• Nenhum resultado encontrado

A CtIDH, por meio da interpretação expansiva de sua competência para concretizar os direitos da CADH com base em outros instrumentos que veiculam normas de direitos humanos (LIXINSKI, 2010, p. 594), cita, além dos tratados internacionais de direitos humanos do nível global, as manifestações dos órgãos instituídos especificamente para fiscalizá-los e implementá-los204. O art. 29, b, da CADH prevê que a interpretação a ser realizada da convenção não poderá limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados, por essa razão, a CtIDH interpreta os tratados de direitos humanos do nível global como se a convenção fizesse parte de um mesmo conjunto de direitos humanos internacionais (LIXINSKI, 2010).

Quando da análise de caso em que Estado estava sendo acusado de ter violado o direito à vida e à integridade pessoal de menores internados em instituição carcerária205, a CtIDH interpretou as obrigações advindas do art. 19 (direitos da criança), da CADH com base na Convenção dos Direitos da Criança, da ONU206, em função da obrigação adicional que os Estados devem garantir em função da qualidade da pessoa encarcerada207. A fim de analisar se o Estado havia violado a vida digna e o projeto de vida dos menores, a CtIDH utilizou como critério o conceito de “desenvolvimento da criança” presente na Observação Geral nº 05/03, do Comitê dos Direitos da Criança208.

A CtIDH teve a oportunidade de citar relatórios periódicos e recomendações finais de comitês da ONU sobre países que estavam sendo demandados na corte por fatos e circunstâncias semelhantes aos expostos no nível global, como no caso Raxcacó Reyes vs.

204 As citações descritas serão limitadas às Observações Gerais e Relatórios dos Comitês que fiscalizam os 09 tratados da ONU, pois, ainda que a jurisprudência dos comitês seja importante para o desenvolvimento dos tratados que devem implementar (e são citadas pela CtIDH), nem todos os comitês possuem competência para analisar petições individuais. Dessa forma, a análise se restringirá às competências compartilhadas por todos os comitês de direitos humanos da ONU. Do ponto de vista do nível regional, apenas serão analisadas as situações em que se observou forte influencia do nível global na interpretação da CADH. A utilização de materiais do nível global (relatórios, declarações, resoluções, tratados etc.) é abundante no SIDH e ocorre na maioria dos casos decididos pela CtIDH.

205 Corte IDH. Caso "Instituto de Reeducación del Menor" Vs. Paraguay. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 2 de septiembre de 2004. Serie C No. 112.

206 Idem, § 148.

207 Idem, §160. A CtIDH citou sua jurisprudência desenvolvida na OC 17/02, § 54.

208 A CtIDH adotou o conceito amplo de “desenvolvimento” elaborado pelo Comitê da ONU (que incluía aspectos físicos, mentais, espirituais, morais, psicológicos e sociais) para sustentar o dever do Estado de proporcionar cuidados de saúde e educação às crianças que mantiver sob sua custódia, para que o projeto de vida das mesmas não fosse destruído.

Guatemala209, em que a corte, ao interpretar a limitação da imposição de pena de morte para casos não contemplados na legislação nacional anteriormente à ratificação da CADH (art. 4.2), lançou mão de importantes recomendações formuladas pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU especificamente para a Guatemala210 e para outros países211 para declarar a violação da convenção americana.

Posteriormente, na análise de caso em que se discutia a responsabilidade internacional do Estado por não ter tomado medidas eficazes para reconhecer o direito de propriedade comunal do povo Saramaka212, a CtIDH discutiu direitos inerentes a uma comunidade especifica, que se diferenciava da comunidade politica nacional, o que implicava em um conjunto de direitos específicos, interpretados de acordo com suas tradições culturais. O direito à propriedade de tal povo se insere em uma perspectiva comunal (relação especial com seus territórios ancestrais de acordo com suas próprias categorias jurídicas)213, tornando as concessões estatais às madeireiras violadoras do direito à propriedade (art. 21 da CADH).

Tendo em vista que a jurisprudência da corte sobre propriedade comunal de povos indígenas foi construída com base na interpretação de leis latino-americanas que previam direitos indígenas214 e no disposto na Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a análise do caso de Suriname sobre populações tradicionais deveria seguir um viés semelhante. No entanto, ao analisar o direito interno do Suriname, a corte verificou que o Estado não previa em suas leis a ideia de propriedade comunal e não ratificara a OIT nº 169, mas, afirmou a corte, o Estado fazia parte do PIDCP e o PIDESC215. Incorporando

209 Corte IDH. Caso Raxcacó Reyes Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de septiembre de 2005. Serie C No. 133.

210 Idem, § 59. O comitê expressou sua preocupação com a ampliação das hipóteses em que seria cabível a pena de morte na Guatemala. Afirmou, inclusive, que a norma questionada no caso perante a corte anos depois (ainda que sua redação tenha sido alterada quando da análise no SIDH, a norma manteve sua essência), não apresentava justificativa necessária para a imposição de pena tão severa (no caso de sequestros sem o resultado morte), portanto, seria contrária ao PIDCP (ONU, Comité de Derechos Humanos. Observaciones finales sobre Guatemala emitido el 27 de agosto de 2001, CCPR/CO/72/GTM, § 17).

211 A CtIDH considerou que a regulamentação do crime de sequestro determinara a imposição da pena de morte para os autores de forma automática e genérica, ou seja, ignorando-se a análise das circunstâncias particulares do caso, dificultando a análise da adequação da medida (pena capital) às disposições convencionais (Caso Raxcacó Reyes Vs. Guatemala, § 79). A interpretação da corte estava baseada nas recomendações do Comitê de Direitos Humanos da ONU (Cfr. ONU, Comité de Derechos Humanos, Kennedy c. Trinidad y Tobago - Comunicación No. 845/1999; UN Doc. CCPR/C/74/D/845/1999 de 28 de marzo de 2002, párr. 7.3; ONU, Comité de Derechos Humanos, Thompson c. San Vicente y Las Granadinas - Comunicación No. 806/1998-; UN Doc. CCPR/C/70/D/806/1998 de 5 de diciembre de 2000, párr. 8.2; ONU, Comité de Derechos Humanos, Pagdayawon c. Filipinas, Comunicación 1110/2002, párr 5.2. )

212 Corte IDH. Caso del Pueblo Saramaka. Vs. Suriname. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 28 de noviembre de 2007. Serie C No. 172.

213 Idem, §§ 84 – 86 e 91.

214 Lei nº 28 /87, da República da Nicarágua e Constituição do Paraguai. 215 Caso del Pueblo Saramaka. Vs. Suriname, § 93

manifestações do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais216 e do Comitê de Direitos Humanos217, a CtIDH considerou que a interpretação do art. 21, da CADH poderia ser integrada, baseada em seu art. 29, pelas interpretações dos Comitês da ONU, justificando a ideia de propriedade comunal naquele país.

Neuman (2008) analisa tais interações como importações realizadas pela CtIDH e as avalia com ceticismo. A importação seletiva da produção dos órgãos de direitos humanos da ONU não é acompanhada de maiores justificações e a CtIDH acaba por transformar obrigações não vinculantes e recomendações despidas de obrigatoriedade em obrigações convencionais. Por fim, a transformação de soft law em hard law fragiliza a legitimidade das decisões da CtIDH, porquanto ignora a busca de consenso regional acerca da institucionalização dos direitos humanos na américa latina. A evolução interpretativa das obrigações dos Estados que fazem parte da CADH não poderia estar desvinculada das experiências da comunidade regional americana (NEUMAN, 2008, p. 110-115).

Contudo, o movimento de interações é de via dupla (exportação). O nível global, especialmente a partir dos últimos cinco anos, tem citado casos julgados no nível regional.

Gerald Neuman (2011, p. 111), por exemplo, afirma que o Comentário Geral nº 29/01, do Comitê de Direitos Humanos incluiu em suas referências relatório que adotou a mesma linha de raciocínio desenvolvida pela CtIDH na OC nº 08/87, acerca da inderrogabildade do Habeas Corpus em situações de emergência, apesar de o Comitê não ter realizado citação expressa do precedente americano.

O Comitê dos Direito da Criança, na OG nº 08/06 (§ 24), que dispunha sobre o direito da criança à proteção contra castigos corporais e outras formas de punição cruel ou degradante, baseou-se na OC nº 17/02, da CtIDH para reforçar que a impossibilidade de aplicar a crianças castigos corporais também estava presente nos sistemas regionais de direitos humanos218. O mesmo comitê, na OG nº 13/11, no intuito de estabelecer medidas para prevenir qualquer espécie de violência às crianças, estipulou a obrigação estatal de auxiliar as

216 A CtIDH realçou a interpretação feita pelo Comitê de que o direito à autodeterminação dos povos presente no art. 1º, do PIDESC seria aplicável aos direitos indígenas, portanto, garantindo a eles o direito de dispor livremente de suas riquezas e recursos naturais, em função de serem garantias para que os referidos povos não fossem privados de seus meios de subsistência próprios (ONU, Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, Consideración de Informes presentados por Estados Partes bajo los Artículos 16 y 17 del Pacto e Observaciones Finales sobre la Federación Rusa. N.U. Doc. E/C.12/1/Add.94, 12 de diciembre de 2003, § 11). 217 A CtIDH utilizou a Observação Geral nº 23 (direito das minorias) do Comitê de Direitos Humanos para reforçar sua interpretação de que não serão negados às minorias (que podem ser indígenas) direitos de desfrute da sua própria cultura, [que] podem consistir em um modo de vida que está intimamente associado com o território e uso de seus recursos naturais (OG, nº 23/94, do Comitê de DH, §§ 1 e 3.2).

218 Importante notar que a CtIDH, ao interpretar o art. 19, da CADH, utilizou na OC preceitos da Convenção da ONU.

famílias a promover medidas capazes de garantir a unidade da família e permitir o pleno exercício e gozo por parte das crianças dos seus direitos na esfera privada, abstendo-se de interferir indevidamente nas relações privadas e familiares de crianças, de acordo com as circunstâncias, baseado no caso Velázquez Rodríguez, julgado pela CtIDH219.

O Comitê sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Suas Famílias, na Observação Geral nº 02/13, ao analisar a situação das crianças migrantes, afirmou que o direito à educação dos menores deveria ser garantido, como o fizera a jurisprudência da CtIDH, ao interpretar o art. 19, da CADH. Importante salientar que o Comitê não especificou quais seriam os precedentes de referência220.

Mais recentemente, o Comitê sobre Desaparecimentos Forçados, em relatório apresentado em função de sua sexta sessão (17-18, de março de 2014, § 16), apontou, em discussão temática acerca da competência da justiça militar para julgar desaparecimentos forçados, que apesar de inexistir expresso posicionamento acerca do tema no tratado da ONU, a CtIDH havia decido pela incompetência da justiça castrense para julgar as referidas violações de direitos humanos. Em seguida, salientou que tal posicionamento fora acompanhado pelos participantes do painel. O Comitê da ONU não citou o precedente da corte referenciado221.

Documentos relacionados