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Tendo em vista que a presente pesquisa tem a intenção de promover atividades interdisciplinares em Modelagem Matemática, convém dedicar um capítulo à interdisciplinaridade. Deste modo, antes de discorrer sobre a interdisciplinaridade é importante entender o que levou ao modelo de ensino que vem ao longo desses anos promovendo uma aprendizagem fragmentada e sem conexão com a realidade.

Segundo Garruti e Santos (2004), a escola, aos poucos, foi sendo influenciada pelo processo de industrialização, onde cada indivíduo passou a exercer uma função específica do processo e produção material.

Essa influência taylorista11 na educação, no início do século XX, segundo

Santomé (1998), fez com que nem professores e nem alunos participassem dos processos de reflexão crítica sobre a realidade, causando assim um distanciamento entre essa realidade e as instituições escolares. Os conteúdos que formavam o currículo escolar eram descontextualizados e as disciplinas eram trabalhadas de forma isolada, não propiciando a construção e a compreensão de conexões com a realidade. Ainda segundo o autor, os conteúdos ensinados nas instituições escolares eram “demasiado abstratos, desconexos e, portanto, incompreensíveis” (SANTOMÉ, 1998, p. 14).

Segundo Frigotto (1995, p. 174, apud Pires, 1998), “a organização curricular fragmentada e desarticulada, disciplinar, reflete a cisão histórica das atividades humanas imposta pelo modelo industrial à maioria das populações”.

11 Sistema de organização de trabalho desenvolvido por Frederick Winslow Taylor, marcado pelo

No contexto educacional e pedagógico, herdamos um sistema fragmentado em disciplinas, que na maioria das vezes não se comunicam. Esse sistema de disciplinas não está dando conta de explicar o mundo ao qual estamos inseridos, o qual possui uma dinâmica complexa.

Dowbor (1994, apud Pires, 1998) enfatiza que com as modificações no mundo do trabalho, atualmente, a qualificação dos trabalhadores é alterada, pois os meios de produção querem pessoas qualificadas, flexíveis, com base técnica e científica, ou seja, trabalhadores multifuncionais.

Pires (1998) aponta que apesar de ser necessário que as disciplinas sejam integradas, ainda há no Brasil uma organização de ensino fragmentada e desarticulada, que produz uma formação insuficiente para as necessidades sociais que exigem do cidadão criticidade e competência.

Desta forma, de acordo com Garruti e Santos (2004), “o ensino tem pouco contribuído para que os alunos construam conhecimentos globais, já que são instruídos a compreenderem partes de um todo distanciadas umas das outras” (GARRUTI; SANTOS, 2004, p. 187). Santomé (1998) afirma que a instituição escolar não está cumprindo com sua razão de ser, que é a de preparar cidadãos para intervir na sociedade de forma responsável e democrática, se distanciando assim da realidade. Para ele, os conteúdos não passam de “pílulas” que devem ser memorizadas sem qualquer significação.

Assim, para tentar romper com a fragmentação das disciplinas, das ciências e do conhecimento, surgiu a interdisciplinaridade (THIESEN, 2008).

Segundo Fazenda (2005), o movimento de interdisciplinaridade surgiu na Europa (década de 1960), a partir dos movimentos estudantis que reivindicavam um novo modelo de escola e universidade. No Brasil, a interdisciplinaridade começou a ter espaço de discussão na década de 1970, com Hilton Japiassu em 1976 e com Ivani C. Arantes Fazenda em 1978.

Para compreendermos melhor como a ideia de interdisciplinaridade desenvolveu-se no Brasil nas décadas de 1970, 1980 e 1990, organizamos, baseados em Fazenda (2005), um quadro (Quadro 5) que apresenta o movimento de interdisciplinaridade de cada década, sua organização teórica e o perfil da ótica das influências.

Década Movimento Organização Teórica

Perfil da ótica das influências 1970 Construção epistemológica Busca por uma

definição

Busca de uma explicitação filosófica

1980 Explicitação das contradições

epistemológicas

Busca por um método

Busca de uma diretriz sociológica

1990

Tentativa de construir uma nova epistemologia, própria da interdisciplinaridade Construção da teoria Busca de um projeto antropológico

Quadro 5 - Movimento da interdisciplinaridade Fonte: elaborado pela autora, baseada em FAZENDA (2005).

A autora atenta que na década de 1970 não se chegava a um acordo nem da tradução da palavra interdisciplinaridade e nem do seu significado. Nos dias atuais, segundo Gonçalves (2014), ainda observa-se na revisão de literatura que não há uma definição unívoca do conceito de interdisciplinaridade, nem mesmo um único entendimento (THIESEN, 2008; JAPIASSU, 1976; PIRES, 1998; FAZENDA, 2005; dentre outros).

A interdisciplinaridade e suas variações - a multidisciplinaridade, a pluridisciplinaridade e a transdisciplinaridade (GONÇALVES, 2014) - estão sendo mencionadas em diversos documentos educacionais brasileiros, mas ainda, há entre os profissionais da educação certa insegurança quanto a como realizar um trabalho com essas características, bem como certa confusão no que tange ao entendimento dos distintos termos.

A reflexão epistemológica para diferenciar a interdisciplinaridade, a multidisciplinaridade, a pluridisciplinaridade e a transdisciplinaridade iniciou em 1969 com GuyMichaud (GONÇALVES, 2014).

Japiassu (1976), uns dos pioneiros a tratar sobre interdisciplinaridade no Brasil, diferencia as variações baseado nos trabalhos de Jantsch12, evidenciando os

graus de cooperação e de coordenação entre as disciplinas:

1) Multidisciplinaridade: Gama de disciplinas que são propostas simultaneamente, mas sem fazer aparecer as relações que podem existir entre elas. É um sistema de um único nível, com objetivos múltiplos e sem nenhuma cooperação.

2) Pluridisciplinaridade: Justaposição de diversas disciplinas situadas geralmente no mesmo nível hierárquico e agrupadas de modo a fazer aparecer as relações existentes entre elas. É um sistema de um único nível e de objetivos múltiplos, onde há cooperação, mas sem coordenação. 3) Interdisciplinaridade: Axiomática comum e um grupo de disciplinas conexas e definida no nível hierárquico imediatamente superior o que introduz

12 Erich Jantsch, “Vers l’interdisciplinarité et la transdisciplinarité dans l’enseignement et l’innovation”,

a noção de finalidade. É um sistema de dois níveis e com objetivos múltiplos e com coordenação precedendo do nível superior.

4) Transdisciplinaridade: Coordenação de todas as disciplinas e interdisciplinas do sistema de ensino inovado, sobre a base de uma axiomática geral. É um sistema de níveis e objetivos múltiplos e com coordenação com vistas a uma finalidade comum dos sistemas (JAPIASSU, 1976, p. 73 - 74).

Neste sentido, por exemplo, a multidisciplinaridade pode acontecer quando diferentes disciplinas desenvolvem diferentes atividades. No entanto, não há diálogo entre as disciplinas, nem entre os professores. Cada disciplina possui seus objetivos individuais e não cooperam com outra disciplina. A Pluridisciplinaridade, acontece quando cada disciplina desenvolve suas atividades a partir do mesmo tema, denotando as relações que elas possuem, ocorrendo desta forma a cooperação entre elas, mesmo que isso não seja feito de modo organizado e coordenado. A interdisciplinaridade, por sua vez, acontece quando as diversas disciplinas envolvidas possuem um objetivo comum, além de outros objetivos. As disciplinas estão num nível e trabalham para resolver o problema que está no nível superior, coordenando a atividade que desenvolvem com vistas a cumprir um objetivo comum. Já a transdisciplinaridade ocorre quando todas as disciplinas coordenam a atividade, a finalidade é comum e transcende as disciplinas, de modo que nem sempre é possível identificar o quê do trabalho desenvolvido cabe a uma disciplina ou outra.

Japiassu (1976) ainda entende a interdisciplina como sendo a “interação entre duas ou mais disciplinas”.

Essa interação pode ir da simples comunicação de ideias à integração mútua dos conceitos diretores da epistemologia, da terminologia, da metodologia, dos procedimentos, dos dados e da organização referentes ao ensino e à pesquisa (JAPIASSU, 1976, p. 74).

O autor apresenta os objetivos principais da interdisciplinaridade apontados pelo Dr. Clark C. Abt13 num documento14 preparado para o Seminário sobre a Pluridisciplinaridade e a Interdisciplinaridade nas Universidades15 em 1970, na França.

13 Pesquisador e educador americano.

14 ABT, C. C., Analyse de l´étude sur les activités interdisciplinaires dénseignement et de recherche

dans les universetés américaines, documento CERI/HE/CP/70.20.

15 Conhecido como Congresso de Nice – organizado pelo Centro para Pesquisa e Inovação do Ensino

(CERI) e pelo Ministério da Educação Francês. Esse evento visava esclarecer os conceitos de multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade a partir de uma reflexão epistemológica (GONÇALVES, 2012, p. 131).

- Despertar entre os estudantes e os professores um interesse pessoal pela aplicação de sua própria disciplina a uma outra;

- Estabelecer um vínculo sempre mais estreito entre as matérias estudadas; - Abolir o trabalho maçante e por vezes “bitolante” que constitui a especialização em determinada disciplina;

- Reorganizar o saber;

- Estabelecer comunicação entre os especialistas;

- Criar disciplinas e domínios novos de conhecimento, mais bem adaptados à realidade social;

- Aperfeiçoar e reciclar os professores, reorientando-os, de sua formação especializada, a um estudo que vise a solução de um problema;

- Reconhecer o caráter comum de certos problemas estruturais, etc (JAPIASSU, 1976, p. 56).

Para Santomé (1998), a interdisciplinaridade pode ser compreendida como uma proposta progressista e desafiadora na tentativa de corrigir os erros e as infecundidades geradas pela ciência excessivamente compartimentada.

Neste contexto, Thiesen (2008, p. 548), explica que

a interdisciplinaridade visa à recuperação da unidade humana pela passagem de uma subjetividade para uma intersubjetividade e, assim sendo, recupera a ideia primeira de cultura (formação do homem total), o papel da escola (formação do homem inserido em sua realidade) e o papel do homem (agente das mudanças do mundo).

Fazenda (2011) vê na interdisciplinaridade “[...] uma atitude de abertura [...] onde todo conhecimento é igualmente importante. [...] somente na intersubjetividade, num regime de copropriedade, de interação, é possível o diálogo, única condição de possibilidade da interdisciplinaridade” (FAZENDA, 2011, p.11). Deste modo, nenhuma área é mais importante do que as outras áreas do conhecimento, mas as áreas são complementares e juntas constituem o ser humano em sua plenitude.

Diversos documentos educacionais brasileiros orientam o ensino via um trabalho interdisciplinar: Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) (BRASIL, 2000); Diretrizes Curriculares da Educação Básica (DCE) (BRASIL, 2008); Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio (BRASIL, 2012).

Na proposta de reforma curricular do Ensino Médio, a interdisciplinaridade deve ser compreendida a partir de uma abordagem relacional, em que se propõe que, por meio da prática escolar, sejam estabelecidas interconexões e passagens entre os conhecimentos através de relações de complementaridade, convergência ou divergência (BRASIL, 2000, p. 21).

Neste sentido os PCN orientam que a interdisciplinaridade deve ir além da simples justaposição de disciplinas, ela está na possibilidade de relacionar as disciplinas em atividades ou projetos de estudo, pesquisa e ação.

Neste contexto, para que isso ocorra, uma das fases mais importantes do trabalho interdisciplinar é o planejamento. A interdisciplinaridade deve se dar desde o planejamento das atividades e este planejamento deve ser feito em conjunto com os professores das outras disciplinas.

De acordo com Tomaz e David (2008), os professores das diversas disciplinas deveriam conversar para que pudessem levantar aspectos comuns de sua prática com as de outro professor que trabalha com os mesmos alunos para que assim encontrem alternativas para potencializar as oportunidades de interdisciplinaridade em sala de aula, tornando esta prática mais usual.

Para isso, Gonçalves (2014) acredita que a atividade interdisciplinar deve, “a partir de uma atitude do sujeito de humildade e ousadia no desejo de inovar, criar e ir além, [...] constituir uma ação pedagógica interdisciplinar, mediante uma filosofia do sujeito” (GONÇALVES, 2014, p. 241). “A interioridade nos conduz a um profundo exercício de humildade, fundamento maior e primeiro da interdisciplinaridade (FAZENDA, 2005, p. 15)”. A ideia de humildade é no sentido de compreender que todas as disciplinas são importantes e formam o mundo real, no qual estamos inseridos.

Neste contexto, como afirmam Tomaz e David (2008), “para que uma atividade se configure como interdisciplinar, é necessário que algumas restrições e possibilidades de ações inerentes aos ambientes nela envolvidos sejam percebidas como invariantes e relevantes pelos alunos” (TOMAZ; DAVID, 2008, p. 125).

As autoras ainda sugerem que “os planejamentos das disciplinas, articulados por um tema ou no desenvolvimento de um projeto, já trazem a priori determinados significados em torno do objeto de estudo que os tornam interdisciplinares” (TOMAZ; DAVID, 2008, p. 25).

A interdisciplinaridade ainda parece ser algo visto como “diferente” pelos alunos, quando, de acordo com os documentos educacionais e o tempo de vigência desses documentos, deveria ser algo já incorporado na prática escolar.

Tomaz e David (2008) entendem que dada a organização do trabalho escolar e a falta de clareza sobre como concretizar uma prática pedagógica interdisciplinar, torna-se um desafio para cada unidade escolar organizar seu currículo numa

perspectiva interdisciplinar. Um caminho para alcançar a interdisciplinaridade, segundo os autores, seria utilizar os conhecimentos de várias disciplinas para resolver algum problema ou compreender um fenômeno considerando diferentes pontos de vista.

Thiesen (2008, p. 553) entende que “a interdisciplinaridade é um movimento importante de articulação entre o ensinar e o aprender”.

A interdisciplinaridade [...] retoma, aos poucos, o caráter de interdependência e interatividade existente entre as coisas e as ideias, resgata a visão de contexto da realidade, demonstra que vivemos numa grande rede ou teia de interações complexas e recupera a tese de que todos os conceitos e teorias estão conectados entre si (THIESEN, 2008, p. 552).

O autor entende que a escola deve ser uma instituição interdisciplinar, por sua natureza e função, pois desta forma será maior a possibilidade de apreensão do mundo pelos sujeitos envolvidos. De acordo com Garruti e Santos (2004, p. 189), deve haver um “[...] esforço por aproximar, relacionar e integrar os conhecimentos” [...] de modo que os conteúdos das disciplinas sejam trabalhados para servir de aporte às outras, formando assim uma teia de conhecimentos.

Neste contexto, o planejamento interdisciplinar torna-se o alicerce do trabalho interdisciplinar. Pois é neste momento que os professores têm a oportunidade de buscar romper com as fronteiras que separam as disciplinas ao pensar numa atividade em conjunto, em parceria.

O professor precisa tornar-se um profissional com visão integrada da realidade, compreender que um entendimento mais profundo de sua área de formação não é suficiente para dar conta de todo o processo de ensino. Ele precisa apropriar-se também das múltiplas relações conceituais que sua área de formação estabelece com as outras ciências (THIESEN, 2008, p. 551).

A seguir, discorremos sobre algumas questões acerca da interdisciplinaridade no contexto da Educação Matemática.