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3 CAMINHOS METODOLÓGICOS

3.3 INTERCESSORES: TERRITÓRIOS SUBJETIVOS E O COLETIVO

Considerando a origem da palavra território, territorium, é a palavra em latim que deriva do vocábulo terra e significa pedaço de terra apropriado. Pensar sobre território é extremamente complicado porque traz em si múltiplos significados, nas diversas áreas de conhecimento. Aliado a isso, no debate da geografia crítica, Milton Santos (1994) apresenta que o uso do território é o objeto de uma análise social, afinal as formas do território trazem consigo objetos e ações da comunidade que o habita, configurando-se num espaço humano. Carrion e Costa (2010), em pesquisa na região das ilhas em Porto Alegre, destacam que

trabalhar com a noção de território a partir de bases geográficas não é possível nesta região. Devido à grande movimentação de pessoas entre as ilhas, é importante considerar o território da região como uma rede de relações sociais.

Neste sentido, Guattari (1985) apresenta a necessidade de distinção entre os conceitos de espaço e território, já que muitas vezes estão associados entre si. Para ele,

...os territórios estariam ligados a uma ordem de subjetivação individual e coletiva e o espaço estando ligado mais às relações funcionais de toda espécie. O espaço funciona como uma referência extrínseca em relação aos objetos que ele contém. Ao passo que o território funciona em uma relação intrínseca como a subjetividade que o delimita. (GUATTARI, 1985, p. 110)

É possível associar os territórios relativos ao espaço vivido, em que os seres existentes os articulam e os delimitam de acordo com o sistema em que se sentem “em casa” (GUATTARI; ROLNIK, 2005). Esses territórios são resultados de subjetivação, projetos e representações que influenciam os comportamentos, ditam os investimentos, são determinados pelos contextos sociais, culturais, estéticos e cognitivos em que a pessoa está associada. Nesses territórios que busco habitar, é importante delimitar o conceito de subjetividade com que estou trabalhando. Guattari (1992) define subjetividade como um

...conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial autorreferencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva (GUATTARI, 1992, p. 19).

Neste sentido, Ferreira Neto (2011), ao olhar sobre o território subjetivo, percebe que a subjetividade pode ser entendida como emergência histórica de processos, não determinados pelo social, mas em conexão com os processos sociais, culturais, econômicos, tecnológicos, midiáticos, urbanos, ecológicos que participam de sua constituição e de seu funcionamento. Baseada nos escritos de Guattari e Rolnik (2005), tomo como intercessor o conceito de território subjetivo, entendendo por este tanto o espaço vivido quanto o modo como os sujeitos circulam, se inserem e criam estratégias de relações e de vida nos tempos e espaços sociais, culturais, estéticos e afetivos. Muito mais que um conceito voltado a uma lógica dura, representacional, é um construto que nos leva a problematizar a produção de múltiplas subjetividades, que são afetadas pelas experiências e situações vividas nos espaços, tempos e relações estabelecidas.

A constituição de territórios é efeito de movimentos de territorialização e de desterritorialização, processo em que subjetividades, modos de ser e estar no mundo se

atualizam. No momento em que consideramos a subjetividade em movimento, sendo afetada pelos fluxos que perpassam os territórios fixados, promovendo desterritorializações e reterritorializações constantes, concebemos a subjetividade sob uma face sensível, quase como mapas de sensações, não redutível ao indivíduo, mas sim composição de fluxos, de encontros envolvendo pessoas, coisas, discursos, ações, experiências, elementos materiais e imateriais. Um grupo de jovens em ação em determinada comunidade se faz coletivo, constituindo e/ou experimentando territórios, posições-composições que dizem da circulação dos jovens participantes e dos encontros que agenciam. Marcado por processos de subjetivação que permitem olhar para as constituições dos sujeitos a partir dos saberes e poderes constituídos, o grupo de jovens surge no espaço entre as dimensões individuais e sociais, em processo de construção constante, produzindo novos saberes e poderes (BARROS, 2007).

Concebendo que a subjetividade “não se situa no campo individual, seu campo é o de todos os processos de produção social e material” (GUATTARI, 1986, p. 32), é possível perceber a presença de atores políticos, econômicos, tecnológicos, ecológicos e semióticos nessa dimensão subjetiva, destacando movimentos de desindividualização, rompendo com a ideia de que a subjetividade é individual, de pessoa a pessoa. E esses processos de subjetivações são marcados pela disputa de pluralidade de forças, pela multiplicidade e polivocidade, tornando-se impessoal e coletivo. Este coletivo deve ser concebido para além da coletividade localizada no agrupamento de pessoas, conforme destacado por Guattari (1990):

...o termo coletivo deve ser entendido aqui no sentido de uma multiplicidade desenvolvendo-se para além do indivíduo, do lado do socius, como também aquém da pessoa, do lado das intensidades preverbais, relevando mais uma lógica dos afetos que de uma lógica de conjuntos de bens circunscritos (GUATTARI, 1990, p. 8).

Olhando para coletivos juvenis, Maheirie et all (2012) abrem a discussão afirmando que os coletivos podem se configurar tanto por uma unificação transitória e momentânea quanto pela constituição de grupos organizados. Afirmando que os coletivos são diferentes entre si devido às diversas possibilidades de constituição, conceitua o coletivo como “configurações reais e/ou virtuais que sujeitos estabelecem em determinado contexto concreto, a partir de tempos e espaços que se definem em torno de um tema ou questão” (Maheirie et all, 2012, p. 152). É preciso, com isso, levar em conta o contexto histórico, cultural, político e os processos subjetivos que o constituem.

Assim, esse coletivo, com o qual dialogo como intercessor, deve ser concebido para além de uma visão dicotômica indivíduo-sociedade. É necessário pensar o coletivo a partir da possibilidade de coexistência e indissociabilidade entre a dimensão individual e social nos processos de subjetivação. Escóssia (2014) constrói uma discussão sobre esse conceito a partir das contribuições teóricas de Veyne (1982) quanto à noção de práticas em Foucault e sua filosofia da relação, de que só se conhecem os objetos quando estes estão em relação; da discussão sobre as segmentaridades molar e molecular, flexível e dura, fluxos e linhas, micropolítica e macropolítica de Deleuze e Guattari (1996); e, por fim, das contribuições de Latour (1994) ao conceber a rede coletiva híbrida, mutante, heterogênea, plural, movente, diferenciada, de maneira a ser constituída como uma versão empírica e não dicotômica do rizoma. Esse coletivo é distinto de uma coletividade, de uma ação coletiva, de uma dimensão social.

Ao compreender o coletivo como um plano de forças, pode-se perceber os movimentos ou repousos dentro de uma rede coletiva, num plano relacional em que ocorre a produção de subjetividades. Assim, neste plano coletivo, estão sempre ocorrendo relações, num processo de subjetivação coletiva, sem ser somente individual ou social (ESCÓSSIA; KASTRUP, 2005). Este coletivo pode ser visto nos grupos e na comunidade assim como no plano dos afetos impessoais e no diagrama de forças. Pode ser considerado como um campo de singularidades e intensidades, como uma dimensão transindividual, como plano não totalizável, não substancial e não representacional, como um campo de cruzamento de crenças e desejos, forças que esculpem e modelam o social, e ainda como plano de coengendramento e de criação do indivíduo-meio e do sujeito-mundo, indicando um caminho para a superação das visões dicotômicas.

Ao conceber o coletivo como um plano produtor de mundo e de sentido, este surge como um plano ético-político que se desdobra numa ética coletiva e numa política do comum, do impessoal e das multidões. Aqui destaco que o comum não é dado, não está sempre disponível, é algo que pertence a todos, é algo produzido nas relações. Estar em comum é estar uns com os outros, é estar entre dois. Teixeira (2015) volta-se para as contribuições de Spinoza ao pensar o comum como um conjunto de composições de relações para criar um novo corpo singular, o qual se articula pelas relações subordinadas às partes que o compõem ao produzir o comum, ocasionando a produção de potências. Ao mesmo tempo que se explica o comum a partir das singularidades que surgem das relações com os outros, a constituição do comum articula-se com o reconhecimento com o outro.

Afirmando que o coletivo se torna uma política do comum e das multidões, destaca- se uma concepção de constituição de um mundo comum como um processo de composição de relações e de conexões, constituído pouco a pouco a partir de experiências coletivas. É essas conexões que “fazem funcionar a potência do comum, o que se constitui no próprio ato de constituição da multidão, da comunidade não fusional e não totalizada, e no mundo comum cosmopolítico (ESCÓSSIA, 2014, p. 193)”. Aliada às reflexões de Negri (2005), a produção do comum é realizada a partir de uma atividade produtiva de singularidades que compõem a multidão, um conjunto de singularidade cooperante, definida pela sua multiplicidade de ação com o potencial coletivo.

É importante destacar aqui a opção teórica quanto ao estudo deste coletivo frente à postura ética cartográfica adotada, não o considerando apenas a partir das suas ações coletivas concretas, as ações de coletividades, e sim a partir de um plano relacional, impessoal, em que se passa a dar visibilidade aos acontecimentos, sendo apreendido a partir do plano das formas e das forças. Escóssia (2009) nos ajuda a pensar numa política do coletivo como “uma experiência coletiva permanente de problematizações, identificações de perigos e escolhas ético-políticas”, de maneira a perceber este coletivo no plano de imanência de produção de subjetividade nos territórios subjetivos. A noção de agenciamento coletivo de enunciação (DELEUZE; GUATTARI, 1995b) parece dar suporte a essa política do coletivo. Não se trata de coletividade, mas sim da composição entre elementos heterogêneos, encontros entre corpos de natureza diversa, materiais e imateriais, diferentes máquinas de expressão que se agenciam.

Operar com essa noção de coletivo, problematizando a construção de territórios subjetivos em práticas de um grupo de jovens, nos força ao tensionamento do próprio modo de olhar, escutar e adentrar no campo. Não se trata de observarmos os jovens nas suas individualidades ou apenas nas suas interações, nem recortarmos descritivamente suas atividades; tentaremos, ao acompanhar o Colaí, cartografar processos, desenhando a composição das forças que constituem tal experiência.