Anteriormente, destacamos que, segundo Bronckart (2006), o agir existe quando há intervenção humana situada feita por um ou por vários indivíduos e sua análise poderia acontecer a partir de dois tipos de situações, o das condutas observáveis e/ou das interpretações das ações efetuadas. Optamos por seguir esse raciocínio e afirmamos, em consonância com Cicurel (2011a), que o agir do estagiário de FLE está inscrito nessa perspectiva. Nesse sentido, ao analisarmos o momento de sala de aula, focalizamos os saberes e a sua relação com o objeto de ensino. Essa interação nos dá acesso ao repertório do estagiário, termo que dialoga com o conceito repertório
didático criado pela autora Cicurel (2011a). Para definirmos o repertório do estagiário
(noção desenvolvida no capítulo 3 desta tese), devemos, antes, compreender o que significa o repertório didático.
Conforme Cicurel (2011a), todo professor tem um repertório didático que ele constrói ao longo de suas experiências didáticas, seja na formação inicial, quando ele assume os papeis de estudante e de estagiário, seja na continuada, quando ele já é licenciado, ou seja, professor. Nesta pesquisa, assim como a autora citada, vamos tratar do repertório em contexto de sala de aula de FLE; no entanto, isso não impede que, em outras pesquisas, a análise recaia sobre o professor de língua materna, por exemplo.
De uma maneira geral, o repertório didático15 constitui-se, segundo Cicurel (2011) de vários elementos presentes no agir de quem leciona FLE, a saber: práticas metodológicas, figuras de professores (positivas ou negativas), formações diversas (saberes acadêmicos e pedagógicos), experiências enquanto aprendizes, o papel da cultura educativa nativa, transmissão dos saberes em família (relação com o meio social e com o saber), contatos com outros professores do meio institucional onde está inserido, materiais pedagógicos e saberes didáticos através de leituras, conhecimentos de grupos e dos próprios alunos (quando houver), feed-back após avaliação, saberes comuns e científicos sobre a LE, exemplos de convicções, de crenças, de princípios sobre o ensino, estratégias adaptadas às dificuldades encontradas, humor, encenação, mímicas, dentre outros.
A partir desses elementos, elencados em uma pesquisa pela autora Cicurel, podemos perceber que a dinâmica de sala de aula é bastante complexa, pois, quando o professor ou o estagiário agem, em função do ensino e da aprendizagem da língua estrangeira, entram em jogo vários conhecimentos. Baseando-nos nesse levantamento de componentes do repertório didático do professor feito pela autora, evidenciamos, em nosso trabalho, os elementos do repertório do estagiário de FLE que, envolve, de maneira mais específica, saberes a ensinar e saberes para o ensino.
Dessa maneira, quando falamos do agir do professor e/ou do estagiário, podemos destacar, segundo Cicurel (2011a), o fato de que para cumprir seu métier docente, ele executa uma sequência de ações geralmente coordenadas e, às vezes, simultâneas, subordinadas a um objetivo global, com uma certa intencionalidade, o que diz respeito aos saberes para o ensino, já que prioriza as ferramentas de trabalho docente. Ao lado desses saberes, estão os saberes a ensinar que focalizam os conhecimentos disciplinares acerca do objeto de ensino. Os dois tipos de saberes foram referenciados na seção anterior e nos auxiliam a identificar o repertório do estagiário, o que, por sua vez, orienta-nos à compreensão do agir do estagiário, em específico.
Trazemos, também, o conceito de repertório didático discutido por outra autora. Ela afirma que o repertório:
15 Em 2017, durante meu estágio de doutorado-sanduíche, em uma conversa informal, entre mim, minha
orientadora de tese e a professora Cicurel, esta nos explicou, de maneira metafórica, que o repertório didático é como uma “mochila”, na qual podemos colocar vários itens e, à medida que vamos necessitando deles, vamos retirando-lhes. Segundo ela, eles têm a ver com todos os tipos de conhecimentos, seja de ordem científica ou de experiências informais.
remete a um conjunto de referências teóricas e práticas forjadas a partir da experiência pessoal e formativa de um indivíduo por impregnação, observação e por imitação, mas também por aprendizagem explícita. É a esse conjunto de referências / modelos que o professor vai recorrer para construir sua identidade profissional e para utilizar suas práticas de transmissão. O conjunto dos modelos remete, portanto, também à noção de cultura(s) educativa(s) à qual (às quais) os estudantes – enquanto indivíduos, cidadãos, aprendizes, estudantes – foram / são expostos em uma dada sociedade, depois em uma dada formação, em um dado momento16. (CADET, 2006, p.45) (tradução nossa)
Como podemos observar, a definição de Cadet (2006) dialoga com a de Cicurel (2011) no sentido de nos esclarecer que o repertório didático evidencia saberes advindos de experiências, que o professor e, no nosso caso, o estagiário vivenciam em sala de aula. De uma maneira geral, estes elementos repertoriados estariam na composição do agir específico do professor e, consequentemente, do estagiário e são mediados pela linguagem. Destacamos que, por ser um agir específico do estagiário, é possível que esse repertório não seja fixo, pois, após as interpretações de suas ações, é possível haver uma transformação do agir do estagiário e, consequentemente, do
repertório. Nessa perspectiva, podemos pensar que há um agir específico referente ao
estagiário, tematizado pelas suas próprias ações constituídas de saberes em constante mobilização. Para nós, é pertinente o desdobramento dessa noção em nosso trabalho, na medida em que nos auxilia na compreensão do agir específico de FLE a partir de uma abordagem discursiva da formação inicial de professores de FLE. Sobre a definição de agir do estagiário, desenvolvemos uma discussão sobre o estágio e sobre o agir professoral no próximo capítulo.
Nossa proposta será verificada no capítulo de análises. Para uma visão geral do que apresentamos neste capítulo teórico, propomos uma síntese.