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Interação entre agir e objeto de ensino: saberes

Tendo em vista as distinções e as especificações próprias às interações verbais, consideramos relevante analisar a formação do professor tanto pelas interpretações que têm os estagiários sobre suas ações, quanto pelo agir, propriamente dito, em sala de aula. Esse tipo de observação nos leva a compreender as especificidades do agir do estagiário de FLE, nosso sujeito em foco nesta pesquisa, e a conceber a formação desse futuro professor como construção social, histórica e discursiva, através do próprio estatuto da linguagem como mediadora do saber nas formações sociais, como, no nosso caso, na formação professoral.

Através dessa mediação, podemos observar as transformações que sofre o objeto de ensino até seu estatuto de objeto ensinado. Essa transformação conhecida pelo nome de transposição didática foi utilizada, primeiramente, pelo sociólogo Michel Verret, em 1975 e, depois, pelo matemático Yves Chevallard, em 1985, na obra La

transposition didactique: du savoir savant au savoir enseigné. Nesta obra, o autor

campo científico para o saber a ensinar e, deste, para o saber realmente ensinado. Como podemos ilustrar no seguinte esquema, retirado de Chevallard (1991[1985]), vejamos: Quadro 1 - Transposição didática por Chevallard (tradução nossa)

objeto de saber  objeto a ensinar  objeto de ensino7

Fonte: Chevallard (1991[1985], p.39).

Segundo o autor, cada flecha indica uma transformação, marcando a passagem de algo “implícito para o explícito, da prática à teoria, do pré-construído ao construído” (tradução nossa)8 (CHEVALLARD, 1991[1985], p. 40) e, como acrescenta Schneuwly (2009), é uma transformação com base em regras didáticas definidas, a partir da especificidade de cada área em questão. No nosso caso, podemos dizer que se tratam das transposições que ocorrem no ensino da língua francesa, o que envolve os saberes ensináveis referentes a essa língua.

Assumimos, conforme Schneuwly (2008, p. 48), que “somente os saberes são ensináveis” (tradução nossa)9

, por isso é preciso saber o que estamos ensinando - o que tem a ver com “conhecer” algo -, isto é, ter consciência do que estamos ensinando - o que se refere ao conhecimento reflexivo e crítico e à tomada de consciência. Nosso posicionamento está ancorado no pensamento vigotskiano de que a tomada de consciência acontece quando o sujeito compreende um saber, ou seja, apropria-se deste. Para isso, é necessário observarmos como o estagiário age em função do objeto de ensino e como ele percebe essa interação entre a sua ação e o objeto, o que nos confirma que o nosso ponto de vista é o do agir do estagiário.

Para que um objeto de saber se torne ensinável, e não somente para ser utilizado como em situações cotidianas, é preciso um reconhecimento social desse saber. Dentre vários saberes, escolhemos um para ensinar, mas, antes disso, ele precisa ser legitimado, institucionalizado, como o é o saber científico, reconhecido como tal, em um dado momento histórico e social (SCHNEUWLY, 2009, p. 21). O objeto de saber passa a objeto de ensino, sendo este a unidade constitutiva da transmissão de saberes. O objeto de ensino passa a ser decomposto em unidades menores que também são ensináveis, como, na frase “Si l’autobus n’arrive pas en retard, je pourrai attraper ma

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«  objet de savoir  objet à enseigner  objeto d‟enseignement ».

8

“(...) implicite à l‟explicite, de la pratique à la théorie, du préconstruit au construit”.

9

correspondance10” (CHARTRAND et al, 1999, p. 257), em que temos uma subordinada

em francês que pode ser estudada, tanto pelo ponto de vista da expressão de condição, quanto dos verbos que estão em sua construção.

Com relação ao uso do termo “objeto de ensino”, consideramos o termo “objeto de ensino”, tal como apresentamos no quadro anterior, segundo Chevallard (1985). Sabemos que “objeto de ensino” é aquele constituído pelo tema da disciplina em questão, por exemplo, um objeto gramatical como a oração coordenada adversativa, e passa por uma transformação de saberes e de ações do professor e, no nosso caso, do estagiário. Esclarecemos esse termo, tendo em vista que existe a noção de “objeto ensinado” que é trabalhada, pelo grupo GRAFE (Groupe de recherche pour l'analyse du français enseigné), em Genebra, sob a perspectiva de um dispositivo metodológico conhecido por sequência didática11. O grupo utiliza, preferencialmente, o termo “objeto ensinado”, ao invés de “objeto de ensino”, pois interessa o resultado do processo de transformação do “objeto a ensinar” em “objeto ensinado”, analisado por meio do dispositivo citado 12. Assim, Sob esse ponto de vista, trazemos a definição de “objeto ensinado”, que, para Schneuwly (2009), “é, portanto, o resultado continuamente retrabalhado da ação do professor, seguindo sua própria lógica, articulado, constantemente, a outra ação, a aprendizagem escolar, que segue a lógica dos alunos” 13 (p. 24).

Apoiamo-nos nessa definição e afirmamos que, em nossa pesquisa, assim como a equipe genebrina, levamos em conta o investimento dado pelo estagiário ao “objeto de ensino” para que este se torne, efetivamente, ensinado. Ressaltamos que esse investimento tem a ver com o repertório mobilizado por esse sujeito em questão, nesta pesquisa. Dessa maneira, escolhemos o termo “objeto de ensino” porque é um de nossos objetivos compreender a interação entre o estagiário e o objeto, através dos saberes mobilizados pelo estagiário no ensino da língua francesa. Nessa perspectiva, damos ênfase à aprendizagem da língua pelo estagiário e, consequentemente, ao saber a

10

Se o ônibus não chegar atrasado, poderei pegar minha correspondência (tradução nossa).

11

A sequência de didática é um conjunto de módulos elaborados pelo professor para alcançar objetivos referentes à produção escrita e/ou oral. Trazemos essa definição, mas ela não é nosso foco de estudo nessa tese. (Cf. DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução R. Rojo, S. C. Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2004.).

12 Para maiores detalhes, conferir nas referências bibliográficas desta tese Schneuwly (2009) em

Schneuwly & Dolz, 2009.

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« [...] est par conséquent le résultat sans cesse retravaillé de l‟action de l‟enseignant, suivant sa propre logique, articulé continuellement à cette autre action, l‟apprentissage scolaire, qui suit la logique des élèves ».

ensinar (que tem a ver, como veremos adiante, com conhecimentos sobre a língua

estrangeira) que ele evoca ao assumir o papel de estagiário de uma turma.

Retomando Chevallard (1991[1985]), essa transformação, pela qual passa o “objeto de saber”, pode ser concebida em dois níveis, a transposição externa e a transposição interna (grifos nossos). Esses níveis se diferenciam da seguinte maneira: quanto à transposição externa, ela se caracteriza pela passagem do “objeto de saber” para o “objeto a ensinar”. Essa fase compreende planos de aula, documentos institucionais e livros didáticos que estão, essencialmente, no domínio do texto escrito. Nestes termos, podemos entender que esse nível de transposição está relacionado ao sistema de ensino, às matrizes e diretrizes curriculares e aos dispositivos de ensino, como as ferramentas didáticas. Podemos, então, percebê-lo, em sala de aula, através do planejamento da aula, a seleção dos temas a partir do livro didático e a ordem que segue, no caso, o estagiário, para desenvolver esses temas. Esse nível está, portanto, situado antes da atividade de ensino, propriamente dita, e durante a sua execução.

O nível que corresponde, diretamente, a essa atividade é o da transposição

interna, cuja realização se dá na passagem do “objeto a ensinar” para o “objeto de

ensino”. Segundo Dolz et al (2009), podemos reconhecê-lo nas ações de ensino de cada professor. Através dele, podemos observar as constantes redefinições pelas quais passam os conteúdos para o ensino de uma língua, tendo em vista a influência de normas e de regras, como os avanços científicos, os documentos oficiais, por exemplo, pertencentes, especificamente, ao nível da transposição externa, como acabamos de ver. Considerando nosso contexto de investigação, podemos dizer que nossa pesquisa está localizada no nível da transposição interna, visto que trabalhamos na perspectiva de compreender a figura do estagiário, a partir de suas ações, em sala de aula, relacionadas ao objeto de ensino, ou seja, analisamos o momento em que o “objeto a ensinar” é transformado pelo estagiário em “objeto de ensino”.

Então, nesse nível de transposição interna, podemos reconhecer os saberes mobilizados pelos estagiários, orientando-nos pelos saberes formalizados no ensino e na formação que são de dois tipos: saberes a ensinar e saberes para o ensino (SCHNEUWLY & HOFSTETTER, 2009). Eles podem ser concebidos do seguinte modo:

1) Saberes a ensinar: constituem os saberes que são os objetos do trabalho dos formadores e/ou professores, como, por exemplo, os conhecimentos sobre a gramática ou sobre a literatura de uma determinada língua estrangeira;

2) Saberes para o ensino: constituem os saberes que são as ferramentas do trabalho. São os saberes específicos para ensinar, como, por exemplo, o modo como compartilhamos o objeto, como ensinamos a gramática de uma dada língua, qual metodologia utilizamos. Também se constituem de saberes sobre o objeto de trabalho

do ensino e da formação, como acerca do aluno, do desenvolvimento, da aprendizagem,

e sobre a instituição, como planos de estudo, instruções, estruturas administrativas dentre outros.

Compreendemos que, a partir dessa diferenciação, os dois tipos de saberes apresentados se referem a dois elementos com os quais age o professor, ou, como no nosso caso, o estagiário. Um corresponde ao objeto (no caso a língua ensinada e suas ramificações) e o outro ao modo de compartilhamento de tal objeto.

Semelhante a esse processo, pensou Vanhulle (2009) acerca dos saberes

profissionais formalizados definidos como aqueles que

(...) se constroem na reelaboração subjetiva de conhecimentos advindos, ao mesmo tempo, das experiências em situações, dos saberes científicos apreendidos, das prescrições institucionais em circulação e do contato com as práticas sociais do lugar de formação14(p. 249).

Ela os caracteriza como saberes de referência e da experiência informal, cuja materialização acontece através do discurso. Podemos observar que Vanhulle (2009) focaliza os saberes apreendidos através de experiências formais e do contato mais informal.

Para nossa pesquisa, utilizaremos, em específico, os saberes como conceitualizados por Schneuwly e Hoffstetter (2009), no entanto, não excluímos as noções de Vanhulle (2009) quanto ao tipo de experiências evocado, se estas são situadas no meio formal ou informal. E nos aproximamos do contexto dessa autora, pois nosso campo de pesquisa também é o estágio de FLE.

Assim, podemos pensar da seguinte maneira: o formador e/ou professor forma o aluno ensinando saberes. Seu agir é definido por saberes a ensinar, pois são os saberes específicos a cada campo disciplinar, como, em nosso caso, que temos os

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« [...] se construisent dans la réélaboration subjective de connaissances à la fois issues des expériences en situations, des savoirs scientifiques appris, des prescriptions institutionnelles en circulation, et du contact avec les pratiques sociales du terrain ».

saberes voltados para o ensino de FLE. O agir do formador e/ou professor acontece por meio da utilização, da explicitação apoiada nesses saberes. E no caso do agir do estagiário de FLE, no Brasil, em uma formação inicial de professor de FLE, em contexto exolíngua? Quais são os saberes que o definem?

Consideramos que são mobilizados saberes que podem constituir a caracterização do agir específico desse estagiário de FLE, através de sua interação com o objeto de ensino, evidenciando sob a perspectiva vigotskiana (2008[1934]) de que o conhecimento é construído no quadro de atividades coletivas e mediadas pelas interações verbais. Ainda sobre essa questão dos saberes e dos conhecimentos mobilizados em sala, apresentamos a noção de repertório didático de Cicurel (2011a) que engloba esses elementos do agir docente.

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