 300.000 folhas. O objetivo de Zola não fora um artigo histórico, mas um relato jurí- dico, tendo em vista uma tomada de consciência no momento em que o caso Dreyfus parecia uma causa perdida. Zola recebe mais de 2.000 cartas cuja metade era oriunda do exterior.

Buscando relançar o debate sobre o caso, após duas condenações do ofi- cial Dreyfus, Zola obtém êxito na sua investida “a verdade em marcha”, no entanto, é condenado à pena máxima (prisão mais multa), sendo leiloado seus bens para cobrir o valor da multa e tendo ele também conhecido o exílio na In- glaterra. Dreyfus, de seu lado, foi restabelecido parcialmente no exército, pois os 5 anos de aprisionamento não foram levados em conta na reconstituição de sua carreira.

Os casos Calas e Dreyfus ilustrativos na condição de acontecimentos nos séculos XVIII e XIX e tendo como destaque o papel do intelectual na condu- ção, ou melhor, na construção do evento, como também como mediador ou caixa de ressonância dos anseios de parte da opinião pública implicada. Ele ocupa um lugar de relevância na cena do acontecimento.

Com o desenvolvimento da imprensa e de outros meios de comunicação ao longo do século XX, irá se assistir a presença constante de acontecimentos jor- nalísticos: assasinatos de homens políticos, impeachments, guerras, acidentes em usinas nucleares e tantos outros. O acontecimento, tradicionalmente ob- jeto da disciplina História, passa a ser objeto, igualmente, dos estudos no do- mínio da comunicação, seja ela de origem diversa como assinalamos acima: o movimento de maio de 68 em Paris (Gouaze, 1979; Certeau, 1994), a queda do presidente Collor (Ferreira, 1994), o acidente na usina nuclear de three mile island nos EUA (Veron, 1981), a morte do presidente Tancredo Neves (Fausto Neto, 1988), o conflito na ex-Iugoslávia (Bonnafous, 1996); as gran-

des cerimônias televisivas (Dayan e Katz, 1996), os distúrbios nas periferias das grandes cidades na França (Chanpagne, 1991), entre tantos outros.5

O século XX, o profissional jornalista adquire importância e passa a ocu- par um lugar central na construção do acontecimento. Provavelmente o caso Watergate seja emblemático, como também o complexo de Clark Kent, meio super-homem, meio jornalista. Buscar-se-á, na segunda parte deste artigo, se ater, sobretudo, na construção da narrativa do acontecimento jornalístico, ou seja, as tramas que leva o acontecimento a ter características próprias, indo muito além da narrativa do factual que edifica as notícias ordinárias, os fatos acerca da cidadania que se perdem num canto de página de um jornal ou em alguns segundos de outros meios (rádio, televisão).

2. Da narrativa na construção do acontecimento jorna-

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